“Ele já atravessou todos os oceanos do mundo todo”
Leia a seguir um trecho de O som e a fúria, um dos romances mais experimentais de Faulkner, que será lançado em novembro pela editora Cosac & Naify, com tradução do poeta Paulo Henriques Britto
A passagem que reproduzimos a seguir pertence ao segundo capítulo do romance, todo ele um monólogo interior de Quentin, pouco antes de seu suicídio. No trecho, Quentin relembra o momento em que tenta convencer a irmã Caddie, por quem sente uma avassaladora paixão incestuosa, a fazer com ele um pacto de morte.
“sentei-me na margem a grama estava úmida um pouco então senti os sapatos molhados
sai da água você está maluca
mas ela não se mexeu o rosto dela era um borrão branco emoldurado contra o borrão da areia pelo cabelo
sai agora
ela sentou-se então ficou em pé a saia batia-se contra as pernas dela escorrendo água ela subiu a margem as roupas encharcadas sentou-sepor que você não espreme as roupas quer pegar um resfriado
quero
a água gorgolejava em torno do banco de areia e por cima dele no escuro entre os salgueiros no trecho raso a água se enrugava como um pedaço de pano guardando um pouco de luz como a água sempre faz
ele já atravessou todos os oceanos do mundo todo
então falou sobre ele agarrando os joelhos molhados o rosto inclinado para trás na luz cinzenta o cheiro de madressilva havia uma luz acesa no quarto da mãe e no de Benjy onde T. P. estava pondo Benjy na cama
você o ama
a mão dela veio eu não me mexi ela apalpou meu braço e segurou minha mão apertou-a contra o peito o coração batendo forte
não não
então ele obrigou você ele fez você fazer você deixou ele era mais forte que você e amanhã eu vou matá-lo juro que vou e o pai não precisa ficar sabendo só depois e então eu e você ninguém precisa ficar sabendo podemos pegar meu dinheiro da faculdade podemos cancelar a minha matrícula Caddy você tem ódio dele não tem
ela apertou minha mão contra o peito dela o coração batendo forte eu virei-me e segurei-lhe o braço
Caddy você tem ódio dele tem não tem
ela levou minha mão até a garganta dela o coração dela também estava martelando ali
coitado do Quentin
ela levantou o rosto para o céu o céu estava tão baixo que todos os cheiros e sons da noite pareciam ter se amontoado ali como se dentro de uma tenda frouxa especialmente a madressilva o cheiro tinha penetrado minha respiração estava no rosto na garganta dela como tinta o sangue dela batia contra a minha mão eu estava apoiado no outro braço ele começou a se contrair e tremer e eu tive de respirar fundo para conseguir esvaziar os pulmões com toda aquela madressilva espessa e cinzenta
tenho ódio dele sim por ele eu morria já morri por ele eu morro por ele várias vezes sempre que isso acontece
quando levantei a mão ainda sentia gravetos e grama entrecruzados ardendo na minha palma
coitado do Quentin
ela se inclinou para trás apoiada nos braços as mãos entrelaçadas sobre os joelhos
você nunca fez isso fez
o quê fiz o quê
aquilo que eu o que eu fiz
fiz sim fiz sim um monte de vezes com um monte de garotas
então comecei a chorar a mão dela tocou-me outra vez e eu chorava encostado na blusa úmida dela então ela deitada de costas olhando para o céu por cima da minha cabeça vi uma nesga de branco sob as íris dos olhos dela abri meu canivete
você se lembra o dia que a vó morreu quando você se sentou dentro d’água de calcinha
lembro
levei a ponta da lâmina até a garganta dela
é coisa de um segundo só um segundo depois eu faço na minha eu faço na minha depois
está bem você consegue fazer na sua sozinho
claro as lâminas são bem compridas o Benjy já está deitado
está bem
é coisa de um segundo apenas vou tentar fazer de um jeito que não vá doer
está bem
fecha os olhos por favor”
Tradução de Paulo Henriques Britto