Um dogmático no Itamaraty
O ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
O campo progressista vive um momento difícil, e essa realidade se deve a múltiplas causas. Uma delas talvez possa ser identificada em fenômeno mais visível nos últimos anos: a relativa subestimação, por parte desse campo político, da importância da batalha de ideias. É sintomático dessa tendência que tenha passado despercebida uma conferência proferida no último dia 7 pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, para alunos da Escola Superior de Guerra (ESG).
O ministro enxergou na ocasião uma oportunidade para refletir sobre “os conceitos que estão por trás daquilo que nós fazemos”. Seu discurso se estrutura na polaridade simplória entre duas “visões de mundo”: o “realismo” e o “nominalismo”. Enquanto a primeira se caracteriza pelo “diálogo com a realidade”, a segunda seria a concentração estrita na palavra — no “nome”. Teríamos, nesse último caso, a palavra dissociada da realidade, “o nome como uma imposição”. Ao expor essas oposições, Araújo afirma:
De um lado nós temos uma tendência ao bom senso; de outro lado o fanatismo. De um lado um pensamento aberto, um pensamento que dialoga com a realidade; de outro lado um pensamento fechado, um pensamento puramente abstrato e conceitual. De um lado o primado da verdade; de outro lado o primado do poder. De um lado, vida humana e social concebida em torno da liberdade; de outro lado a vida humana e social concebida em torno do controle.
O realismo seria, nessa perspectiva, um “pensamento aberto”, capaz de se autocorrigir no contato com o mundo real. Já o nominalismo partiria de ideias pré-concebidas. Seria “um pensamento que se desdobra por rotulagem, por estereótipos”, explica o ministro, ao que ele mesmo acrescenta: “Nós vemos isso com muita frequência hoje em dia na mídia […]: para tudo é necessário sempre colocar um adjetivo, colocar um rótulo, colocar uma caracterização, […] e isso se cola à realidade e acaba cobrindo a realidade”.
Nem é preciso dizer que, na interpretação do diplomata, as forças que compõem o atual governo representam, no plano teórico-filosófico, a corrente realista, preocupada com a adequação entre verdade e palavra, ser e valor. Essa corrente propugnaria a verdade na vida social e comunitária. O nominalismo, por outro lado — representado pela oposição —, priorizaria o poder. Nessa perspectiva, a verdade se dobra a um poder apoiado no discurso, no manuseio da palavra, concebida como algo que antecede a própria realidade. “É o conceito utilitário da verdade”, explica o ministro.
Essa primazia da palavra sobre o ser estaria dando ensejo a novas formas de conflito. “O grande conflito que estamos vivendo”, explica Araújo, “não é […] comercial ou geopolítico, mas um conflito que eu vou chamar de logopolítico – de logos, palavra. Um conflito pelo controle da linguagem e da difusão da linguagem”. Com essa teorização, o ministro desloca a “guerra cultural” para o centro de nossa diplomacia, em uma perigosa subversão dos interesses nacionais, já que as relações do Brasil com outros Estados-nação sempre foram regidas pela busca do benefício mútuo.
Na visão de Araújo, os nominalistas querem controlar o discurso para submeter a ele a verdade. Pensam que o valor é mais importante do que o ser. Os realistas, ao contrário, veem o ser como soberano. Nessa condição, ele não se encontra submetido aos constrangimentos de qualquer valor pressuposto. Com base nesse arrazoado, o ministro deduz — sem maiores mediações — a existência de uma correlação ontológica entre verdade realística e liberdade. A valorização da liberdade seria própria do realismo, uma visão da vida que aceita o “risco” inerente ao ser. Do outro lado estaria “o absolutismo na definição de determinados valores”, a tentativa de fazer com que nada fuja à prescrição estabelecida pelo discurso.
Apesar de sua eloquência em favor da “liberdade do ser”, Araújo logo adverte que ela não se confunde com uma democracia ampliada. “A liberdade é uma espécie de oceano onde navega a democracia”, destaca o ministro. Nessa visão, se a democracia se autonomiza como valor e perde seu contato com o ser, ela pode atentar contra a liberdade. Precisa, nesse caso, ser contida. O nominalismo jamais se proporia tal coisa, pois acredita na primazia do valor sobre o ser e concebe a democracia, portanto, como fim em si mesmo, “sem controle externo”.
O esforço do ministro em pensar os fundamentos de suas opções doutrinárias é, sem dúvida, louvável. O problema surge quando Araújo subverte e deforma conceitos caros à tradição filosófica a fim de adequá-los às suas finalidades políticas e ideológicas. Como se não bastasse, ainda tenta convencer o público de que são os “outros” que agem dessa forma.
Claro está que a contraposição adotada pelo ministro não é uma invenção de sua cabeça. Ele se serve de longa tradição de pensamento, a qual se prenuncia já na Antiguidade, sendo retomada com força no Medievo. Podemos mesmo afirmar que a opção por resgatar a nomenclatura de correntes filosóficas medievais reforça ainda mais o personagem “cavaleiro templário” que Araújo encena desde que assumiu — sob as bênçãos do guru Olavo de Carvalho — a chefia do Itamaraty.
O próprio Araújo admite, entretanto, que os termos realismo e nominalismo são usados de modo mais ou menos livre, sem atenção rigorosa aos consensos da tradição filosófica. Mas se esses termos — em particular o “nominalismo” — não dizem propriamente respeito às formulações de Roscelino de Compiègne ou Guilherme de Okham, sobre o que exatamente versa seu arrazoado filosófico?
Em última instância, a reflexão do diplomata contrasta dois modos do discurso argumentativo através de seus valores filosóficos: o uso retórico, definido pelo valor da persuasão, e o uso dogmático, definido pelo valor absoluto da verdade. Araújo se coloca na posição do acadêmico — no sentido platônico — e do escolástico — no sentido medieval.
Para o acadêmico ou escolástico, há no discurso
uma oposição entre o ser autêntico,
substancialmente compreensível, e as aparências
do ser, que são frutos corrompidos da interação
entre consciência e mundo, não possuindo a
dignidade da intelecção racional.
Como consequência gnosiológica dessa visão antinômica entre realidade e aparência, tem-se que o saber legítimo é contemplativo, sendo obtido por intermédio da gradativa expurgação dos elementos subjetivos oriundos das percepções, em direção à apreensão intelectual da realidade última, a qual constitui um plano recuado, encoberto pela imediatice do mundo sensível. O que temos aqui é a distinção platônica entre o conhecimento do ser verdadeiro (epistéme) e a apreensão das aparências, que perfaz a esfera da opinião (doxa).
O que Araújo defende é um esquema metafísico dogmaticamente realista[3], que estabelece uma distinção definitiva entre realidade “crua” (realismo) e aparências discursivas (nominalismo). Ora, essa distinção mostra-se completamente inviável, ainda mais no terreno prático, isto é, no campo dos assuntos que norteiam a vida comunitária e a conduta humana. Em particular, os temas da ética, da política, do direito, da pedagogia, da comunicação e da cultura, entre outros, não comportam verdades “em si”. Aqui, é preciso trocar a busca de uma “verdade” transcendente pela construção dialógica do conhecimento. Por não aceitar isso, o ministro insinua um juízo negativo sobre o valor cognoscente e moral da palavra, do discurso, da retórica.
A retórica é um saber prático que, no jogo do discurso, procura “discernir os meios de persuasão mais pertinentes a cada caso”, a fim de que se possam debater os assuntos que concernem à verdade e à justiça em um dado momento. Isso porque, na realidade da vida social, os interlocutores nem sempre são capazes de se pôr de acordo: não há nem nunca houve conceitos universais de verdade e valores válidos para todos os tempos e lugares. Essa suposição se encontra na base de todo o edifício retórico — daí sua orientação antimetafísica e antidogmática.
A retórica, filha da política e mãe da democracia, não é ignorante sobre o que seja o discurso racional e sua relação com o ser, mas recusa explicitamente o dogmatismo de um “ser em si mesmo”, que existe independentemente do discurso. Na retórica, os sujeitos interagem em ambiente dialógico, visando a produzir o consenso espontâneo sobre um discurso comum, como resultado de um jogo de influências livremente assimiladas. O uso da palavra é, no cenário democrático, a via racional de construção dos consensos — condição de eficácia moral das ações comuns.
Mesmo quando saímos do terreno prático e consideramos estritamente o campo teórico-científico, os debates mais recentes têm apontado, também aí, a importância da retórica. Na esfera dos sciense studies — para citar o exemplo de uma disciplina emergente e promissora — um autor como John Ziman declara: “Um bom experimento [científico] é uma poderosa peça de retórica, capaz de convencer a mente mais obstinada e cética a aceitar uma nova ideia e de trazer uma contribuição positiva para o conhecimento público”. Para ele, se o que distingue a ciência dos outros tipos de conhecimento é a busca incessante do consenso, então o método científico, independentemente dos seus predicados lógicos e epistemológicos, possui também uma dimensão retórica. A ciência não está fora do conjunto dos saberes sociais e historicamente construídos pela humanidade.
As oposições que Araújo pretende fazer valer
versam sobre a antiga distinção entre a epistéme
theoretiké — mais afeita a um saber matemático,
formal e contemplativo — e a phronésis — um
saber mais afeito à práxis, histórico e ético-
político.
O humanismo moderno supera essa polêmica ao se posicionar contra a “ciência da escola”, isto é, contra a escolástica. Ao resgatar os estudos clássicos, a língua grega e o caminho da erudição latina, o humanismo revalorizou a retórica clássica e constituiu um novo ideal de sabedoria humana. O caráter histórico-prático do saber foi retomado. Os humanistas não se colocam contra o realismo, mas estabelecem sobre ele uma nova interpretação. Essa leitura defende a vida ativa em detrimento da contemplativa. Trata-se de um realismo prático, e não mais dogmático.
Os juízos e discursos, no que eles têm de propriamente humanos, são a medida do que as coisas são e não são. Não será demais lembrar, aqui, o célebre adágio de Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. A máxima generaliza, para todo o domínio das relações epistêmicas entre os humanos e as coisas, o paradigma segundo o qual os aspectos práticos, culturais e históricos compõem as condições de possibilidade dos modos de ser e, portanto, da verdade. A dissolução da distinção dogmática entre realidade e aparência, epistéme e phronésis, teoria e prática, deve resultar na dissolução de toda racionalidade (e de toda moralidade) universalista e metafísica, a qual costuma implicar concepções autocráticas e ditatoriais.
Quando Araújo afirma ver em seus opositores “admiração pelo totalitarismo”, não faz mais do que lançar sobre suas próprias intenções uma espessa cortina de fumaça. Ele diz que sua perspectiva “realista” não crê em verdades absolutas. Ao mesmo tempo, garante que só seu discurso tem compromisso com a verdade, pois só ele possui a chave da compreensão de um “ser” em si mesmo. E, no entanto, “absolutistas” são os outros.
Ernesto pretende livrar o “ser” das intempéries da
“palavra”. Mas se esquece de dizer que, desde os
primórdios da tradição ocidental, tem sido
justamente a palavra o instrumento por excelência
da democracia.
O chanceler pensa poder acessar diretamente o “ser”, independentemente de suas próprias inclinações e de seu arcabouço axiológico. Claro: ideológicos são os outros.
No embate entre a retórica e a dogmática pela primazia no domínio das artes de argumentar confrontam-se duas concepções do que seja a comunicação racional. Para a retórica, trata-se da constituição de verdades comuns na prática social, sem que se possa ou deva recorrer a qualquer esfera universalista, anterior à própria interação humana. Nessa perspectiva, é racional a comunicação por meio da qual uma opinião se sobrepõe a outras com o uso da persuasão, o que implica a aceitação espontânea do discurso do orador por uma audiência. Irracional é a comunicação que intenta converter os ouvintes expurgando do discurso dos interlocutores seus componentes culturais, subjetivos e históricos, a fim de desentranhar uma “verdade” peremptória, revelada pelo orador.
A alternativa proposta por Araújo ao exercício da persuasão é o discurso doutoral de uma pretensa aristocracia do saber, que aposta na submissão involuntária dos cidadãos a desígnios pré-estabelecidos. Nesse sentido, o dogma conduz ao despotismo, ainda que esclarecido, como forma irracional da vida social. Em oposição a essa proposta, a democracia é a forma racional da vida social — e a retórica é seu instrumento.
É assim que flagramos noções autoritárias sendo sustentadas obliquamente em nome da liberdade. Tais ideias estão sendo amplamente disseminadas, e é doloroso saber que são oferecidas a oficiais das Forças Armadas. Ficamos a imaginar a conceituada ESG constrangida por formulações antiquadas e temerárias advindas do mais alto escalão da República. Os democratas precisam estar atentos. Tal qual no passado, é preciso escrutinar os fundamentos das visões de mundo. Quem negligencia o poder das ideias aprende a reconhecê-lo da pior forma possível: sofrendo inadvertidamente seus efeitos.
FÁBIO PALÁCIO é professor do Departamento de Comunicação Social da UFMA, onde coordena o projeto de pesquisa “Nas redes e nas ruas — o ciberativismo à luz do materialismo cultural”, hoje focado nas conexões entre o MBL e as jornadas de junho. Diretor nacional e presidente estadual da Fundação Maurício Grabois.
CRISTIANO CAPOVIILLA é professor de Filosofia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e doutorando em Filosofia (UERJ).