A tradição do simpósio grotesco

A tradição do simpósio grotesco

“O banquete, enquanto enquadramento essencial da palavra sábia, dos sábios ditos, da alegre verdade, reveste-se de uma importância toda especial. Uma ligação eterna uniu sempre a palavra e o banquete. É no simpósio antigo que ela ocorreu da forma mais clara. No entanto, mesmo o realismo grotesco da Idade Média tinha uma tradição muito original de simpósio, isto é, de conversação à mesa”.

Mikhail Bakhtin.

Ao espectador do teatro paulistano que queira submeter suas faculdades sensoriais e intelectivas a uma experiência fascinante e radical, das mais urgentes no atual panorama da cultura brasileira, recomenda-se vivamente que vá assistir a (e participar de) O banquete, uma recriação do clássico diálogo sobre o amor que o filósofo grego Platão escreveu entre 385 e 370 a. C., realizada pelo diretor Zé Celso Martinez Corrêa para o Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Montado pela primeira vez em junho de 2009, a convite do Festival de Zagreb, na Croácia, o espetáculo – que, além de ter cumprido na ocasião temporada regular em São Paulo, passou, no ano seguinte, por várias capitais brasileiras no projeto “Dionisíacas em Viagem” – convida a entrar em cena um célebre grupo de personagens históricos e de entidades míticas, reunidos em uma grande festa da qual o público também é convidado a participar. Na adaptação do Oficina, o ator Agatão, depois de se consagrar em uma apresentação das Bacantes, recebe para um banquete em sua casa um grupo de convidados muito especiais, dentre elesviva , o filósofo Sócrates, o comediógrafo Aristófanes, o médico Erixímaco, o aspirante a filósofo Fedro, o general Alcebíades e Pausânias, discípulo do sofista Pródico. Ao lado deles, figuras de existência difusa, como a sacerdotisa Diotima, e entes divinos como Zeus, Hera e Iemanjá também participam do festejo.

A estrutura narrativo-discursiva do texto platônico está integralmente preservada na encenação, mas Zé Celso, como o também dramaturgo seguro que é, adota diante do original certas liberdades temáticas e estilísticas muito bem-vindas, tratando tão celebrada obra filosófica não com o excesso de deferência e formalidade de quem está diante de uma mãe severa e, sim, com a intimidade e a ousadia de quem se deixa acompanhar por uma bela amante e companheira, em proposição similar à de outro brasileiro íntimo da Hélade: Guimarães Rosa. O texto que Zé Celso concebeu está vazado em versos livres, coloquiais, aos quais entretanto não escapa o caráter de acentuada ritualização, preocupado em fazer com que a forma poética tenha o poder de destacar o papel performativo da linguagem humana e, por isso mesmo, essencialmente teatral. Ao retomar a oralidade da filosofia socrática, filtrada pela prosa dialógica de Platão, e fazê-la conviver com um tipo de versificação bem brasileiro, o texto toma uma palavra espontânea, mas ladina para si e se constrói em cena como um tecido complexo, cheio de sinuosidades, sustentando um discurso social vivo e caloroso, a servir de antídoto contra aquele tipo de esquizo-oralidade (a expressão é de Paul Zumthor) que a comunicação de massa tem cada vez mais produzido. Some-se a isso o fato de muitas vezes as falas se precipitarem em música, ora festiva, ora sublime, apontando uma vez mais para a performatividade da voz humana, disposta aqui a atingir uma atmosfera de gozo e de fruição a que somente o canto pode conduzir. Todos os atores se desincumbem muito bem da tarefa de cantar, mas é preciso destacar a beleza e a plasticidade das vozes das atrizes-cantoras Céllia Nascimento e Letícia Coura, responsáveis por momentos em que a arte da música se encontra de modo muito especial com a esfera da teatralidade. Igual destaque vai para os instrumentistas que estão presentes em cena durante todo o espetáculo, responsáveis pela execução de uma trama paralela por meio da qual ritmos e sons não somente acompanham os intérpretes, como também adquirem vida própria, atingindo o inexcedível estado poético de que vive a linguagem musical.

Como é mister ocorrer nas encenações do Oficina, tudo em O banquete é animado pelo sopro de um realismo vibrante. A discussão platônica original prevê duas bases de sustentação: a apresentação de mitos e de raciocínios discursivos que, entrelaçados, objetivam traçar o elogio ao amor. A proposta de Zé Celso é a de explorar os efeitos dramáticos que ele vislumbra nesta cadeia de objetos de contemplação, retirando constantemente tais objetos do plano das ideias e levando-os a serem contaminados por sua realidade própria, mediada pelo corpo dos atores. Assim, os entrechos mitológicos e a condução da argumentação são atravessados pelo clima de entusiasmo, invasão demoníaca, delírio divino tão bem conduzido em cena, disposto a fazer com que o espectador entre em contato com a verdade das coisas tais como elas se apresentam em sua corporeidade imediata, física, mas sem fazê-lo se esquecer de que também são forma pura. O Oficina pratica um teatro de acento místico, mas jamais dá as costas à realidade material do mundo e dos objetos que nele existem, a começar pelo corpo dos atores. A esse respeito, vale notar que o estilo de interpretação do grupo não abre mão do aspecto coral, coletivo, gregário, entretanto é possível a cada ator transferir ao espetáculo os resultados da pesquisa que faz a partir de sua própria interioridade. Zé Celso e Marcelo Drummond são atores-rapsodos, cujas personas em cena jamais dissimulam a auto-exposição e a auto-ironia. Camila Mota é atriz de muita sensibilidade, dona de uma presença serena (amparada por uma voz firme e por uma bela estampa) que dignifica cada cena de que participa. Sylvia Prado é seu oposto complementar: entregando-se a uma irrefreável energia lúbrica, de onde extrai os fumos de uma comicidade assaz desabrida. Ao quarteto de intérpretes masculinos que encarnam, dentre outras figuras, os principais interlocutores de Sócrates e Agatão (Acauã Sol, Rodrigo Andreolli, Roderick Himeros e Fred Steffen) não faltam beleza física e pulsão criativa. Como convém a um espetáculo que homenageia Eros. Os demais atores, embora diluídos na dimensão coral, compõem expressivas figuras em cena. Na esfera do Olimpo, estão Lucas Andrade, Tony Reis, Joana Medeiros, Ariel Roche e Eduardo Pelizzari. Na dimensão do éter, a transitar por aqui e ali, vibram as presenças de Danielle Rosa, Giuliano Ferrari, Carolina Henriques e Nash Laila.

As cenas que se sucedem durante as cerca de cinco horas que dura a encenação estão pautadas por extrema inventividade e genuíno impulso lúdico: Zé – o momo heresiarca – e sua alegre trupe de saltimbancos entregam-se ao riso franco, a muitas brincadeiras e palhaçadas, conferindo à encenação seu inequívoco caráter de festa popular. É como se Platão saísse da Academia ateniense que fundou em 387 a.C., caminhasse pela França da bufonaria medieval (sobre a qual depois conversaria animadamente com Rabelais) e chegasse ao Brasil macunaímico de hoje e sempre, no qual os artistas-criadores do Oficina costumam lançar-se à escritura da cena teatral empunhando a pena da galhofa, sim, mas a tinta da alegria. Tal como Rabelais também, estudado de modo tão acurado por Mikhail Bakhtin, Zé Celso “prefere o vinho ao azeite, símbolo da seriedade piedosa da quaresma”, porque “a seriedade do azeite de todos os gêneros elevados e oficiais” mal dissimula a misantropia, a hipocrisia e o fanatismo. (Qualquer semelhança com a gravidade e a histeria cívicas e patrióticas que vêm assolando a Terra Brasilis nos últimos tempos – meia-irmã de fascismos e totalitarismos – não é mera coincidência).

A verdade do Oficina está na ebriedade patética do vinho, beberagem dionisíaca que conduz à verdade íntima das coisas de modo livre, mundano, esfuziante. Assim é que esse banquete orgiástico propõe ao espectador entrar em contato com a verdadeira natureza do amor, dialeticamente concebida: “nem mortal, nem deus… nem matéria, nem espírito, mas algo dos dois, manifestado num poder que os harmoniza não só na constituição do universo, mas particularmente na organização e destinação da nossa vida” (J. Cavalcanti de Souza). E é por meio deste vislumbre que podemos ascender também a uma realidade superior, a do belo em si.  Em sua monumental Paideia: a formação do homem grego, o helenista alemão Werner Jaeger afirma: “O eros socrático é o anseio de quem se sabe imperfeito por se formar espiritualmente a si próprio, com os olhos sempre fitos na Ideia. É, em rigor, o que Platão entende por filosofia: a aspiração de conseguir modelar dentro do homem o verdadeiro Homem”. Não de outro modo, o espetáculo do Oficina entende a significação humanista da figura de Eros nesse simpósio como “um impulso inato ao Homem que o leva à expansão do seu mais elevado eu”.

Reencenar O banquete nos dias que correm parece de uma deliciosa provocação e de uma grande sabedoria. Há um marco divisório entre a sensibilidade utópica de um Brasil antigo, sempre com Eros e à esquerda, que vai ficando para trás (de cuja construção Zé Celso participou ativamente) e o racionalismo cínico e pragmático do Brasil atual, cortejando Tânatos e guinando à direita. É em torno da verdade emanada pelo teatro e pela filosofia que o Oficina propõe essa reeducação de nossa inteligência e de nossos sentidos, levando-nos a perceber que o Amor também se converte em figuração do bem, da justiça e da virtude. É preciso beber o vinho e não regurgitar os sabores extravagantes, ridentes, grotescos deste banquete. Do contrário, no simples trajeto de volta para casa, talvez não nos caiba outra coisa senão sermos engolidos pelo mundo.

O Banquete

Onde: Teat(r)o Oficina (Rua Jaceguai, 520, Bixiga, São Paulo).
Quando: Até 31 de maio, sempre aos sábados e domingos, às 18h.
Ingressos: R$ 50, inteira; R$ 25, meia e R$ 5, moradores do Bixiga.
Info: (11) 3106-2818.

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