Temer e Bolsonaro e a disputa pela agenda do crime

Temer e Bolsonaro e a disputa pela agenda do crime
(Fotos: Alan Santos e Fabio Rodrigues Pozzebom/Arte Revista CULT)

 

 

As pessoas estão apavoradas com o crime violento. Não é de hoje que este pavor mantém a violência urbana como uma das três preocupações principais dos brasileiros, retroalimentado continuamente seja pelo fluxo de informação dos velhos e novos meios de comunicação seja pela própria experiência urbana. Em geral, os brasileiros acham que acima das deficiências dos serviços públicos de saúde e educação, da pobreza e até da tão propalada corrupção pública, o que mais degrada a qualidade da sua vida é o risco iminente de ser morto violentamente ou de ver alguém do seu círculo familiar ou de afeto ser assassinado, ferido, assaltado, estuprado.

A política sabe muito bem disso. Assim como sabe que as pessoas tomam decisões eleitorais, ou resolvem se apoiam ou não autoridades ou políticas públicas, em conformidade com as suas “preocupações principais”- algo que em Comunicação Política se chama agenda do público. A agenda pública costuma mudar entre uma eleição e outra, mas se mantém o fato de que quem identifica a preocupação principal do momento e oferece uma narrativa, um personagem para o papel e uma resposta em forma de discurso, plano ou providência tem grandes chances de ganhar a eleição. O atraso do Brasil, juntamente com o horror aos “privilegiados” do Setor Público (marajás) e o desprezo pela política, deu a maioria a Collor; o pavor da inflação elegeu Fernando Henrique Cardoso; Lula convenceu a maioria de que o grande problema nacional podia ser resumido na questão social e emplacou duas eleições.

Na eleição presidencial de 2015/2016 (tivemos uma, não foi?), as preocupações com a corrupção política e com a incapacidade administrativa de quem governava foi o que permitiu o enorme apoio popular à condenação política da presidente recém-eleita (eu ia escrever golpe, entre aspas, mas soube que agora só podemos nos referir aos acontecimentos de 2016 como “a Revolução vitoriosa para a restauração da moralidade pública e da democracia”). Neste período, a crise econômica e a corrupção constituíram o centro da agenda da sociedade e praticamente monopolizaram a atenção pública, o vocabulário e a discussão da política. O que quer dizer que quem não falasse desses temas, não fizesse julgamentos e interpretações dos fatos com base nesses assuntos ou não aparecesse com uma resposta a esses problemas não era visto nem notado.

À preocupação com a crise econômica se poderia responder de vários modos, naturalmente, mas o caminho preferido foi a combinação da narrativa da austeridade (cortes, demissões, diminuições de despesas, congelamento do gasto público) com a narrativa das “reformas necessárias”. Temer apostou todas as suas fichas nisto e manteve-se na crista da onda por um período consideravelmente extenso. Restava a narrativa da corrupção política, imperiosa no ciclo de 2014 a 2016. Sobre esta, contudo, o ilustre Michel Miguel Temer, a sua turma e os seus feitos não tinham nada a dizer, uma vez desde a origem do seu governo ficou claro que o presidente e os seus auxiliares eram parte do problema da corrupção política brasileira, não a solução. E quando se inaugura o Ano Janot, 2017, o que poderia restar de discurso moral de Temer foi completamente destruído na inundação de áudios, vídeos, depoimentos de testemunhas e acusações do Ministério Público Federal.

Foi então que Bolsonaro correu por fora e tomou a dianteira, com um truque verbal simples: transformou o tema da corrupção em um discurso moral sobre a degeneração dos políticos. A corrupção virou um tema de fundo, usado basicamente para alimentar o antipetismo de que ele precisa para mobilizar e motivar a militância digital, mas o centro da história era, agora, o discurso da autenticidade: Bolsonaro não é um político como os outros; Bolsonaro é grosso, tosco, sujo, feio e malvado, mas é verdadeiro e tem coragem.

Em 2016 e 2017, portanto, temos duas narrativas e dois atores para dois diferentes papeis: Temer com a preocupação em deixar um legado de homem da austeridade e do ajuste do Estado, doa a quem doer; Bolsonaro como o único político autêntico desta nação cujo sistema e instituições da política afundavam na lama. Nenhum dos atores era capaz de fazer o papel do outro: Michel Miguel era visto como um político corrupto, de forma que não se lhe concedia autoridade moral para falar contra o sistema ou a favor de medidas contra a corrupção; Bolsonaro, o bronco, não tinha o “physique du rôle”, a aparência para o papel, como se diz no teatro, para o papel de alguém que entendesse patavina de política econômica. Ambos serviam apenas para um papel e eram tolerados por aqueles que achavam que este papel resolvia a sua preocupação principal.

Mas Bolsonaro pelo menos se dava bem em um terceiro tema: o crime. Como me disse uma fonte esta semana: “Não é questão de ser contra ou a favor do Bolsonaro. O fato é que ele é o único que faz campanha para a redução da maioridade penal, fim da progressão penal, penas maiores para estupradores, é a favor do porte de armas, etc. Ninguém defende essas coisas dentro do Congresso”. “Ninguém” é um exagero, mas a solução casca grossa para o tema do crime (que é a representação preferida dos brasileiros) é o tema para o qual Bolsonaro tem resposta, discurso, imaginário e vocabulário. É onde se sente em casa e é o papel para o qual ele tem a aparência necessária.

Em 2017, como disse, as denúncias de Janot e do jornalismo sobre os costumes não republicanos da nova cúpula do governo destroçaram a credibilidade de Temer para o tema da corrupção. Além, disso, as narrativas da crise econômica e da corrupção perderam força, por conta da exaustão, talvez. Mas principalmente porque não foram apresentadas, pelos atores em cena, as respostas no volume e na intensidade necessárias para que se fizessem sentir os efeitos imediatos sobre a vida das pessoas. Por fim, as condições políticas não pareciam favorecer o impopular discurso da austeridade às vésperas das eleições de 2018. Temer ficou impossibilitado de manter-se na órbita da resposta à crise, mas também, naturalmente, não desejava encerrar precocemente, no início deste ano, o governo que lhe caiu ao colo pelo impeachment. “As reformas de que o Brasil precisa” eram o que mantinham em movimento a bicicleta em que o governo se equilibrava e era tolerado; sem elas, Temer não faria sentido. É assim que ele precisou exorbitar e avançar sobre o território temático e de representações do bolsonarismo. Ao que estamos assistindo nesses dias, é, justamente, dois atores disputando o mesmo personagem.

Se Bolsonaro tem uma posição consolidada sobre a solução casca grossa para o problema do crime urbano, Temer tem a caneta presidência e o conhecimento das brechas e de interpretações maneiras da Constituição para satisfazer os seus interesses. Temer é “constitucionalista”, isto é, um exímio conhecedor de atalhos constitucionais para driblar obstáculos legais. Bolsonaro pode ser militar, mas Temer será o cara que levou as Forças Armadas (o que significa, no imaginário popular, supremacia em armas e homens, capacidade de revidar à violência do crime) para a favela e para enfrentar, a tiros, o tráfico. O capitão pode ser o cara que defende porte de armas e castração química de estupradores, mas Michel Miguel foi quem, cansado de um mero Ministério da Defesa, criou um Ministério do Ataque, para “enfrentar a bandidagem”. Bolsonaro quer armar “homens de bem”, mas foi Temer quem criou o Ministério da Bala, tudo de que o Brasil precisava, segundo a solução simplória mais difundida no país, para acabar com os problemas de Segurança Pública.

O bolsonarismo entrou em desespero e subiu o tom. Carlos Bolsonaro publicou esta semana no Twitter: “Bolsonaro nem é presidente ainda e faz o vice do PT [Temer] tocar nos temas que tornam o capitão popular, mas não passa de um oportunismo frouxo e desesperado. Então surgem os lambe-botas da imprensa fazendo coro aos amigos amorais completando a escória que sempre nos desinformou!”. Agora é guerra: uma contra a bandidagem, outra para ver quem é o dono do tema. Para os bolsonaristas, o que está em disputa, no âmbito da solução “prendo e arrebento”, é a versão raiz, autêntica, de Bolsonaro, e a alternativa nutella, café com leite, oportunista e frouxa, de Temer. Que pode ser desqualificada, do ponto de vista “do capitão”, pelo fato de que o Exército terá as mãos atadas pelas frescuras legais e as firulas dos Estado de direito.

Elevando a tensão a este nível, o que parece ser um roque genial no xadrez político, incorre em um risco muito alto para Temer. Em Bolsonaro são só palavras e discursos, mas Temer implementou como política pública a sua compreensão de que a violência do crime se resolve com a violência legítima do Estado ou a exibição da capacidade estatal de ser violenta contra o crime. As incompatibilidades entre este desenho de Forças Armadas combatendo o crime e os direitos civis já começaram a aparecer. Inclusive no contraste entre a cultura do “vamos rebentar a bandidagem” e as Constituições liberais. Neste quadro, o Brasil, aparentemente, está decidido que ou se segue a Lei e respeitam-se direitos e garantias individuais ou se implementam políticas eficazes de segurança pública, que as duas coisas seriam incompatíveis. Naturalmente, restaria responder por que imposição da Lei e Estado de direito funcionam juntos em todo país civilizado do mundo, mas aqui não se compõem.  Mas estas são perguntas indesejadas neste momento em que a violência urbana se tornou um problema tão emergente que chegamos a ter dois personagens centrais disputando o mesmo papel.

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