Uma escrita a se fazer

Uma escrita a se fazer
(Arte: Revista Cult)

Heleine Fernandes de Souza
Há poéticas que nos impõem o distanciamento de uma anterioridade. Poéticas que instauram um presente que não cessa de nos convocar e recuar, criando um tempo para a leitura que é o de um delay, de um regime de perda que abre espaço para o alargamento do desejo. Há, nessas poéticas, um presente que se afasta e, ao mesmo tempo, se dirige a nós quando lemos. Este presente é o momento da escrita, anterior à obra constituída: das primeiras linhas do poema que borram a página, ainda vacilantes e disformes, descoladas de uma identidade reconhecível. Nós, leitores que buscamos nos aproximar de certa poesia contemporânea, somos colocados por ela no mesmo lugar do anjo da história: ao lermos, nos pegamos repetindo os seus gestos de voltar o rosto para trás enquanto somos empurrados para frente por uma potente tempestade. Esse movimento de aproximação e afastamento de uma escrita que traz para o presente seu processo de elaboração, presentificando um estado anterior ao da obra pronta, se faz mais intenso em certas poéticas que põem em primeiro plano o começo do poema, ou o que Barthes chamou de “querer-escrever”.

Marília García começa o seu livro Um teste de resistores pela série numerada “Blind Light”. Nela, um texto sem número, uma espécie de preâmbulo ou prefácio fora de lugar, precede o início do que seria o primeiro poema da série. Esse estranho texto em versos, fora da numeração, cria um intervalo que incorpora à obra um momento prévio de indefinição:

poderia começar de muitas formas
e esse começo poderia ser um movimento ainda sem direção
que vai se definindo
durante o trajeto
poderia começar situando o tempo e o espaço
contexto    hoje é quarta-feira dia 27 de novembro
e estamos no 3° andar do centro universitário maria antônia
também faria uma pergunta
nesse caso           com quem estou falado aqui hoje?
poderia começar contando que me mudei para são paulo
há exatos 3 meses
e que esse convite do maurício
foi como um gesto de
delicadeza e acolhida
(…) poderia começar de muitas formas
mas escolhi começar com uma pergunta
que me fez a hilary kaplan (…)

Há um começo de livro que trata do começo; começo que já é e ainda não é o livro. Um ainda não livro, que adia a sua chegada. No começo, um teste: demorar-se sobre as várias possibilidades de começo, ensaiando movimentos no futuro do pretérito: “poderia começar”, “este começo poderia ser”. Apesar de começado o poema, a decisão sobre qual começo é o melhor só aparece no 19° verso. O que são os 18 versos iniciais? Porque essa “sobra” permaneceu incorporada ao livro? Os versos iniciais criam um espaço atópico, em que se preservam os primeiros jatos ou impulsos da escrita, exercícios que fazem coincidir o ato da escrita e o desejo de escrever. A definição clássica de obra prevê dois momentos distintos: um anterior à sua realização, da potência e da virtualidade; e outro posterior, do ato e realização. Nessa divisão, a potência e o desejo de escrever do artista se esvairiam no ato, não deixando rastro na obra concluída.

Nos parece que o modo como Marília começa seu livro busca garantir que a potência e o desejo da escrita sejam preservadas na superfície da página, sendo-nos endereçada enquanto “um movimento ainda sem direção”. A página como índice de desorientação, aberta à sintaxe da anotação e à repetição própria da fala, criando uma escrita que (especialmente nesses intervalos mais esvaziados) se inscreve como puro movimento, movimento em si, cujo fim é mover-se sobre a página, imprimir gestos.   Estes momentos de “movimento ainda sem direção” são pontuados pela menção a elementos biográficos, ao que é chamado “contexto”, que surgem não para garantir sentidos ou a identidade de quem escreve, mas sim como dispositivo que torna o sentido ainda mais deslizante e superficial: “estamos no 3° andar do centro universitário maria antônia”, “poderia começar contando que me mudei para são paulo” etc. Essas informações a respeito da vida da poeta nos aproximam e afastam do que seria a sua intimidade – o movimento de recuo sendo, ele mesmo, responsável pelo efeito de intimidade –, funcionando como dados para impressão de rastros do vivido, para gravação e arquivamento do que antecede a escrita: o impulso de escrever. É possível arquivar a vida, a potência, o desejo de escrever?

Roland Barthes, em seu curso “A preparação do romance 1”, vai tematizar o que ele chama “Querer-Escrever”, definindo-o como a junção de “atitude, pulsão, desejo”. Ato e potência conservados na tessitura da escrita: a escritura. Suas anotações de aula buscam investigar o que ainda não é o romance e, para isso, investe no estudo minucioso do haicai. O objetivo não é o de empreender um esquadrinhamento formal e acadêmico, mas o de identificar os dispositivos de prazer presentes nesta forma de escrita: “… o haicai é Desejo, na medida em que ele circula: que a propriedade – a auctoritas – passa, circula, gira, como jogo de passar anel”. A busca é por uma escrita posta na dimensão do uso e do jogo, em que o saber conviva com o não-saber e o desejo. Ainda em Um teste de resistores, Marília retoma a questão do começo no poema “O que é um começo?”:

na semana passada                 decidi comer crepes franceses
crepes franceses de emmental derretido
e crepes franceses doces de farinha de centeio
com açúcar mascavo derretido
na semana passada
resolvi procurar uma receita de crepe
(…) ao dar uma busca pela palavra crepe
encontrei uma tradução da inês oseki-
depré de um poema do meu livro
chamado “rue de fleurus”

naquele momento
entendi algo sobre o começo
entendi que fechar em português
pode significar abrir
(…)

Aqui é retomado o mesmo exercício de testagem de um “começo ainda sem direção” que, em determinado momento, define sua rota. No caso, a tradução de Inês Oseki-Depré se torna o principal “assunto”, o que não deixa de delinear uma sobra, que é a presença indiscreta do começo do poema enquanto estágio prévio e vacilante que mantém o texto em aberto. Esta sobra preserva no texto a instabilidade da anotação, cuja sintaxe é atravessada pelos afetos e pelo sabor que põem o discurso de saber em suspenso. Um teste de resistores cria uma tensão permanente entre os discursos de saber e o não-saber, alterando a forma do poema, tornado um híbrido do ensaio. Nos dois poemas lidos, a tensão irrompe quando surgem os temas da tradução e do reconhecimento público da autoria, que interrompem o curso do não-saber, do começo do poema, ou impõem a ele uma descontinuidade.

Apesar do teor legitimador que a tradução possa assumir, especialmente neste livro atravessado pelo espaço universitário e seus rituais, ela surge nos poemas também como um índice de instabilidade, tanto do sentido quanto da autoria. O reconhecimento da figura pública da poeta é encenado, tal persona sendo ao mesmo tempo chancelada (por convites, participações e citações) e minada – por descontinuidades, sobras e enganos. Fechar pode significar abrir, como olhar para frente pode significar olhar para baixo, nessa tensão em que o limite entre os conceitos se torna permeável, reenviando constantemente a um estágio prévio de formação e indefinição. A tradução aqui é o que alça a autoria e a lança simultaneamente ao abismo; é o espaço do engano.

O livro anterior, Engano geográfico, também é atravessado pela tradução e pelo tensionamento da ideia de autoria. Ele parte da tradução do poema Dois andares com vista para o estreito, de Emmanuel Hocquard. Em ensaio, a poeta fala de seu livro como uma “tradução alternativa” do poema de Hocquard, uma segunda versão para o português mais bem sucedida do que a primeira. Se Engano geográfico pode ser lido como tradução, podemos ler Um teste de resistores como um manual de procedimentos para quem quer escrever, cheio de furos e fios soltos. A anterioridade da escrita neste livro coincide, simbolicamente, com a anterioridade do acidente narrado no início do livro e depois retomado ao fim. A narrativa do quase atropelamento da poeta antes da sua fala no Centro Universitário é uma imagem do momento em que a escrita está por se fazer e colocar a vida em jogo.

eu acho que aqui em são paulo
as pessoas costumam atravessar a rua na faixa de pedestres
eu acho que aqui em são paulo
as pessoas não têm a mania
de atravessar a rua no meio dos carros
é o que tenho pensado aqui em são paulo
por exemplo
estou indo falar no centro universitário maria antônia
e atravesso a rua fora da faixa de pedestres
estou indo falar no centro universitário maria antônia
e resolvo ir de metrô para a vila buarque
quantos passos na rua             que atravesso?
Quantas ruas pelo trajeto?
Quantas coisas no tempo acumuladas?
Fico pensando no caminho que vou fazer
tomar o metrô na estação ana rosa
linha azul direção tucuruvi
descer na sé          baldear para a linha vermelha
direção palmeiras barra funda
descer na república
depois pegar a avenida ipiranga
entrar na consolação e pronto
chego na rua maria antônia em meia hora
então saio de casa para pegar o metrô
vou caminhando durante dez minutos
está quente mas sem sol
e está seco                      muito seco
vou caminhando até a estação ana rosa
e sinto que tem uma poeira no ar
uma nuvem de poeira               no meio da secura
será a poeira das coisas quebradas
todos os dias na vida das pessoas?
Vou me perguntando                de onde vem essa poeira
enquanto caminho até o metrô
penso que tinha vontade
de terminar um livro com a palavra sim
como fez a gertrude stein          quero dizer isso
no centro maria antônia            que o bom mesmo
seria um livro que terminasse com a palavra
sim
                                      quantos passos pelo caminho?
Quando já estou bem perto da boca do metrô
atravesso a rua na conselheiro rodrigues alves
atravesso fora da faixa de pedestres
eu olho       e não vem carro
os carros estão parados no sinal
atravesso bem na altura do supermercado pão de açúcar
atravesso a rua correndo pois estou fora da
faixa de pedestre e quando já estou chegando na última pista
sai um carro do estacionamento do supermercado
a motorista olha na direção oposta à da mão da rua
para ver se não vem carro
para ver se ela pode entrar na última pista
os carros estão parados no sinal
e ela acha que pode entrar
como ela olha para trás
não vê que eu estou entrando com toda a pressa
bem na frente do seu carro
eu estou correndo                    não tenho mais
como parar                     ela também não
golpe vibrado no ar                  lâmina de vento no pescoço
os cacos de vidro das vidas das pessoas
a poeira das vidas quebradas    a poeira poeira   elétrons nos
circuitos de resistores
golpe no asfalto fora da faixa
e o surdo estrondo          a última coisa que ouvi
foi o grito do pipoqueiro
som                      onda longitudinal se propagando
surdo estrondo a poeira e a última coisa aquele grito
NÃO

Heleine Fernandes de Souza é pesquisadora de Literatura Contemporânea, doutoranda em Teoria Literária pela UFRJ e professora de Língua Portuguesa da Escola Sá Pereira, no Rio de Janeiro.

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