Trauma e transmissão
Sigmund Freud, 1926 (Foto: Ferdinand Schmutzer)
“Nenhuma geração é capaz de esconder eventos psíquicos relevantes daquela que a sucede”. Isso que Freud afirmara em seu Totem e Tabu, em 1913, cai como uma luva para entender nossa realidade atual, em seu aspecto traumático. A ideia de trauma está presente desde os primórdios da psicanálise. Situado na raiz de toda a problemática neurótica, o trauma é concebido como impressões que foram experimentadas precocemente, antes que o sujeito pudesse simbolizá-las. Essas impressões de natureza sexual e/ou agressiva são intoleráveis e não permitem quaisquer tipos de reações por parte do sujeito. Todos esses traumas insuportáveis, cuja característica principal do ponto de vista econômico é o excesso, ocorreram na primeira infância. Os efeitos dessas experiências traumáticas são de dois tipos: positivos e negativos. No primeiro caso, esforços são arregimentados para fazer com que o trauma possa valer novamente. Trata-se de recordar a experiência esquecida para assim torná-la real, como diz Freud, “para experimentar uma repetição dela desde o início, e, mesmo que tenha sido apenas uma relação afetiva precoce, reavivá-la numa relação análoga com outra pessoa”. Esses esforços reunidos no sentido de repetir uma experiência traumática são concebidos como fixação no trauma e como compulsão à repetição. No segundo caso, as reações negativas atuam em direção contrária. Há uma tendência oposta que nada quer saber e muito menos repetir algo da experiência vivida como traumática. São reações defensivas que se exprimem em evitações e que em um grau acentuado culminam em inibições e fobias. Também podemos considerar essas reações como fixações no trauma, mas com a ressalva que neste caso as tendências são antagônicas. Os sintomas neuróticos estritamente falando devem ser tomados como formações de compromisso nas quais se reúnem as duas tendências do trauma.
Mas antes de se manifestarem em sintomas, o mais comum é que essas experiências fiquem completamente esquecidas em uma espécie de amnésia infantil, não acessíveis à memória, a não ser sob a forma de lembranças encobridoras. Pode acontecer dessas vivências traumáticas na primeira infância resultarem na irrupção imediata de uma neurose infantil com a formação de sintomas. Mas o mais comum é que essa neurose transcorra de forma latente quase imperceptível. O tempo da latência pressupõe o esquecimento das experiências vividas na primeira infância no nível das pulsões sexuais. Mas essas experiências não se apagam totalmente, elas deixam traços e lembranças que a posteriori serão revividas. Com a chegada da puberdade ou mesmo em momento posterior, a neurose definitiva se instala como efeito retardado do trauma.
A questão que um dos últimos escritos freudianos, O homem Moisés e a religião monoteísta, enfrenta é justamente explicar como um acontecimento traumático pode se inscrever não apenas para um sujeito em particular, mas para toda uma cultura. Como entender a transmissão e permanência de um acontecimento que se mantém vivo geração após geração? Será nesse tão controverso livro – cujo fio condutor é a tese de que Moisés era egípcio e foi assassinado por seus seguidores – que iremos nos deparar com a articulação em certo sentido inédita entre trauma e transmissão. O protótipo encontrado no plano individual da subjetividade: trauma primitivo – defesa – latência – desencadeamento da doença neurótica – retorno parcial do recalcado é transposto para o plano geral da história da humanidade. Na história da humanidade existiram acontecimentos traumáticos de natureza sexualmente agressiva, que ficaram esquecidos. Esses acontecimentos, afirma Freud em 1939, “deixaram consequências permanentes, mas que na maioria dos casos foram rechaçados, esquecidos, e mais tarde, após longa latência, entraram em ação e produziram fenômenos semelhantes a sintomas em sua estrutura e tendência”. A memória de um povo se constitui também de elementos que sofreram a ação do recalque. Traços inconscientes do recalcado se fazem presentes nas formações culturais.
O feito grandioso da tradição mosaica de ter se consolidado após um longo período na obscuridade só pode ser entendido se considerarmos que uma tradição para se impor, continua Freud, “tem que ter passado primeiro pelo destino do recalcamento, pelo estado de permanência no inconsciente, antes que, em seu retorno, possa mostrar efeitos tão poderosos”. É essa estadia no inconsciente que irá determinar o caráter vigoroso da tradição. Para ser alvo do processo de recalcamento, a permanência de uma representação deve ser inconciliável para a consciência. O assassinato de Moisés é tomado como uma recordação traumática que sofreu ação do recalque. O período de latência cumprirá uma finalidade importante em todo esse processo: ao final a emergência da tradição religiosa mosaica se impôs com todo vigor como efeito do retorno do recalcado.
Toda essa reconstrução da pré-história judaica levada a cabo por Freud em seu Moisés é surpreendente menos pela excentricidade das teses de cunho histórico tão duramente criticadas por seus detratores e mais pelo procedimento adotado ao longo de toda a escrita de O homem Moisés e a religião monoteísta. Escrita que é testemunho na medida em que Freud estava às voltas com questões cruciais de uma vida inteira (o judaísmo, o destino da psicanálise, a doença inexorável e a proximidade da morte, o exílio forçado em Londres, o estatuto dos ideais iluministas postos em xeque com a proximidade da barbárie nazista). Que fique demarcado, entretanto, que Moisés não deve ser lido como um texto meramente biográfico ou algo do tipo. Trata-se justamente do contrário, o expediente adotado por Freud permite dizer algo que uma narrativa por si só é estruturalmente incapaz de transmitir. A saída encontrada por ele não foi apenas a fabricação de mais um mito sobre o Pai como apressadamente somos instados a concluir. Os efeitos de ruptura produzidos pelo trauma são concebidos como uma espécie de mola mestra da transmissão. Se a função do mito é integrar, dizer o impossível, em Moisés, Freud demonstra a partir de sua escrita que só podemos captar esse impossível a partir dos restos, dos fragmentos e das lacunas.
O que está em jogo nessa genealogia da tradição é uma dinâmica que pressupõe tanto o que foi dito claramente, quanto o que foi comunicado de forma distorcida, lacunar e descontínua; e que ainda assim ou exatamente por isso não deixa de provocar seus efeitos. Uma comunicação nunca se esgota apenas a partir do que foi dito claramente. Ao fazer notar que o inconsciente faz parte da história, Freud muda a perspectiva da transmissão de uma tradição que se efetiva a partir de outra lógica temporal. Os momentos de ruptura são valorizados e a dimensão da latência nesse processo é recuperada. Não se trata mais de uma transmissão passada de geração a geração, comunicada de pais para filhos, continuamente repetida ao longo da história, sobrevivendo às frequentes desfigurações. Ao contrário, neste modo de pensar a transmissão, a ruptura está em primeiro plano, aquilo que se desprendeu da história linear e bem encadeada num suceder pleno de sentido é o que importa e impulsiona. Trata-se aqui do resto impossível de se integrar e que exatamente por isso aponta para a dimensão da verdade histórica. Expressão cunhada por Freud e que não diz respeito apenas ao que foi recalcado.
Tal qual o umbigo do sonho, a verdade histórica parece demarcar a emergência de um ponto irrepresentável. Não se trata, pois, de ir atrás de provas históricas. A partir dos traços e fragmentos do passado, tal qual o psicanalista ao longo de uma análise, a construção se dá sobre as lacunas e falhas do discurso do analisante, o que termina por demarcar o lugar de um elemento fora do texto, cujos efeitos serão percebidos a posteriori. Tais efeitos não provam a exatidão da construção. Ao contrário, provam sua correção, ou seja, como afirma Lemérer, “um pedaço de verdade tenha sido corretamente apreendido”. Considerar o assassinato de Moisés um acontecimento que diz respeito a uma verdade histórica não é o mesmo que dotar esse evento de materialidade a ponto do mesmo ser capaz de explicar ou justificar o passado. Verdade histórica não é equivalente a verdade material.
Todo o modus operandi freudiano serve para demonstrar que na composição da fixação escrita dos textos bíblicos, por exemplo, é possível destacar a ação do desmentido: o texto que sobrevém não é inteiramente verdadeiro. Graças à tradição oral, entretanto, algo do que “realmente aconteceu”, algo relacionado à verdade, fica preservado e ganha força com o passar do tempo, a ponto de determinar o pensamento de um povo. Neste ponto podemos falar da força do recalcado que retorna. Mas é no falso destacado da escrita dos relatos bíblicos que Freud deduz o verdadeiro referente ao assassinato. Verdadeiro que diz respeito ao Real. Se o recalcamento opera sobre uma representação inconciliável, o desmentido é um deslocamento, uma Entstellung que se dá no nível da inscrição dos traços de percepção. Palavra e escrito não transmitem a mesma coisa. Se a palavra pode transmitir algo que se relaciona diretamente ao que foi vivido, o escrito por sua vez transmitirá qual parte desse dizer, dessa experiência e desse saber toca no real. É o que podemos constatar em O homem Moisés e a religião monoteísta. Não sem razão Rabinovich afirma que “a teoria deve se escrever não somente para ser lida pelos outros, mas para dar conta da literalidade incontornável da realidade inconsciente. Esta literalidade não é unívoca”.
Edward Said observa que qualquer pessoa que tiver interesse pelo que ficou conhecido como o estilo tardio encontrará no Moisés freudiano um exemplo clássico. “Assim como os trabalhos difíceis e ásperos que Beethoven produziu nos últimos sete ou oito anos de sua vida […], Moisés parece ter sido composto por Freud para ele mesmo, sem muita atenção às repetições frequentes e muitas vezes desnecessárias ou preocupação com a elegante economia de prosa e exposição. […] Tudo nesse tratado sugere, não resolução e reconciliação […] mas pelo contrário, mais complexidade e uma disposição para deixar os elementos inconciliáveis do trabalho assim como estão: episódicos, fragmentados, não terminados (isto é, sem polimento)”. A noção de estilo tardio trazida por Said e plenamente aplicável ao Moisés freudiano pode lançar luz sobre o que está em jogo em um testemunho. É preciso se arranjar com o que fica sem lugar e inconciliável.
Neste sentido, podemos pensar que o reaparecimento de certa nostalgia da ditadura civil-militar em um momento particularmente importante da história recente brasileira que visa resgatar parte de sua memória através do trabalho da Comissão da Verdade, nada mais é do que a dificuldade de uma nação de se haver com seus próprios fantasmas tão habilmente desmentidos e pasteurizados nos ditos discursos oficiais. A verdade histórica é traumática na medida em que carreia a emergência de um real insuportável. Os relatos recolhidos a partir do trabalho da Comissão da Verdade, para além da dimensão de verdade material que comportam, põem em cena justamente este real insuportável. A pergunta que se impõe seria: o que fazer com este real insuportável? Nem repetir, nem esquecer. É precisamente esta a função do testemunho.
CLAUDIA MOREIRA é psicanalista e doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ