Tempo, textura: sobre o novo disco de Vladimir Safatle

Tempo, textura: sobre o novo disco de Vladimir Safatle
O filósofo e músico Vladimir Safatle, que lança "Tempo tátil" pelo Selo Sesc (Foto: Alexandre Nunis/Divulgação)

 

Se, como pensador, Vladimir Safatle dispensa apresentações, no campo musical seu trabalho ainda é relativamente pouco conhecido. E não por falta de atuação na área. Aluno de piano do nova-iorquino Jay Gottlieb – uma sumidade no repertório dos séculos 20 e 21 –, e autor de trilhas sonoras de montagens teatrais de Roberto Alvim, como Caesar – Como construir um Império (2015, baseado em “Júlio César”, de Shakespeare) e Leite derramado (2016, adaptação do livro de Chico Buarque), Safatle está lançando agora, pelo Selo Sesc, aquele que já o seu segundo CD – antes veio Músicas de Superfície (2019), pela Tratore.

Embora tenha saído há apenas dois anos, o álbum anterior é uma espécie de cápsula do tempo, que levou um quarto de século para ser aberta. Safatle, ao piano, e Fabiana Lian, vocalista, compuseram, apresentaram e gravaram dez parcerias entre 1994 e 1998, mas optaram, à época, por não lançar o disco. Ouvido hoje, o álbum soa como uma espécie de floração tardia e radicalizada do movimento que ficou conhecido como Vanguarda Paulistana – do qual eles não participaram, mas cujas referências pareciam compartilhar. Os vocais de Lian não têm impostação lírica, as influências da dupla são ecléticas, e as obras tensionam as relações entre música e texto, melodia e acompanhamento, voz e piano. Mas, de qualquer forma, pode-se dizer que ainda se encontram dentro do horizonte da canção.

Feito de obras mais recentes, Tempo tátil tem uma proposta completamente diferente. A de, como o próprio nome indica, refletir sobre o tempo musical. No release e no encarte do álbum, Safatle define suas obras como “expressões estranhas à gramática de afetos que colonizam nossas formas de experiência”, reflexões sobre “as formas de liberação do tempo musical, de seus desdobramentos no interior de um campo sem estruturas predefinidas”.

É a hora, então, de fazer uma advertência. Os desavisados que, devido ao engajamento político de Safatle, procurarem aqui algo na linha de “canção de protesto”, ou “denúncia social”, sairão absolutamente frustrados. Há radicalidade, e muita, mas ela opera em um plano formal; ninguém encontrará neste disco refrãos para serem cantados, palavras de ordem para manifestações, ou mesmo aforismas que sirvam para postagens “lacradoras” nas redes sociais.

A partir de 22 de janeiro, Tempo tátil começou a ser lançado paulatinamente em singles, no formato digital – uma estratégia que vai até 19 de março. A imprensa já teve, contudo, acesso a todas as 13 faixas – vocais, instrumentais, e com ocasionais efeitos eletrônicos – do disco, que, pela brevidade, convidam à comparação com haicais.

A primeira, O solfejo de nossas filhas, faz lamentar que o disco gravado e mixado no segundo semestre de 2018 não tenha podido, devido aos percalços ocasionados pela pandemia, ser lançado em 2020. Afinal, esse ready made musical de Safatle, lendo um texto de sua própria autoria enquanto toca, ao piano, o célebre Allegretto da Sinfonia No 7, de Beethoven, teria funcionado como bela homenagem aos 250 anos de nascimento do compositor. Por outro lado, a alteração da percepção de temporalidade causada pelo confinamento e quarentena conferem significado adicional a uma frase como “difícil é passar vinte minutos quando o tempo perdeu sua costura, quando os instantes se descoseram”.

Mais adiante, Safatle afirma: “há um vento que traz as frases que não aceitarão serem esquecidas pois brotarão no solfejo das nossas filhas com a força milagrosa da memória soberana do que não precisa ser sequer vivenciado para existir. Ai daqueles que nada querem saber da soberania do que brota no solfejo de nossas filhas”. E, ao final, ouvimos Valentina Ghiorzi Safatle, filha do compositor, solfejar o tema beethoveniano.

Além de exploração do tempo, pode-se definir a pesquisa musical de Safatle também como investigação de texturas. Como, por exemplo, em Espaço liso, quando a viola de Paco Garces, o violoncelo de Rafael Ramalhoso e o piano do compositor parecem antes se suceder do que se sobrepor.

O clima da composição serve de introdução perfeita para a obra seguinte, O amor vai desterrar nossos corpos, sobre texto em alemão de Paul Celan, onde piano, violino (Renan Vitoriano) e voz novamente soam mais de forma sucessiva do que simultânea. O luxo, aqui, é a presença de Caroline De Comi, que já desfilou seu talento de soprano coloratura em alguns dos principais palcos brasileiros, mas que também demonstra compromisso com a música erudita de invenção. Nas texturas esparsas da obra de Safatle, De Comi não raramente tem que cantar a capella – exibindo um timbre cristalino, dicção perfeita, capacidade de expressão e pleno domínio do idioma germânico.

Em seguida, Safatle toca suas Três peças para gestos ao piano, miniaturas em que a retórica de Satie parece encontrar a concisão de Webern, recebendo ainda um ligeiro tempero minimalista. A fisionomia das obras é um pouco distinta do Metaesquema, também para piano solo, que ouviremos mais adiante.

Um aspecto estimulante da escuta desse disco é que, quando você acha que já pode imaginar o que vem em seguida, Safatle sapeca-lhe uma surpresa. Instância e explosão opõe uma figura rítmica insistente ao piano a inquietantes repiques de bateria de Igor Willcox, trazendo uma inesperada inflexão roqueira ao álbum.

O uso da voz em  O amor vai desterrar nossos corpos difere consideravelmente das canções de Música de superfície, e, em Três peças para piano e literatura, temos uma espécie de mini-ciclo vocal. A mezzo Cristine Guse enfrenta com galhardia o desafio de interpretar textos em três línguas diferentes: Golpes que não são ouvidos de uma vez (de Scott Fitzgerald, em inglês, com sabor minimalista), Tijolos em sístoles e diástoles (de Heiner Müller, em alemão, de concisão desconcertante) e Para além da grande baixa (de Paul Eluard, em francês, com escrita pianística sugestiva e onírica).

Se o interesse, em Estruturas paralelas, reside basicamente no jogo polifônico entre o fagote de Ivan Nascimento e o piano do compositor, o Quarteto no 0 encerra o álbum de forma exuberante, quase festiva. Com 05:31 (a faixa mais longa do disco), trata-se de uma colorida ambientação minimalista em torno de uma das obras mais impactantes do compositor norte-americano Steve Reich: It’s gonna rain (1965), peça eletroacústica que se serve da voz de um pregador pentecostal, descrevendo o Juízo Final. Movimentado, cinético e linear, o quarteto de cordas (sob direção de Evan Rothstein) contrasta com o caráter fragmentado e rarefeito de várias faixas anteriores.

O disco deveria ter ainda uma décima-quarta composição: Ariel, sobre poema homônimo de Sylvia Plath, com texto declamado por voz feminina e pontuado pelo piano. Contudo, os herdeiros da escritora norte-americana vetaram sua aparição em disco. É de se torcer para que Safatle, em algum momento, consiga contornar a interdição, e divulgar mais uma obra interessante de seu peculiar mundo sonoro.

Irineu Franco Perpetuo é jornalista e tradutor, colaborador da Revista Concerto.

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