Estante Cult | Tecelã de múltiplos sentidos

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Em Eros, o doce-amargo: um ensaio, a poeta, tradutora e professora canadense Anne Carson, especialista em literatura grega antiga, traça um amplo panorama das interpretações que o sentimento erótico adquiriu junto à literatura, filosofia, história e psicanálise ao longo dos tempos, tomando como ponto de partida os famosos versos de Safo: “Eros mais uma vez afrouxa-membros me torce/ doce-amargo, impossível de resistir, criatura a roubar”. Chamam a atenção na leitura da obra o profundo conhecimento que a autora demonstra em relação às áreas pelas quais transita e sua admirável capacidade de estabelecer relações muito adensadas entre diferentes textos de épocas diversas.

Em cada um dos 34 capítulos – todos curtos, vale destacar –, Anne Carson apresenta um determinado matiz do impulso erótico, desenvolvendo uma argumentação bastante sólida a respeito daquela ideia, exemplificada por excertos literários e filosóficos extraídos do que é canônico na cultura ocidental, apresentados inicialmente em suas línguas originais (boa parte deles advinda do grego clássico) e vertidos depois para o inglês (a partir dos quais a tradutora da presente edição, Julia Raiz, os verte para o português).

No exíguo prefácio, a autora, a propósito da evocação de um texto curto de Kafka, “O pião”, estabelece uma surpreendente, porque elíptica, relação entre metáfora, prazer e entendimento, cujos fios entrelaçados irão atravessar o ensaio de ponta a ponta. O doce-amargo do amor é a pura expressão da contradição e do paradoxo: o prazer e a dor. “… eros imprime o mesmo fato contraditório: amor e ódio convergem no desejo erótico”. Por quê? – pergunta-se a autora, apresentando a resposta já no início do capítulo seguinte:

A palavra grega eros denota “querer”, “falta”, “desejo” pelo que não está lá. Quem ama quer o que não tem. É, por definição, impossível para o amante ter o que deseja se, assim que ele tem, não quer mais.

Tal acepção convida Anne Carson, nesse momento, a passear pela filosofia de Simone Weil, pela poesia de Petrarca e de Emily Dickinson e pela psicanálise de Jacques Lacan para retornar, ao fim do percurso, a mais um fragmento de Safo, a poeta de cuja obra emanam os principais questionamentos da ensaísta e para a qual eles acabam por retornar.

A recuperação do itinerário que conduz ao nascimento do “eu” é um dos momentos mais emblemáticos do livro, quando Carson compatibiliza as contribuições da psicanálise com as da poesia para ampliar o entendimento do que seja a experiência erótica.

Primeiramente, a autora evoca a teoria freudiana, que atribui a noção de “eu” a uma decisão fundamental de amor e ódio. (“A distinção entre o eu e o não eu é feita por meio da decisão de reivindicar tudo o que o ego gosta como ‘meu’ e rejeitar tudo o que o ego não gosta como ‘não meu’”). É a partir dessa definição ontogenética que o filólogo clássico alemão Bruno Snell vai explicar o surgimento do individualismo na sociedade grega, na virada do período arcaico para o período clássico, creditando aos poetas do período arcaico o exercício da ambivalência que divide a alma, flagrada, assim, em assombro ao experimentar as contradições de eros. Trata-se, segundo Snell, da “descoberta da mente”, por meio da qual o eu irá se consolidar.

É a obstrução que torna conscientes todos os sentimentos pessoais… [o amante frustrado] busca a causa dessa obstrução em sua própria personalidade.

E eis também que a época arcaica assiste ao surgimento de uma das mais importantes inovações culturais da humanidade: a alfabetização. À proporção que o universo áudio-tátil da cultura oral converte-se no universo das palavras no papel, para o qual a visão é o principal veículo de informação, uma reconfiguração da faculdade da percepção começa a ocorrer na vida dos indivíduos. Segue-se, então, uma ótima discussão sobre as diferenças entre a cultura oral e a cultura letrada, que muito tem a dizer aos tempos contemporâneos.

Na parte final do livro, que compreende treze capítulos, Anne Carson examina detidamente o Lísias de Platão para tratar de uma acepção particular de eros, o “logos erótico”, a partir da qual amar e conhecer passam a ser verbos que se equivalem. Tomando por base a observação de que tanto Sócrates quanto Safo descrevem Eros com imagens de asas e metáforas de voo, a ensaísta afirma que uma cidade sem desejo é uma cidade sem imaginação, porque nela as pessoas só pensam no que elas já sabem:

Na cidade sem desejo, [os voos da imaginação] são inimagináveis. As asas são mantidas cortadas. […] Buscar algo a mais do que os fatos vai te levar para além desta cidade e talvez, como para Sócrates, para além deste mundo.

Misto de teoria e poesia, Eros, o doce-amargo: um ensaio é o primeiro livro de crítica literária de Anne Carson. Nascida de sua tese de doutorado, a obra foi publicada originalmente em 1986 pela editora da Universidade de Princeton. Em 2002, a autora foi a primeira mulher a ganhar o T.S. Eliot Prize pelo livro The beauty of the husband, que a editora Bazar do Tempo anuncia para dentro em breve. Ainda pouco publicada entre nós, Anne Carson produz um tipo de ensaísmo ousado, cultivado e vibrante, feito de fagulhas elétricas que se convertem em irradiações sensíveis e intelectuais ao mesmo tempo. Nada mais apropriado para uma teórica da literatura que é também poeta, para quem apaixonar-se é também conhecer e vice-versa.


ESTANTE CULT | NOTAS
Paulo Henrique Pompermaier

A partir da morte de tia Eluma, empregada doméstica em uma cidade fronteiriça entre o Brasil e o Uruguai, a narradora de Louças de família reconstrói a linhagem de sua família materna até a primeira ancestral conhecida, em um movimento que a faz compreender melhor a si e à sua trajetória familiar ao mesmo tempo em que desvela os mecanismos de uma sociedade assentada no preconceito, nas distinções e nas assimetrias de suas relações raciais. A tensão entre a história individual e uma apreensão coletiva é metaforizada já no título, pois no armário de louças da família “se confundem tiranos e subalternizados, negros e brancos”, como registrado na quarta-capa da obra. Autora de destaque no cenário literário do Rio Grande do Sul, Eliane Marque iniciou sua carreira literária na poesia, com o título Relicário (2009), e mantém a sensibilidade poética mesmo com a escrita em prosa. É o que o leitor percebe logo nas primeiras páginas de Louças de família, com uma dicção ousada e incomum que mistura português, espanhol e iorubá para apreender a complexa trajetória de sua protagonista, nascida em uma fronteira latino-americana mas enraizada em África.

As duas pungentes epígrafes de Meu irmão, eu mesmo – uma de Antonin Artaud afirmando seus “gritos de homem ocupado em refazer sua vida” e outra do Marquês de Sade acusando os dissimulados e decentes de não ousarem “extrair do coração humano, para exibir aos nossos olhos, suas monumentais contradições” – dão a tônica do novo romance memorialístico de João Silvério Trevisan. Afinal, se a relação de Trevisan com Cláudio, seu irmão mais novo, sustenta toda narrativa, subjaz-lhe a sempiterna presença da morte: do narrador, que descobre estar infectado com o vírus HIV em 1992, aos 48 anos, e do irmão, diagnosticado com câncer linfático no abdômen, que o levaria a óbito em 1996. No entanto, essas duas dimensões paradoxais da existência – a vida em pulsão e deslumbre no amor fraterno e o terror inalienável da morte – entrelaçam-se e se descobrem mutuamente, ecoando as “monumentais contradições” de Sade: “Assim, agradecer a um câncer linfático ou ao vírus HIV pelas descobertas que nos proporcionaram devia ser tão natural quanto agradecer à vida por nos dar a dor e o amor em doses indissociáveis”, escreve o narrador.

Reunião de quatro peças teatrais do dramaturgo e educador Ed Anderso: Os dois e aquele muro, Para duas, Piso molhado e Dois por um Bordeaux, todas produzidas na década de 2010. Como salienta Dirceu Alves Jr. no prefácio de Estudos sobre a perda, as peças têm em comum a “exposição de situações mal resolvidas, originadas em famílias repletas de imperfeições e sentimentos contraditórios, que, por vezes, precisam da muleta da imaginação como alívio”. Em Os dois e aquele muro, assistimos ao crescente suspense psicológico no encontro entre dois homens que, após se conheceram pela internet, saem juntos para trocar uma suposta encomenda. Para duas recorre ao nonsense e ao absurdo para abordar os conflitos entre uma filha e sua mãe, que volta a procurar a primogênita após décadas de ausência. Na comédia Piso molhado, os conflitos sociais são encenados pelo encontro da cantora de boate Selma e pelo encanador Osvaldo, responsável por consertar um problema hidráulico da boate. Dois por um Bordeaux, único texto da coletânea que ainda não foi encenado, retrata as dificuldades e conflitos de um casal às voltas com a insatisfação profissional e as discordâncias do casal em relação ao filho deles.

Escritas entre 2020 e 2022, as 48 crônicas de Depois da chuva, estreia literária de Clarisse Escorel, retratam o período da pandemia de covid-19 alterando o corrente foco da tragédia para adotar um olhar que privilegia a percepção das ruas esvaziadas, dos silêncios da cidade paralisada, das angústias pessoais e de memórias familiares que se entrecruzam à escrita das crônicas – em um “saudável equilíbrio entre as claves objetiva e subjetiva”, como escreve Ana Maria Machado na orelha do livro. “No conjunto das crônicas”, continua Machado em sua apresentação, “grandes temas ou detalhes miúdos se sucedem em textos de qualidade, quer tratem do piano ou da vizinha barulhenta, de cigarras ou de fantasmas recém-chegados, dos efeitos de uma chuvarada no Rio, do encontro emocionante com a grande escritora admirada ou da promessa de notícia que insiste em interromper a rotina cotidiana”.


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