Os economistas viraram as costas ao mundo? Uma entrevista com Till Düppe

Os economistas viraram as costas ao mundo? Uma entrevista com Till Düppe
O economista canadense TIll Düppe, professsor da Universidade do Québec (Foto: Divulgação)

 

Professsor da Universidade do Québec, no Canadá, Till Düppe usa termos fortes para definir os problemas que vê na prática da economia hoje: sua linguagem é ininteligível e seus profissionais se tornam insensíveis, irresponsáveis e mesmo cínicos por efeito do seu método de trabalho. Ainda mais, a separação, até mesmo desejada pelos economistas, entre o discurso econômico e outras ciências sociais, empobrece sua visão. A economia, diz ele, é algo que não vale a pena reformar.

Essas posições podem sofrer, de imediato, forte (e padronizada) resistência. Mas Till enfatiza que o seu ponto não é descartar a economia como mal-intencionada ou inútil — pelo contrário, não se opõe a que ela atue em seu campo próprio, mas aponta que precisamos ver os problemas em si, pelo que são, e encontrar os quadros de pensamento mais eficazes para cada caso.

Não é para tudo que precisamos de economistas ou de outros especialistas, afirma. Revigorar o espaço público, diz, depende de não carregar de maneira desnecessária debates éticos, morais, sociais com uma linguagem técnica. Exige criar oportunidades de raciocinar em conjunto, de seguir o bom senso, de entender um ao outro.

Nesta entrevista, o professor aborda outras pesquisas de sua autoria, que abrangem epistemologia histórica e fenomenologia: o saber econômico dos países socialistas e o que perdemos por não conhecê-lo melhor, e a necessidade de, no Brasil sob a crise da covid-19, seguir um conselho fenomenológico: permanecer concreto.

O que nós perdemos com a economia do jeito que é hoje e o que nós poderíamos ganhar se ela fosse um pensamento mais integrado às outras ciências sociais?

Por volta de 1970 há, em economia, a formação da heterodoxia e da ortodoxia – uma crítica da ortodoxia que tenta inserir a economia entre as outras ciências sociais e uma ortodoxia que pelo contrário insiste nessa separação. E [desde então] isso não muda: os heterodoxos seguem fazendo a sua crítica e, recentemente, a economia comportamental passou a concordar com a heterodoxia — “sim, nós precisamos de mais influência das ciências sociais” —, mas isso não está funcionando. E a razão disso é, na minha interpretação, que se a economia ortodoxa se abrir às outras ciências sociais, ela perde a sua identidade. Isso é o que explica a resistência da economia ortodoxa frente à integração com as ciências sociais.

Eu também sou crítico da economia heterodoxa, porque eu acredito que o que eles estão procurando na economia já está feito nas outras ciências sociais. Se você quer uma economia com um pensamento mais social, vá para a sociologia econômica — já está feito. Se você quer uma visão econômica mais rica sobre a psicologia dos indivíduos, vá para a psicologia econômica – já está feito. Se você quer ser mais aberto a métodos qualitativos, se você não quer só usar matemática ou estatística, vá para a antropologia econômica – já está feito. Você não precisa refundar a economia se em outras disciplinas tudo isso já está feito. Eu acredito que a economia heterodoxa está tentando reformar algo que não vale a pena reformar. Se você deixar os economistas [ortodoxos] por sua própria conta, o poder da economia será menor, haverá uma competição clara entre a economia enquanto disciplina e a antropologia econômica, a sociologia econômica, a psicologia econômica.

Mas essa é uma boa questão — “o que nós perdemos com a economia do jeito que é hoje e o que poderíamos ganhar”. Eu diria que nós não perdemos nada. A economia assim como é praticada poderia continuar sendo praticada, mas não teria uma posição central no discurso econômico. E o que poderíamos ganhar? Nós poderíamos ganhar um discurso mais aberto e democrático com respeito à economia, um discurso que não é separado de questões sociais, de questões morais, de questões psicológicas. Nós poderíamos ganhar a integração da economia com os outros discursos políticos e sociais.

O problema que você parece apontar é que esse discurso matematizado, formalizado, é uma espécie de escudo: fazendo-se ininteligível, a economia esquiva a responsabilidade, os economistas evitam ter de tomar posições. É isso mesmo?

Sim, de fato é um tipo de escudo, é exatamente o que estou dizendo… não é nada óbvio o motivo pelo qual a matemática seduz a economia. Não há um bom argumento de filosofia da ciência, uma razão epistemológica para isso. Por que a economia deveria ser mais receptiva à matemática do que a outras ciências sociais?

Penso que a razão pela qual a matemática se tornou tão atrativa para a economia é social, é que ela ajuda a economia a se distanciar do discurso político. É um meio de falar de assuntos econômicos sem ser suspeito de ideologia.

 

Na economia, o problema da ideologia e
dos argumentos feitos em interesse
próprio é tão forte que forçou a
formalização da área.

 

 

O problema é que a matemática é ininteligível para a maior parte da humanidade. Se você coloca algo em termos matemáticos, você pode ter certeza de que ninguém vai escutar. É como o latim na Idade Média: se os padres queriam interpretar o que Deus dissera, eles o faziam em latim, de modo que ninguém entendesse o que eles estavam dizendo e que eles mantivessem a sua estrutura de poder. Isso tudo se dá de maneira particular quando a ideologia está em alta, como durante o início da Guerra Fria, quando o enfrentamento entre capitalismo e socialismo era tão intenso que se você fizesse uma afirmação com a mínima relevância política todo mundo iria imediatamente pular em cima — “você é um comunista!”, “você é um ideólogo do livre-mercado!”. Então, para se proteger, você fala latim, você coloca as coisas em termos matemáticos. Eu não digo que essa é a única explicação da ascensão da matemática na economia, mas é um motivo subestimado e  certamente importante.

Você escreve no resumo da sua tese de doutorado: “A prática da economia, pelo menos desde a revolução formalista dos anos 1950, faz os economistas insensíveis aos motivos mesmos da sua prática, e irresponsáveis pelo que afirmam”. Os economistas foram cegados por suas teorias do mundo?

Eu não diria “cegados”, porque se você diz que eles foram cegados você suspeita alguém por trás das cenas que quer manipulá-los, alguém que quer controlar os economistas e talvez colocá-los no caminho errado. Por exemplo, alguma agenda neoliberal estaria escondida na linguagem matemática, de maneira que ninguém entende nada e todos se transformam em fiéis do livre-mercado sem nem mesmo perceber. Esse seria o argumento marxista: a matemática é um meio de esconder a ideologia. Mas não é isso o que estou dizendo.

Se digo que são cegos, isso é no sentido de que eles acreditam que a sua prática é mais científica, mas na realidade ela é simplesmente vazia. Porque se é um escudo, é um meio não de tomar uma posição, mas de evitar a tomada de posição. Nesse sentido são cegos: acreditam que são mais científicos que antropólogos e sociólogos, mas, de fato, não são.

Quando eu digo “insensíveis aos próprios motivos…”, eu falo dessa troca — para ser científico, você não pode falar sobre o mundo, não pode falar sobre a realidade, você tem de ficar, por assim dizer, dentro do seu modelo. Isso gera uma tensão entre dizer algo importante e dizer algo científico, no contexto do seu modelo. E isso cria o cinismo que você encontra com muita frequência na economia: eles não acreditam no que estão fazendo. Há um esforço muito pequeno no sentido de “eu sinto que é importante o que eu estou fazendo”.

Claro, isso é tudo muito preto no branco, mas se você comparar os esforços professionais dos economistas com aquele dos antropólogos, você verá que há muito mais cinismo na economia e às vezes algum orgulho desse cinismo — “estamos fazendo algo tão arcano e distanciado!”. Você não encontra isso na antropologia. Você vê mais um empenho em tentar fazer a coisa certa, algo intelectualmente importante.

Somos ensinados que confiar nos dados, nos modelos preditivos, na “política pública baseada em evidências” são a única saída para os problemas que as nossas sociedades enfrentam. Essa postura pode ser vista como irracionalista, análoga à ideologia ou até mesmo à pseudociência. Como você responderia a críticas desse tipo?

O ponto de partida da minha crítica é o enfrentamento entre a heterodoxia e a ortodoxia. A política baseada em evidência se tornou popular com o uso de dados e índices empíricos e são muito mais importantes do que eram há dez, vinte, trinta anos atrás. Mas eu me manteria firme mesmo nesse contexto, porque o chamado por política baseada em evidência cria a esperança de que você pode lidar com questões políticas sem se envolver com o que é considerado irracionalismo —, sentimentos, ideologia etc. Também reforça a ideia de que nós precisamos de especialistas e que temos de confiar nos especialistas. E tudo isso tudo afasta o público.

Todo indivíduo é capaz de formular posições razoáveis com base nas suas intuições. Não estou dizendo para estimular a ideologia, não, pelo contrário eu acredito que o chamado pela política baseada em evidências alimenta a ideia de que tudo o mais é ideologia — mas se você desce ao discurso imediato e tenta se sair com argumentos razoáveis, a intuição é suficiente.

 

Muitas questões decididas no campo da
política não são complexas. Todos são,
em princípio, habilitados a formular suas
opiniões sobre elas.

 

 

Há tantas questões políticas que todos têm o direito de ter uma opinião a respeito. Migração, por exemplo. Migração é um tipo de discurso totalmente carregado de ideologia. E há muito pouco conhecimento por parte do público sobre o tema. E todo mundo se sente capaz de tomar posição nesse tópico: “É bom ou ruim deixá-los entrar?”. As respostas surgirão a partir das convicções morais mais básicas… E você pode também raciocinar, entende? Não é tão difícil. Claro, você pode dizer coisas muito estúpidas — como construir um muro na fronteira com o México —, pode resultar numa fala emocional, mas… por que não? Você pode raciocinar.

Isso não devia ser debatido em termos científicos, mas diretamente, imediatamente em termos morais. Penso que muitas das questões da economia são assim também.

Você tem uma pesquisa sobre o conhecimento econômico no socialismo. A queda do “socialismo real” é posta como prova das profundas falhas de políticas de intervenção governamental e da impossibilidade da planificação. O fracasso da União Soviética realmente fundamenta essas posições, como os economistas Friedrich Hayek e Ludwig Von Mises poderiam dizer?

As razões pelas quais a União Soviética fracassou são muito mais ricas do que simplesmente dizer que economias planificadas são impossíveis porque a economia é muito complexa ou porque esse sistema é lento, não é rápido o bastante para se adaptar à mudança social. Isso é bobagem. Esse debate, Hayek e Mises nunca fecharam. O motivo pelo qual a União Soviética fracassou precisam ser discutidos em termos históricos.

Agora, o que me interessa é que essa era uma sociedade muito diferente em que a economia cumpre um papel muito diferente do que tem na nossa. Os economistas estavam, por assim dizer, realmente no comando, e, profissionalmente, eles eram diferentes, porque estavam unificados por esse sonho marxista. Eu queria entender como o otimismo entrou em conflito com as frustrações de não ser capaz de realizar esse sonho. Até certo ponto, isso é culpa dos economistas, porque eles não foram capazes de atualizar Marx, porque eles se atêm muito ao pior em Marx.

De fato, em Marx você não encontra nada sobre socialismo, você só encontra tudo sobre o capitalismo. Então Marx não era realmente um bom guia, e eles mesmo assim se prendem muito a ele. Mas por outro lado, um socialismo de estado é algo que Marx nunca quis, esse estado que desenvolve os seus próprios interesses de classe por assim dizer, em que a burocracia se torna tão imensa. Meu assunto era mais esse experimento de socialismo.

Você descreveu o pensamento econômico no socialismo como “um contexto político significativo, mas amplamente negligenciado”. Essa negligência — o que nós poderíamos aprender se ela fosse reparada? Há algo novo a aprender sobre esse conhecimento econômico que nos dizem ser “amaldiçoado” e que parecemos conhecer bem demais?

É uma pena que a história da economia, no que se refere à segunda metade do século 20, basicamente ao que vem depois da Segunda Guerra Mundial, exclua o contexto dos países socialistas. Até certa extensão, a economia socialista era muito diferente, mas noutra era muito similar ao que foi feito no Ocidente. Há grandes diferenças e grandes similaridades. Se não negligenciássemos isso… nós poderíamos pensar mais claramente sobre o contexto social em que uma teoria se torna proeminente e compreender que esse contexto é limitado. E que o modo como ensinamos a economia se entrelaça com a história, é historicamente determinado.

Mas não há algo para aprender… Eu não sou muito de respostas do tipo “ok, a teoria X funcionou ou não funcionou, portanto nós aprendemos se devemos ou não usá-la agora”. Isso seria contra todo o meu pensamento. Como eu disse antes, a maior parte das questões econômicas pode acolher o bom senso das pessoas, elas estão abertas ao entendimento em termos de bom senso. Nós temos de olhar para os nossos problemas, e nós vamos resolvê-los olhando para eles, não decidindo qual teoria é a melhor.

No Brasil, temos um ministro da economia, Paulo Guedes, que é um liberal econômico, um defensor do estado mínimo, um discípulo dos Chicago Boys que reformaram a economia do Chile. Guedes sempre foi um ponto de apoio decisivo para Jair Bolsonaro e mesmo hoje, com uma crescente fragilidade do governo em muitas áreas, ele é ainda uma fortaleza da gestão. Como você entende o apelo dessas ideias liberais?

Há, aparentemente, uma ânsia por elas. É preciso entender essa ânsia na sociedade, por que essas ideias atraem. E a resposta será algo restrito a uma determinada sociedade. Eu não conheço bem o caso de vocês… é provável que seja um fenômeno populista — é o mesmo na Áustria, na Itália e assim por diante —, há tanto cansaço frente aos burocratas e tecnocratas, frente às instituições políticas, que as pessoas buscam alternativas. Isso é inteligível, e muito poderoso.

 

Existe uma tensão clara entre a economia enquanto
disciplina e o neoliberalismo. O neoliberalismo
vem junto a uma espécie de filosofia que é
inteligível — qualquer um pode dizer “é uma
questão da minha liberdade individual que importa
tanto e por isso eu creio que…”.

 

 

Isso não se efetiva em modelos muito complexos. Essa conexão entre a economia e o neoliberalismo não é direta, precisa ser constituída historicamente, localmente. Você tem de entender como isso acontece localmente. Observe essas ideias em si e suas técnicas, como elas são reforçadas. Eu não conheço o suficiente sobre a sociedade brasileira para dar essa resposta. Você tem de analisar a história do Brasil, o que havia lá antes, quem são essas pessoas, são todas estúpidas, o que elas ganham com o apoio a Paulo Guedes e Bolsonaro?

Eles muitas vezes deram sinais de entender a pandemia e a crise social que vem com ela por meio da dicotomia “economia versus saúde”. Como você comentaria esse binarismo? O Brasil está virando as costas ao mundo da vida?

Todo mundo entende o que está em jogo e pode formular uma posição e propor argumentos. Você não precisa de especialistas, você não precisa de economistas, não há autoridade científica quanto a afirmações do tipo “nós preferimos que a nossa classe média mantenha seus ganhos financeiros e nós não nos importamos se pessoas acima de cinquenta anos vão sofrer maiores riscos de morrer”. Essa é uma escolha moral ou social muito simples. E todos têm os meios de discuti-la e isso pode ser um debate muito bom. As pessoas podem tentar entender umas às outras.

Se você entregar o tema aos especialistas, não o discutimos. Se você entregar o tema aos ideólogos, se disser: “Ah, ok, você é pró-economia, eu não falo com você, você é um neoliberal, portanto é ideológico”, isso não ajuda a nossa discussão. Ou: “Você quer salvar os velhos, o seu objetivo é a solidariedade, você é um socialista ou sei lá” — isso também não ajuda a discussão. Apenas pense a respeito: por que é importante? Trata-se de pessoas muito específicas, quem são, o que perdem? Quem está realmente perdendo quando fechamos tudo, quando estamos fazendo distanciamento social, são os lojistas, é a agricultura? E por que isso é mais importante do que as pessoas que estão morrendo? E quem está morrendo, quem tem plano de saúde, quem não tem. Apenas fala sobre isso. Todos são capazes disso.

É isso o mundo da vida, certo? O mundo da vida é permanecer concreto, não cair no abstrato. Entregar a questão aos especialistas, entregá-la ao “ah, isso é só ideologia” — isso é não olhar para a experiência. E eu penso que se olharmos para a experiência podemos muito facilmente construir territórios comuns. Podemos alcançar o entendimento um do outro.

Se isso não ocorrer, a sociedade se tornará mais dividida e não nos entenderemos. Isso é algo que a economia, no geral, cria: muito desentendimento, pessoas que não se compreendem. Como eu disse no começo, é o latim dos padres, ninguém os entende, ninguém entende de onde o poder vem, ninguém entende porque temos de agir como a Bíblia manda, porque ninguém entendem latim. Pode haver tanto abuso disso e ninguém sabe o que se passa, porque as pessoas não tem a linguagem ou não se sentem no direito de falar sobre as suas próprias experiências. Acontece o mesmo com a economia.

Duanne Ribeiro é jornalista, mestre em ciência da informação e graduado em filosofia pela Universidade de São Paulo. Outros conteúdos seus são acessíveis em duanneribeiro.info.


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