Um sádico de massas ou populismo suicidário

Um sádico de massas ou populismo suicidário
Na manhã do dia 1º, Bolsonaro fez um passeio pela Praia Grande (SP) e causou aglomeração (Foto: Reprodução)

 

Estamos no primeiro dia do ano de 2021. Um vídeo foi postado por Bolsonaro com a legenda “na praia com o povo, 01/01. Praia Grande/São Paulo”. Eu me impressiono com toda a cena!

O que vemos é um homem desajeitado pulando no mar com a camisa 10 do Santos, fazendo esforço a cada braçada, seguido de seguranças esbaforidos e uma entourage descoordenada. Ele nada em direção aos banhistas, que gritam “mito”, “mito”, todos aglomerados, sem máscaras, expostos e excitados com a bravata do seu líder. Quem não ficaria aparvalhado vendo o presidente da República se atirar no mar e nadar na direção de banhistas?

Muita água vai rolar, mas já sabemos como Bolsonaro age e usa essas “imagens-atos” para produzir comandos silenciosos que alimentam seu eleitorado e produzem mídia. É tosco, primário, e por isso mesmo memético e capaz de viralizar em todos os meios.

O presidente age como uma subcelebridade, um youtuber em campanha permanente que ligou o “foda-se” (não acho palavra melhor e nem mais educada) e resolveu queimar a vela pelas duas pontas ao mesmo tempo. Há algo de desesperado em cada um desses atos, em cada braçada!

E ele faz isso com um instinto de sobrevivência política perversa, com um marketing calculado diante de uma crise humanitária que até agora matou 190 mil brasileiros – mortes que ele quer tirar das próprias costas. Bolsonaro quer se livrar dos mortos e da narrativa de sofrimento e dor de todo um país não com empatia ou políticas públicas, mas por meio de bravatas individuais, rindo dos mortos e fazendo pouco da morte.

Terceirizar as mortes

É perverso, genocida e infame cada ato em que autoriza e chancela o negacionismo diante da pandemia e da morte. Cada ato em que produz aglomeração, desautoriza o uso de máscaras, tripudia da gravidade da pandemia, do isolamento social, da quarentena, da vacina, da ciência e de todos os brasileiros que morreram.

Bolsonaro é o maior experimento da necropolítica contemporânea: desafia a morte produzindo morte! O presidente da República quer terceirizar a morte para a “esquerda”, para os cientistas, os jornalistas, os coveiros, os prefeitos, os governadores, Doria, a OMS, a China etc.

O comportamento suicida e negacionista de quem ligou o foda-se une Bolsonaro ao fatalismo e obscurantismo popular religioso: já que morre quem Deus quiser, vamos tocar a vida! Vamos para a praia, para festa, “não somos um país de maricas”, não vamos nos curvar a uma “gripezinha”, somos os machos suicidários da nação, somos os “lokos”.

Com sua agenda de bravatas, Bolsonaro pauta o discurso de toda a sua equipe e de seus ministros. Vimos esse mesmo discurso caricatural na boca da atriz Regina Duarte quando nomeada secretária de Cultura. Ela também apostou no histriônico, na cena com doses de canastrice:

“Não quero arrastar um cemitério de mortos nas minhas costas”, disse. “Sou leve, estou viva. Para que olhar para trás? Que horrível ficar arrastando cordéis de caixões. A covid está trazendo uma morbidez insuportável.”

Bolsonaro presidente foi a materialização da síndrome dos impostores na política –  o que também podemos chamar de “antisistêmico” ou “disruptivo”, é mais bonito. A cada novo ministro ou autoridade nomeada temos a mesma sensação de impostura.

O que está fazendo um militar no Ministério da Saúde? Um terraplanista adepto de conspirações no Ministério das Relações Exteriores? Um defensor da bancada do boi e do agronegócio no Meio Ambiente? Um extremista liberal na Economia? O projeto é um só: destruir o aparato do Estado e instalar uma espécie de caos-construtor de um novo mundo conservador: apocalipse e redenção.

Até 2022, cada ato de Bolsonaro será feito com o intuito de tirar das suas costas os mortos da pandemia, o que poderia fazer agindo como presidente da República: através do Ministério da Saúde, comprando vacinas e seringas suficientes, apoiando as campanhas de uso de máscaras e antiaglomerações, investindo em ciência. Tudo o que centenas de estadistas estão fazendo, mas que Bolsonaro sabota e se nega a fazer.

Fatalismo, mística e catarse

A cena em Praia Grande ecoa entre seus apoiadores, os mesmos que estão morrendo sem leitos, que enchem as covas em enterros coletivos, que são obrigados a se expor no transporte público e que têm a Praia Grande para ligar o “foda-se”. Uma catarse macabra!

Os eleitores de Bolsonaro leem seus atos meméticos de forma cristalina: “O presidente liga o foda-se e vai para a galera. Ele mostra para o povo que a liberdade está acima da sua integridade física e incentiva a população a não se render”, leio no Twitter em resposta à memética presidencial no litoral paulista.

O populismo suicidário ecoa nas redes como “homem do povo”, “loko”, um autêntico, o tosco mais verdadeiro, o valentão que representa todo um inconsciente empobrecido e sofrido: “mostra que um presidente tem que ir ao encontro do povo”. O déficit cognitivo, a celebração dos machos, o darwinismo social aceita que “triunfem os mais fortes”. Esse raciocínio fatalista, torto, e o comportamento grosso produz identificação.

Mas além, muito além da Praia Grande, Bolsonaro é um subproduto de um mundo em desconstrução, que agoniza e precisa de testosterona na veia pra se manter, que precisa da fábrica memética que serve ao negacionismo com figuras célebres, influenciadores, pastores, ideólogos como Olavo de Carvalho, para quem a pandemia é, na verdade, uma “historinha de terror” criada para “acovardar a população”, ou uma conspiração política das esquerdas globalistas para impor medidas restritivas, implantar o comunismo, chips controladores, produzir cidadãos-zumbis, tirar a liberdade etc.

Sádico de massas

Bolsonaro é um catalisador de toda uma mística popular brasileira messiânica, fatalista e violentíssima. Mas o capitão é, antes de tudo, um sádico de massas. Tem prazer em infringir sofrimento. Dotado de uma lógica de torturador, quer ver o estrago e não se sensibiliza com os mortos da Covid ou da tortura militar: “traz o raio-X da fratura na mandíbula, o calo ósseo”,  disse, referindo-se à tortura sofrida pela ex-presidenta Dilma Rousseff, tirada da presidência em 2016 por um impeachment/golpe de Estado com elogios de Bolsonaro ao seu torturador de bolso, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.

O sádico de massas, o macho das bravatas que matam encontrou a parte fatalista, conformista e masoquista de uma população sofrida, anestesiada e também outros machos-alfa igualmente sádicos e triunfalistas, “meu presidente é foda, macho, raçudo, vida loka”.

É como se a esquerda fosse os “maricas”, os fracos, os medrosos e quisesse mais austeridade e sofrimento: cancelamento do Natal, máscara, isolamento, “vachina” ideológica etc, e não entendesse a “sabedoria popular” fatalista que o populismo primário, o messianismo de almanaque ensina. Bolsonaro não se importa de nadar de braçada torta em um mar de sangue.

Eu tenho visto os filmes e relido os textos de Glauber Rocha com a sua intuição monumental do inconsciente explodido dos brasileiros pobres, beatos, líderes religiosos, políticos sádicos. Tenho lido sobre o messianismo histórico do qual Bolsonaro é uma espécie de cosplay, sobre a revolta da vacina de 1904 com tantos medos e loucuras irracionais que retornam. Imaginários não são inventados do nada, o lodo que emergiu tem um fundo.

O imaginário brasileiro anti-iluminista e violento ou “tradicionalista” se massificou, encontrou os algoritmos, as fábricas de memes, as plataformas, o Whatsapp, o submundo das redes, a idade mídia obscurantista que não tem mais fronteiras de classes ou de grupos sociais, globalizou-se. É o que apontam Angela Nagle em Kill all normies: online culture wars from 4Chan and Tumblr to Trump and the alt-right, Sayak Valencia  em Capitalismo Gore e Benjamin Teitelbaum em Guerra pela eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista.

Para entender o Brasil contemporâneo vale mergulhar na história das brutalidades, do misticismo, das revoltas populares (como Canudos, a Revolta da Vacina etc) que trazem uma energia vital que pode ser redirecionada e capitalizada como temos visto com os avanços no campo dos comportamentos, no cotidiano, no combate ao racismo e as desigualdades.

O Brasil vive um apocalipse em meio a uma floração que também está aí! São esses anos verdes e sombrios em que também há invenção e resistência numa linha igualmente grandiosa de uma cultura brasileira extraordinária que inventou outros mundos e imaginários de resistência e criação: a linha antropofágica, tropicalista, pop-filosófica, afrofuturista, dos influenciadores negros, das mulheres, dos novos corpos LGBTQI+, das periferias.

Quis a história e os eleitores de 2018 que o messianismo brasileiro extremista e fundamentalista aparecessem em sua forma patética: o bolsonarismo. Um meme-presidente caricatural com um projeto de destruição, ao lado de outras subcelebridades alçadas a lugares de comando: políticos, astrólogos, youtubers, conspiradores negacionistas, uma extrema-direita nacional em uma onda global. A disputa é pelo inconsciente, pelo imaginário, por mundos possíveis.

Olho para Bolsonaro como um profeta sem profecia, um Zelig troncho tentando se adaptar a mutações velozes, meio gamer, caricatural, meme hilário e por isso altamente midiático e eficaz. O apocalipse chegou abastardado por um clown.

Por isso acredito que uma política pop, mística, massiva e memética também será decisiva para explodir a caricatura. Bolsonaro desaparecendo nas tripas do povo para ser vomitado adiante por ele.

IVANA BENTES é pesquisadora do Programa de Pós Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ


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