Um ano manco e o oráculo cego da poesia

Um ano manco e o oráculo cego da poesia
O poeta Diego Vinhas (Foto: Arquivo Pessoal)

 

este é um ano manco. nuvens em encaixe às pressas
como entropia de lençóis, um poente manco.
talvez tenhamos sobrevivido. há sempre muitas hipóteses:
um desfibrilador. um vendedor de enciclopédias.
um voucher para a excursão aos vilarejos encantadores
(adoecidos de turistas) onde também se ama errado.
uma farpa. uma lagartixa brincando de estátua.
em algum ponto talvez se sustente
o peso faminto do real.

O poema “Ano do cachorro”, de Corvos contra a noite (7 Letras, 2020), de Diego Vinhas, que aliás poderia muito bem se chamar de ano cão, mostra os dentes. Se alguém em um futuro distante quiser se informar sobre a instabilidade destes anos no Brasil, a poesia talvez forneça mais elementos formais e sensíveis que os editoriais de jornais assaltados pelas mãos invisíveis do mercado. De algum modo a poesia tem mostrando os dentes com vocábulos, invenções sintáticas e está lidando com “o peso faminto do real” em uma margem muito exígua de recuo. Se a poesia também é um direito de defesa, Diego Vinhas o utilizou plenamente. A começar pelo título e pela capa, Corvos contra a noite, o livro mostra os dentes, lida com o peso do real, joga com seus signos.

O autor expõe a estrutura de um cotidiano nos detalhes da violência, a começar pelo excesso de luz da cidade onde vive, Fortaleza. Uma luz que torna tangível o verso de Orides Fontela, “ao meio-dia a vida é impossível”. Diego Vinhas é um leitor dessa luz. Em 2009, ele organizou uma antologia intitulada Meio-dia, alguna poesía de Fortaleza, publicado pela editora Vox na Argentina. No papel de organizador, Vinhas decalcou parte do mapa do país, deslocando a cidade que tem nome de fortificação rumo ao sul da América Latina. Pela luz o autor consegue ver a fragilidade desse Forte, suas falhas no concreto e suas manchas na paisagem. São diversos os signos da estrutura solar que quanto mais ilumina a possibilidade de futuro, mais expõe as ruínas do passado. São ruínas que não envelhecem em paz e que até encontram lugar na inquietude de novos rostos e em certa hospitalidade de fachada. Assim, a acidez solar, para além da insolação, pode ter o efeito semelhante de imagens tenebrosas sem a necessidade de recorrer a monstros importados, pois o Brasil sabe muito bem fabricar seus próprios monstros.

O título monocromático Corvos contra a noite talvez venha da paisagem esburacada pelo sol e das manchas brancas produzidas por ela. Cabe, além disso, aproximá-lo de Ted Hughes e seu Crow: From the Life and Songs of the Crow [Corvo: Da Vida e das Canções do Corvo], pois Hughes entendeu e elaborou a perspectiva de um lirismo negativo e ontológico do corvo, opondo-o não apenas ao canto dos pássaros, mas ao homem e a Deus, cujos versos de “Corvo mais negro que nunca” soariam quase assim em português: “Quando Deus, aborrecido com o homem,/ voltou-se para o céu,/ E o homem, aborrecido com Deus,/ voltou-se para Eva,/ Coisas pareciam ruir.//Mas Corvo Corvo/ Corvo pregou-os juntos,/pregando o céu e a terra juntos-// Então o homem chorou, mas com a voz de Deus. E Deus sangrou, mas com o sangue do homem.//Então o céu e a terra rangeram na ponta/ agora gangrenosa e maldizente -/ um horror além da redenção.//A agonia não fez por menos//O homem não pode ser homem nem Deus Deus./ A agonia/ cresceu// corvo/ riu/chorando: “Esta é minha Criação,” voando a bandeira negra de si mesmo.” Há algo desse lirismo com a grande diferença que Diego Vinhas não escreveu sobre o corvo, mas seu título mantém as aves agrupadas no plural e contra a noite. O sentimento lírico – ou antilírico –  sustenta o riso que chora do corvo de Hughes pelo menos em poemas tais como “Todestrieb”, “Giallo”, “Abençoados”, “Pão nosso”, cuja indiferença do voo dos corvos não deixa de assinalar um dos versos cantado pelo poeta: “a morte, essa grande festa”.

Por um lado, a dimensão negativa do autor está marcada desde a estreia com Primeiro as coisas morrem, de 2004, e continua em Nenhum nome onde morar (2014). A preposição “contra” do título Corvos contra a noite prolonga essa morte e essa negação, marcando ainda a intensidade de um movimento comum, a saber, o de vultos que distinguem a escuridão. Em uma situação negativa a essa vem o excesso de luz capaz de interferir na própria cor da noite. Por outro, o livro partilha um sentimento comunitário de um luto coletivo em plena luz do dia. O livro de Diego Vinhas faz parte deste oráculo que é a poesia para os leitores que não buscam a salvação imediata prometida nos templos em cada esquina, nem no consolo de saber o que está se passando no mundo vindo dos jornais e meios de informação ainda com o hálito fresco dos sponsors. Livros como Canção de ninar com fuzis (2019), de Pádua Fernandes, Desterro (2019), de Camila Assad; Tudo pronto para o fim do mundo (2019), Bruno Brum; Parque de ruínas (2018), de Marília Garcia e Luto (2018), de Renan Nuernberger, pelo menos para citar alguns títulos, marcam um espaço de elaboração do luto com as palavras. Esse é outro modo de exercer a negatividade da qual poetas não se eximem. Nesse sentido o poema “Oráculo” cumpre uma função histórica no presente:

Muita pretensão
achar
que sua dor
é coletiva

muita pretensão
achar
que sua dor
é só sua

Não são poucos os poetas que entendem dessa soleira da dor e que situam seus leitores nesse espaço intermediário. Se estamos em um momento crucial para escrever poesia – e qual momento não o seria ao longo da história da humanidade? – o momento é decisivo sobretudo para ler, pois esta é uma arte de guiar um tempo manco com uma lucidez impossível –  no sentido político do uso da luz do mundo – digna do meio-dia de Orides Fontela: “A luz destrói os segredos:/ a luz é crua contra os olhos/ ácida para o espírito.// A luz é demais para os homens./(Porém como o saberias/ quando vieste à luz/ de ti mesmo?)/ Meio-dia! Meio-dia!/ A vida é lúcida e impossível.”

Eduardo Jorge de Oliveira é professor-assistente de Literatura, Artes e Media da Universidade de Zurique. É autor de A invenção de uma pele – Nuno Ramos em obras (Iluminuras, 2018), Signo, sigilo – Mira Schendel e a vivência da vida imediata (Lumme Editor, 2019).


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