Uma arte para os “civis”

Uma arte para os “civis”

Por que Vik Muniz faz tanto sucesso?

Francisco Bosco

A exposição de Vik Muniz no MAM do Rio de Janeiro atraiu milhares de pessoas. Veio gente de todas as idades e classes sociais, crianças e famílias. É um público bem mais variado e amplo do que o que costuma frequentar as mostras de arte contemporânea. Pode-se dizer, sem dúvida, que a retrospectiva de Vik foi o maior acontecimento cultural do verão carioca, the talk of the town. Foi, em suma, um sucesso. Sabemos, entretanto, que a arte contemporânea não costuma atrair muito público. Há regularmente mostras de artistas contemporâneos em diversos museus e galerias da cidade, e o público que atraem é bem menor e mais específico do que o conquistado por Vik. Deve-se ainda lembrar que a expo de Vik não foi um fenômeno cultural hiperfetichizado miditiacamente, como as grandes mostras que aportaram no Brasil em tempos recentes; por exemplo, as de Rodin e Monet. Tudo somado, é oportuno perguntarmo-nos: por que Vik Muniz faz tanto sucesso?

A resposta é complexa, se dá em múltiplos níveis, mas é clara. Ela deve ser procurada exclusivamente nas características formais das próprias obras. Em primeiro lugar, salta aos olhos nessas obras – quase sempre de grande impacto visual – um insuspeito valor de trabalho. A escala das obras é ora imensa, ora mínima, mas em ambos os casos minuciosa. Os Carceri d’invenzioni, de Piranesi, são refeitos com linhas e alfinetes, por meios dos quais o artista obtém os mesmos efeitos de luz, volume, atmosfera e profundidade da obra original. É um feito impressionante. E a escolha de Piranesi, gravurista de extrema perícia técnica, não é gratuita: com efeito, é uma habilidade técnica vertiginosa que ressai de quase todas as séries de Vik Muniz. Outro exemplo radical é a série das paisagens feitas com linhas. Aqui o artista utiliza quilômetros de linhas no espaço exíguo de alguns centímetros quadrados, onde consegue produzir volumes, densidades, luz e perspectiva. E ainda, na série que usa chocolate como material, Vik teve de desenvolver um exaustivo método de trabalho que viabilizasse essa opção. O chocolate perde o brilho rapidamente e, assim, para poder produzir obras que exigiriam um tempo maior de realização, o artista teve de “ensaiar” sua composição (descobrir os meios mais rápidos de executá-la), a fim de que conseguisse terminar a obra no tempo permitido pela mutação do próprio material. É um tour de force técnico.

Esse valor ostensivo do trabalho, a evidência do tempo técnico de realização da obra, é um valor pré-moderno de reconhecimento da arte. Ninguém pode contestar a habilidade técnica de um Dürer, de um Rembrandt, ou, pois o princípio é extensivo às demais artes, de Dante, de Camões, de Beethoven. Reconhecer a artisticidade de uma obra pelo seu valor de trabalho é um modo reconfortante, fácil, apriorístico (e, claro, ilusório). Reconhecer que algo se trata de um poema porque tem rimas, metáforas e metro rigoroso; ou que algo se trata de um quadro porque representa à perfeição uma figura humana ou uma paisagem – isso é precisamente o que a arte moderna revelou ser impossível, e é por meio desse lance que se produziu uma fissura até hoje aberta entre o que se configurou como um público específico, conhecedor dos códigos próprios da arte moderna, de sua história formal, capaz de fazer juízos estéticos a posteriori, e um público leigo, formado por sujeitos perplexos ou desdenhosos diante de obras cuja artisticidade não é capaz de perceber; público que é a vasta maioria das pessoas, e que alguém espirituosamente propôs chamar de “os civis”.

Circuito de significação imediata

Pois as obras de Vik acolhem calorosamente os civis. Nelas, qualquer pessoa pode reconhecer o valor do trabalho, a habilidade técnica, e deduzir daí sua artisticidade, encontrar aí um modo de se relacionar com elas. Esse reconhecimento, por si só, é ilusório: nenhuma perícia técnica garante que algo se torne arte. Mas as obras de Vik tampouco se reduzem a isso. Nelas há um princípio formal recorrente, que se poderia chamar uma relação isomórfica entre o material e o tema da obra. Assim, estrelas glamourosas do cinema têm seu rosto refeito por meio de miríades de pequenos diamantes; a associação entre a velocidade de execução exigida pelo chocolate como material enseja a recriação da célebre foto de Hans Namuth em que Pollock aparece em pleno dripping; a bandeira dos EUA é feita de grama, em dois tempos, verde e marrom seco, o material aqui, por seu caráter cíclico natural, remetendo ao outono, moral e econômico, porque passa a civilização estadunidense. Essa isomorfia sistemática cria um circuito de significação imediata, facilmente compreensível. O público se relaciona com as obras por meio dessa compreensão, e a pequena descoberta da relação entre o material e o tema ilumina a obra e garante uma dimensão prazerosa à experiência.

Mas o caráter democrático da obra de Vik ainda tem outro aspecto decisivo. Muitas de suas fotografias são recriações de obras alheias: Géricault é relido em chocolate; uma catedral de Monet é recriada por meio de pigmentos de óleo de linhaça; A escola de Atenas, de Rafael, reaparece composta por peças ligeiramente desencaixadas de um grande quebra-cabeça. A lista inclui ainda Gauguin, Pollock, Bosch, Piranesi, Boticceli etc. Mas aqui ocorre algo insuspeitado. Diferentemente do que em boa parte distingue a arte moderna, isto é, sua autonomia em um sentido radical, sua configuração como que de um código autônomo, seu voltar-se para si mesma, citando e relendo as obras que constituem sua história, ou seu voltar-se para fora da representação, da figuração, do mundo imediatamente reconhecido, diferente disso, as obras de Vik citam outras obras, mas não requerem um conhecimento prévio do público acerca delas. Nesse sentido, curiosamente, são e não são modernas. É uma modernidade sans clôture. Uma modernidade aberta. Citam, mas dispensam a citação.

Isso porque a citação sempre produz grande impacto visual, que dispensa quaisquer informações prévias, e/ou está submetida ao princípio isomórfico de que falei antes. Ao mesmo princípio também estão submetidas as séries de temática, faute de mieux, “social”: os meninos caribenhos que o artista julgou doces quando os conheceu têm seus rostos compostos por açúcar; crianças brasileiras moradoras de rua são apresentadas em cor cinza, fantasmática, que alude à sua invisibilidade social, e são emolduradas por lixo das ruas; catadores de lixo são, do mesmo modo, apresentados por meio dos materiais recicláveis com que eles trabalham. As séries de temática “social” não são, portanto, fundamentalmente diferentes das demais. O que as orienta é o mesmo princípio formal.

O que é impossível mostrar

Além dessas características das próprias obras, a proposta curatorial reforça a intenção democrática. Os textos plotados ao lado das respectivas séries têm caráter explicativo e didático. Em geral, apenas descrevem os procedimentos técnicos empregados em cada série e dão informações relativas a eventuais citações (de que as obras, como disse, prescindem). São parcimoniosos nas intervenções interpretativas, que se resumem a uma ou outra frase; muito distantes, portanto, de um discurso crítico de alto grau de abstração que se encontra em mostras de arte contemporânea. Os textos da curadoria ainda estimulam o que chamei de reconhecimento pré-moderno da arte: relatam a gênese criativa de algumas obras, como que remetendo o público ao valor, tradicional, da inspiração. Por exemplo: “Afetado pelas histórias de crianças recrutadas como soldados na Namíbia (…), Vik decidiu utilizar soldadinhos de plástico para reproduzir uma foto bem conhecida de um adolescente da Guerra Civil norte-americana”. O afeto, contudo, quem tem de revelar, ou antes traduzir, transportar para um material qualquer, é a obra. Assim falada, a inspiração se torna uma mitologia. Como contraponto, evoco aqui uma cena do extraordinário e impopular filme de Gus Van Sant Last days: nela, um possível Kurt Cobain é filmado de longe enquanto compõe uma música, a câmera não se aproxima em nenhum momento, mantém-se afastada durante todo o tempo de criação, como a mostrar que aquilo é impossível mostrar, é um lance opaco, de que a obra é o único testemunho possível.

Finalmente, devo dizer o mais importante, e que não disse antes porque não se situa na questão do “sucesso”, que me propus pensar aqui. A obra de Vik Muniz tem como fonte uma questão epistemológica: o que é a realidade? Essa questão é encenada a cada vez através da tensão entre a fotografia (suposta arte do real, por definição) e sua fabricação artificial por meio de diversos materiais que, assombrosamente manipulados, transfiguram-se em algo que é ao mesmo tempo mais e menos que a realidade. Mas não será isso a realidade?

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