Tudo demorando em ser tão ruim
O Brasil de 2021 prova que o voto é uma arma na mão do cidadão (Foto: Alan Santos/PR)
É março de novo. Para muitas famílias isso significa que há um ano estamos presos em casa, afastados dos pais idosos, sem contato direto com amigos, amores e parentes mais queridos, sem abraçar, beijar, rir juntos, segurar as mãos. Sem grande parte daquilo que constitui a insubstituível beleza da existência humana, a convivência próxima, tátil, dividindo o pão, o copo, o corpo, o espaço da nossa humana e precária felicidade.
A sensação é como se tivessem arrancado de nós, de forma brutal e covarde, um pedaço das nossas vidas. Quem vai devolver aos meninos o ano sem escola, sem amigos, namoros, aventuras justamente nesta fase que concede os melhores anos da vida? Quem vai devolver aos avós os beijos que eram para os netinhos e que ninguém passou para recolher, os abraços quentinhos que não foram entregues, os chamegos e dengos desperdiçados, exatamente quando se tem a sensação de que os anos pela frente são demasiadamente poucos? Quem vai devolver este tempo aos amores e amantes separados, sem contar os que não sobreviveram, em cujo afeto ainda se aposta, mas com o coração perenemente em sobressalto?
Pior, entretanto, que o sentimento de que fomos injustamente destituídos de uma coisa que era nossa por direito, é a sensação de que a gente passou um ano empurrando uma enorme pedra montanha acima, assumindo todo o tipo de privações e sacrifício, para então descobrir, perplexos, que a pedra voltou ao mesmo lugar e é ainda maior. Muito maior. É para sentar e chorar, em desalento.
Pior ainda é descobrir que enquanto a gente engolia o choro e procurava forças sabe-se lá onde, havia gente, gente poderosa, empurrando diligentemente a rocha de volta, com todo o peso do corpo e dos recursos à sua disposição. É para sentar e chorar, de revolta.
Um ano depois de tanto sacrifício e depois do que passamos tudo é ainda pior: o número diário de mortes, a falta de UTIs, o empobrecimento do país e das pessoas, o desespero das famílias que dependem do Estado para comer e nada lhes é garantido, a falta de vacina, a esperança que vai pouco a pouco desertando de nós. “Tudo demorando em ser tão ruim”, como diz a canção. O único que não degenera é o governo federal, que há um ano sabota, trabalha contra, boicota, prejudica, destrói, mas apenas porque o que já era péssimo nem precisa piorar.
Chega, porém, um momento em que nem o choro consola nem a indignação motiva. Houve um tempo em que a gente se chocou com os mortos da Boate Kiss, lembram? Mas só ontem aconteceu o equivalente em mortos a oito incêndios da Boate Kiss. E só conseguimos balançar a cabeça, em muda reprovação.
Houve um tempo em que o mundo ficou perplexo e horrorizado, por exemplo, com os mortos de Dachau, mas se compararmos os números oficiais do campo de extermínio por gás com o do campo de extermínio por Covid no Brasil, por aqui já morreram o equivalente a oito Dachaus em apenas um ano. E nós não conseguimos mais do que simplesmente deixar escapar um gemido triste da alma.
Sim, meus amigos, até de espanto e de horror existe fadiga. E vamos procurar não pensar nisso e apenas esperar que, nas próximas 24 horas, quando passar o lobo, não sejamos nós as ovelhas que foram levadas.
Os paranoicos perversos que governam o país conseguiram transformar o Brasil em um gigantesco laboratório em que se testa para ver quantos sobrevivem sem medidas sanitárias adequadas, sem estrutura hospitalar suficiente, sem política de Saúde nacional e sem vacina para todos. Neste campo de extermínio, os prisioneiros, mesmo tendo já morrido aos milhares, parecem que ainda não se deram conta de que estão entregues à doença que os leva, sem resistência, mil num dia, dois mil no outro, sem alarde ou sobressalto. Enquanto isso, o Rei Louco come leitões, manda todo mundo engolir o choro e ri. Sem remorsos.
Sim, meus amigos, o Brasil de 2021 prova que o voto é uma arma na mão do cidadão. Com um único voto é possível contribuir para matar 250 mil viventes em um ano, e até dois mil em apenas um dia.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)