Uma canção de Natal, “a christmas carol”

Uma canção de Natal, “a christmas carol”

 

Tudo teve início com um texto. Um texto único, baseado em histórias que vinham de longe, de beleza concreta, ainda a ser estudada. Embora originado em uma imagem o claro desejo de poesia que costuma acompanhar de perto a ideia do sagrado na vida humana ─, o texto é “uma investigação de tudo com exatidão desde o princípio”, como referido por seu autor, que também dizia dar voz a “testemunhas oculares e servidores da palavra”, todos aqueles que o antecederam no caso. Um texto que, sabemos depois de tanto tempo, foi uma visão primordial, uma imagem de fundação, imagem da experiência que sonhou junto de muitos outros. Assim, ele ganhou suas linhas, com toda uma tradição de narrativas, a tessitura do vir a ser de um mundo pela palavra. Palavra que unificava a nova comunidade, na nova invenção da imagem e, por que não dizer, da vida:

6 Aconteceu que, enquanto estavam ali, se cumpriram os dias da parturição dela, 7 e deu à luz o seu filho primogênito e envolveu-o em panos e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria. 8 E estavam pastores na mesma região pernoitando nos campos e guardando os seus rebanhos durante a noite. 9 E um anjo do Senhor postou-se diante deles e a glória do Senhor brilhou à sua volta e temeram um grande temor. 10 E disse-lhes o anjo: “Não temais, eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo, 11 porque foi dado à luz para vós hoje um salvador, que é Cristo Senhor na cidade de Davi. 12 E isto [será] para vós o sinal: encontrareis um bebê envolto em panos e deitado numa manjedoura”. 13 E de súbito surgiu, juntamente com o anjo, uma multidão do exército celeste, louvando a Deus e dizendo: 14 “Glória nas alturas a Deus! E, sobre a terra, paz entre as pessoas de boa vontade”. 15 E aconteceu que, quando os anjos se retiraram de junto deles para o céu, os pastores disseram uns aos outros: “Vamos até Belém e vejamos essa palavra que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer”. 16 E foram depressa e encontraram Maria e José e o menino deitado na manjedoura (Evangelho de Lucas, cap. 2, trad. Frederico Lourenço, Bíblia, Vol. I, os quatro evangelhos, Companhia das Letras, 2017).

Já os muito misteriosos três magos bons, transformados em reis ao longo do tempo, apareceram ainda em outro lugar. Na narrativa mais consciente do poder e da política, que evocava a autoridade do autor – Mateus, o primeiro no gênero – a respeito do nascimento do menino. Eles entram em cena logo depois do evangelista nos contar a longa genealogia, demonstrando a descendência legítima do bebê, não apenas de Deus, como disseram os anjos, mas também do rei temporal mais amado por Deus, Davi. De fato, os magos surgem na história frente a outro problema, à luz de um quiproquó, jogo de esconde e de dissimulação com Herodes, o rei sem Deus, que os envia para espionar a origem do novo, pequeno e imenso soberano dos homens, já um ícone recém-nascido, pobre e do povo.

Como sabemos, Herodes será iludido e enganado pelos reis-magos, que reconhecem o valor da criança, o celebram e constituem o primeiro grupo de devotos da futura religião do Deus homem, em conjunto com os simples pastores da outra cena, de Lucas, e com os anjos do céu:

“1 Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia no tempo do rei Herodes, eis que uns magos do oriente vieram para Jerusalém, 2 dizendo: “Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos o seu astro no oriente e viemos para nos prostrarmos diante dele. 3 Ao ouvir isso, o rei Herodes ficou agitado e com ele toda a cidade de Jerusalém. 4 Convocando todos os sacerdotes e escribas do povo, informou-se junto deles sobre onde nasceria o Cristo. 5 Ao que eles responderam: “Em Belém da Judeia: pois assim ficou escrito através do profeta: 6 E tu, Belém, terra de Judá, não és o menor entre os regentes de Judá, pois de ti virá o regente, que apascentará o meu povo de Israel”. 7 Então Herodes, chamando secretamente os magos, certificou-se junto deles qual o momento em que se tornara visível o astro; 8 e, enviando-os para Belém, disse-lhes: “Ide lá e informai-vos com exatidão acerca do menino. Quando o encontrardes, mandai-me dizer, para que também eu me vá prostrar diante dele. 9 Tendo eles ouvido o rei, partiram; e eis que o astro, que tinham visto no oriente, os conduziu, até que, chegando parou por cima do lugar onde estava o menino. 10 Vendo o astro, os magos sentiram intensamente uma enorme alegria. 11 E entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe; e caindo ao chão, prostraram-se diante dele; e abrindo as suas caixas de tesouros, ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra. 12 Avisados em sonho de que não deviam regressar para junto de Herodes, voltaram para a sua terra por outro caminho.” (Evangelho de Mateus, cap. 2, idem).

Assim se dispuseram os elementos, em duas narrativas muito diferentes, do que seria ainda reunido em outra unidade, por um outro místico, em uma figuração humanista e disponível da presença de Deus no mundo, muito singular na história das religiões. Lá estavam a Estrela do oriente, os três magos, os pastores e seus animais pacificados, a manjedoura, a mãe encantada e o pai comprometido. Tudo posto em pano de fundo escatológico, místicopolítico na terra e mítico-divino no céu da miríade de anjos, que cantavam. Tudo o que Francisco de Assis viria a juntar como sua nova criação, entre a cena e a devoção, em sua própria arte mística renovada, agora não mais em um texto, mas uma cena, um tableaux.

Antes de tudo, parece que a ideia mítico-poética de Francisco de Assis de valorizar o nascimento de Jesus como o momento incontaminado, puro em si mesmo, que é o da vida vindo ao mundo, foi um ato de força da mística na vida política secular, uma guinada do cristianismo católico ao mundo comum dos homens. Uma criação teológico política verdadeiramente excepcional, dado o tamanho fantástico da distância entre os senhores da teologia e a experiência da vida. Francisco instaurou, em plena crise do século 12, o coração do sagrado na realização da boa nova e na encarnação reconhecida, sem violência, de Deus entre os homens. E também entre os animais, e as estrelas. Era o seu Deus novo, que redescobria o Jesus das ruas e dos campos, na forma de um recém-nascido. Assim ele estabeleceu a figura do presépio – com sua imagem original presente apenas no Evangelho de Lucas – como um primeiro modo “moderno” da mística cristã renascida. Ele inverteu a fixação escatológica, algo terrível, plena de toda violência, na culpa universal frente ao Deus crucificado. Entre o corpo encantado de espírito, vazio de história e de pecados, do bebê, e o corpo dilacerado pelo peso do mundo do homem, Francisco elegia o primeiro. Tal gesto teria imensas repercussões teológico-políticas, celebrando o mais leve e presente de toda vida. Um verdadeiro gênio místico.

De fato, esse complexo do advento do bebê Deus, que só é Deus quando o mundo se inflete sobre ele, se curva leve e sem submissão, por amor, aos seus pés, como ato simples de reconhecimento da fragilidade, da necessidade de cuidado e da maravilha da vida a um tempo, conseguiu evocar, nesse início que por enquanto é o fim ético que conseguimos sustentar, a “fonte de todas as utopias no amor materno” como Adorno disse sobre o assunto. Criação de grande fortuna entre os homens ocidentais, e seu universo mental pesado de constrição diante do Deus adulto assassinado e triste diante do mundo, Francisco deu a ver o caráter fundamental de “devoção materna da cultura”. Tudo parece indicar que a força de um mito vivo desta ordem, que encontra o Deus na natureza humana da vida, que se impôs à modernidade e que chegou embrulhado em pacote ilusório como o paraíso maior da mercadoria até o nosso tempo, deve ter se sustentado em poderosos influxos, que vislumbramos através dos afetos que uma figuração aparentemente tão singela mobiliza entre nós. Pois, como lembra a tradição, muito antes do nascimento do pobre menino, Deus e rei, Sara, com mais de 90 anos, já tivera seu bebê Isaac anunciado diretamente pelo anjo do Senhor, e condensou o seu próprio presépio particular, universal, na fala: “Deus me trouxe o riso, e aquele que dele se aproximar se rirá comigo.”

A imagem do nascimento, a figura do compromisso fundante do cuidado materno, o mundo que entra em suspensão para receber o bebê e a criança, tudo isso como poder fundante, o vértice originário do sagrado e de Deus no mundo, é uma figura da humanidade que tem ligação com nossa própria origem imanente, com a própria vida. Pois é certo que não existe humanidade nem humano sem uma cultura que dê conta do bebê radicalmente desamparado, uma cultura humana que o receba de fato. São Francisco adensou, desse fundamento, a ideia de uma cultura que cria, entre o bebê Deus e a mãe, o pai e os reis do mundo e ainda todos os animais pacificados pelo advento, em comunhão, a imagem máxima do amor concreto produzindo formas no mundo. A ética mágica da utopia, da qual somos lembrados como numa fábula platônica, encarnada em vida real, que um dia não só conhecemos como vivemos, no próprio processo de vir a ser gente. O fundo de afeto encarnado da utopia. O cuidado pelo mais forte do mais fraco.

O poder da nova mística, no limite da idade média e na origem do renascimento europeu, se perde assim nas raízes antropológicas mais amplas do humano. Enquanto o figura como uma potência moderna, muito antiga, em que os reis e os mágicos, os Davis e os Cristos, os Leviatãs são substituídos pelo amor real e necessário pelo frágil da cultura, o bebê e sua mãe. E é importante lembrar que, apesar do amor humano, que o diferencia desde aí, o bebê também não é muito diferente de um bichinho, é também não humano, por assim dizer. A comunhão dos homens pelo mais frágil, o princípio da humanidade, poderia se expandir para além do homem, e em Francisco o amor pelos animais presentes na cena deixa essa possibilidade indicada. Não há dúvida de que a invenção teológico política de Francisco, de caráter antropologizante, por assim dizer, foi umas das obras primas espirituais do influxo cultural humanista muito amplo, de proposição universal, do que seria o renascimento europeu. Na sua poesia como cena, podemos constatar o núcleo universal desejado do humanismo, como ética.

A luta fundamental do poder contra a mística da utopia estaria figurada, então, em termos bíblicos, em Herodes. Ao avesso do presépio, ele manda matar os bebês, por saber que o novo rei, o Deus recebido e reconhecido, todo bebê humano, e também não humano, estava entre eles. É uma luta de perspectivas diferentes de poder e sentido. O momento em que o poder despreza o valor do humano, e um bebê não interessa mais à vida de alguém, de um rei, de um Estado, de algum Laio, ou de uma sociedade. O momento em que, em nosso mundo avançado que retorna a estes círculos da origem, Donald Trump e o Estado americano explicitaram com clareza a natureza concreta do mal, ao separar mães imigrantes e suas crianças e fazê-las perder o contato vivo , para puni-las de modo infra-legal, arruinando sua própria humanidade. E a nossa.

O que, e não precisamos insistir sobre o ponto, foi realizado de modo produtivo e gerando lucros e muitas modalidades de capital durante os 400 anos de escravidão europeia e brasileira: nenhuma mãe, nenhuma criança, nenhum bebê e nenhuma comunidade negra afetada pelo desejo de poder tinha o direito do vínculo contínuo. Genocídio, etnocídio e epistemicídio, desestruturação na raiz do humano, máquina mercante que nos coube, que recusava abertamente o princípio transcendente, teológico político, do presépio do século 13 de São Francisco, e sua ordem clara de direitos humanos desde o nascimento. Porque direito de um humano de ser recebido pelo mundo e fazer efeito nele, como um sujeito. O que ligaria a nossa própria humanidade concreta à do menino Deus.

Existe uma profunda ligação e “emanação” da ética cristã moderna do recebimento, como advento de tudo, algo tardia, e a psicanálise ética do recebimento e da criação no mundo, de Winnicott. “Não dizemos ao bebê venha ao mundo como um Deus?”, disse o psicanalista pediatra, inscrevendo sua própria psicanálise, científica, em um milhão de problemas políticos, éticos e teológicos, em um gesto especular de presépio de Francisco. Winnicott substituiu o bebê majestático de Freud, ponto de apoio do narcisismo dos pais, pelo bebê frágil do amor materno, ético estético, com todas as consequências deste ato para a psicanálise.

Freud também nos dá notícia deste bebê, porém de modo invertido. Ele surge no encantamento único do rosto da mãe diante dele, que o primeiro psicanalista diz ser a matéria de sublime expressa nos rostos de Maria e Sant’Ana, olhando para o menino que quase lhes escapa, e já brinca, e também na Mona Lisa,– segundo Freud –mãe de Leonardo da Vinci… Neste universo, como a sua imagem mundana apresenta, afeto, amor, paz, fruição, cultura, vida, vir a ser e criação, em comunhão de interesses e das diferenças, unidade na heterogeneidade, é o que importa.

Por ser um universo em que o conceito não se diferencia ainda do afeto, o dizível e o indizível formam unidade viva, com o presépio sendo imagem e devoção em um mesmo ato – o mistério da devoção, de toda mística –. Daí emerge o sagrado no mundo, a figura ética, da celebração da origem de tudo o que importa como a vinda de um bebê. Por isso, a invenção radical de São Francisco se expandiu e se realizou mesmo historicamente, ao longo do tempo, como música, a mais envolvente, indefinível e mágica das artes mundanas. Pois, de fato, os anjos celebraram e cantaram a vida do menino.

A música de Natal, sua história e sua arqueologia, é a principal mantenedora, e formadora, de uma ideia na cultura que sempre foi um afeto. A música e o seu poder maior de inventar os afetos, definir algo impreciso dos contornos do amor. Mais do que a figuração infantil, redução do mundo especular ao ato de devoção do próprio homem recebendo o seu menino Deus, construção imagética em abismo, modelo e representação de como a coisa foi e como ela é, que a informava, de Francisco, foi a música que sustentou o amor complexo do menino Deus, o encantamento dos homens por tudo aquilo ao longo dos séculos. “Jesus, a alegria dos homens” é uma figuração musical ligada à ética performativa da ideia do advento. Seria muito interessante uma arqueologia das formas das músicas de Natal, desde suas origens em cantochões na alta Idade Média, até sua realização polifônica nas cantatas e oratórios renascentistas, sua civilização barroca, sua imensa expansão na arte coral de todos os tempos, até o seu redesenho, e grande influência, na canção popular de Natal, um gênero musical tão especial, tão separado de todos os demais.

Porque existe vínculo profundo, inconsciente, entre a complexidade humanizante da canção de ninar, e a canção de Natal. É a soul music branca, “White christmas”, ocidental, protegida social e eticamente, que talvez, um dia, ao receber os negros desenraizados americanos em suas capelas e igrejas, no único lugar em que naquela sociedade escravista eles podiam cantar em comunidade – diferentemente do Brasil –, impressionou um ponto da formação da música amorosa, sensual e de crônica encarnada da vida, com seu poderoso afeto e sua força de afetação, da verdadeira soul music popular americana, que tanto gosto.

Aretha Franklin e Curtis Mayfield não foram os dois únicos gênios que, sendo criadores do soul moderno, passaram suas infâncias cantando spirituals em igrejas evangélicas. E Bob Dylan, quem sabe “o branco mais negro” daquele país, pequeno Shakespeare americano, também não gravou um lindo e divertido disco de canções de Natal à toa… Encerro essas imagens do pensamento inspiradas pelo menino Deus, sugerindo que o leitor escute uma linda canção deNatal, de ninar, de Mel Tormé, o segundo cantor da era da grande canção americana depois de Frank Sinatra. Um grande músico, pianista e baterista, filho de imigrantes russos que passou a sua infância no bairro negro mais pobre de Chicago. Sugiro a imagem do Natal tradicional da classe média branca norte-americana dos anos 1950, no show de Judy Garland, em que os dois cantaram “A christmas song” de Tormé, que podemos ver hoje na internet. Ali, no limite do kitsch, na cena pacificada do grande privilégio, podemos ver ainda a arte do Natal lutando pela verdade diante do mundo já desenhado, envenenado, do culto universal da mercadoria. O nosso mundo, muito distante do de Francisco. Em seguida, sugiro que o leitor consulte o mesmo Youtube e veja a intepretação de Nat King Cole da mesma “A christmas song”. Será possível ver então uma das mais extraordinárias fusões culturais que já existiu, criss cross, como dizem os americanos: o da apropriação espetacular do humanismo pelo canto negro, o soul que também surgiu, de tantos outros lugares, aí.

Feliz Natal a todos.

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