Teatro On line x Teatro Pobre

Teatro On line x Teatro Pobre
O diretor polonês Jerzy Grotowski (Foto: Reprodução)

 

 

Nos anos 2020 e 2021, durante a pandemia de Covid-19, mais precisamente no período de isolamento social, em diversas regiões do Brasil, a comunidade teatral buscou soluções para se manter trabalhando mesmo com os teatros fechados e as pessoas confinadas em suas casas, evitando algo que é vital para o teatro, respirarmos o mesmo ar. Foi justamente sobre a respiração coletiva que se fez a ameaça de contaminação global e letal por um ainda hoje misterioso vírus descoberto na China nos estertores da primeira década do milênio e que dizimou até agora mais de 5 milhões de pessoas em todo o mundo em cerca de 2 anos. Mais de 600 mil destas no Brasil.

A prática chamada de Teatro On Line consistiu em realizar performances nas principais redes sociais como o YouTube e o Instagram, após um processo de criação que, quando envolvendo outros participantes que não só o ator, era integralmente realizado em plataformas de reunião digital como o Google Meet e o Zoom. A transmissão via dados é muitas vezes bem sucedida, mas inúmeras vezes é interrompida pela perda de sinal, o que causa transtornos como o atraso no envio da voz, o congelamento da imagem ou mesmo a perda de conexão, o que desqualifica a atenção e a concentração do espectador.

Escolher Jerzy Grotowski para pensar o teatro que se fez – que se pôde fazer – durante o período de pandemia é adequado? Porque não se precisaria de três problemas esmiuçados para supor que o teatro pandêmico, para usar uma expressão rápida, não seria teatro para o diretor polonês Jerzy Grotowski que, morrendo em 1999, se tornou um dos imortais do teatro. Com uma teoria e uma prática tão importante quanto a de Constantin Stanislavski, diretor russo considerado o maior e mais eficiente sistematizador do trabalho do ator, Grotowski foi capaz de revolucionar a ideia do que seja teatro com uma busca incansável e muito bem fundamentada de um teatro ritual em que o ator é, mais do que tudo, um elemento da natureza, do ecossistema, da Terra e do Tempo. Buscando a essência do teatro, Grotowski buscou, completamente consciente disso, a essência do que nos torna humanos.

Considerando esse ponto fundamental, friccionar o Teatro de Grotowski com o teatro pandêmico pode ser uma afronta, mas também é, no entanto, exatamente essa fricção, ou talvez até essa repulsa entre os dois materiais, que pode tornar irresistível tentar justapô-los – afinal, desde tempos imemoriais, o teatro é conflito.

Se o diretor de teatro inglês Peter Brook, ao comentar uma das maiores obras de Grotowski, Acrópolis, no documentário El Teatro Laboratorio de Jerzy Grotowski, menciona que o campo de concentração é o maior pesadelo, o mais incompreensível pesadelo do seu tempo, tendo a considerar o fenômeno comportamental que se refere ao uso compulsivo das redes sociais durante o período de pandemia, mais precisamente do isolamento social, guardadas as devidas proporções, o material mais intrigante, perigoso e revelador desse início de século, na verdade, início de milênio. Se nos campos de concentração o terror foi a invenção de um edifício que, segundo Hannah Arendt, reunia o presídio, o manicômio e a fábrica para produzir cadáveres em larga escala, o fenômeno das redes sociais foi reunir num mesmo objeto portátil televisão, terço e espelho, capaz de nos distrair das operações de necropolítica que se utilizaram da pandemia para gerar uma tempestade global de cadáveres, a maior parte deles de idosos.

Sustentada pela necessidade genuína de isolamento social para conter a disseminação do vírus, a não presença dos corpos no mesmo tempo e espaço, com todos os seus atributos sensoriais como as fruições do corpo, o cheiro, o calor, a energia vital, a linguagem corporal sutil relativa às sinapses que se formam no encontro de mínimos sinais como o suor, o ritmo que altera o significado dos gestos e os olhares cujas matizes desafiam os poetas chegando ao indizível, foi rapidamente compensada por um tipo de presença instantânea, transmitida através de dados, que se baseia na imagem de uma pessoa e na emissão da sua voz, e se pretendeu uma presença real. Essa presença, editada como uma cena, porém sem necessariamente alguma profundidade artística ou compromisso intelectual, seria, talvez, uma espécie de fake news de nível pessoal, admitida e desejada por trazer benefícios de ordem emocional, considerando a crise em curso, ou simplesmente narcísica. Mediada pela luminosidade chapada dos ecrãs e a transfusão de dados em tempo praticamente real, essa presença poderia causar uma sensação densa e fugidia de compartilhamento de espaço – ou um prazer insuspeito na conveniência de não compartilhar o mesmo espaço senão de maneira virtual.

De alguma forma, desse modo, estariam todos os usuários de redes sociais, também chamados de seguidores – dado que em determinadas redes sua identidade se baseia em seguir e ser seguido –, de posse de algum ímpeto performático, como se todos tivessem tido a oportunidade de libertar seu ator guardado. E, por outro lado, é como se o ofício do ator tivesse, então, recebido uma nova característica que o separa do elemento fundante do seu ofício e formação: a presença física, ela mesma.

Vou tentar avançar em três pontos razoavelmente específicos.

1. O Teatro Pobre x O Teatro On Line

O Teatro Pobre tem como princípio eliminar tudo aquilo que pode ajudar, mas que não é essencial ao ato teatral. Sem cenário, iluminação, figurino ou trilha sonora, o Teatro Pobre pretende dar aos atores a oportunidade da máxima vulnerabilidade para, desse estado, extrair a máxima potência.

A relação com espectadores pretendia-se direta, no terreno da percepção e da comunhão.

O que poderia haver do Teatro Pobre no Teatro On Line?

Os artistas de teatro tiveram que dispensar recursos como a iluminação e o cenário, recorrendo a trilhas sonoras caseiras e figurinos tirados dos armários dos familiares. Naturalmente, os artistas de teatro foram forçados a abrir mão do espaço físico comum ao espectador. Mas na maioria dos casos, procurou-se manter o horário para a apresentação.

Aos poucos, a precariedade do Teatro On Line se mostrou indesejável. Não se pode dizer que esse teatro pretendia fazer frente à concorrência do grande mercado da pandemia, as plataformas de streaming. Porém, lenta e convictamente a produção dos artistas de teatro se aproximou dos critérios e dos recursos do audiovisual. Primeiro, exibindo peças pré-existentes gravadas em vídeo. Depois, gravando performances criadas durante a pandemia em vídeo e apresentando com hora marcada nas redes sociais e venda de ingressos antecipados.

Nessa leva, muitas pessoas, a maior parte habitantes de pequenas cidades, viram teatro pela primeira vez na vida. Ou acharam que viram. E se não tivemos os seus aplausos, tivemos seus comentários anotados com entusiasmo e muitos emojis numa faixa à direita da tela onde se passava a peça. Donde se pode concluir que, embora estivéssemos todos ali, conectados por uma plataforma digital, não compartilhávamos a atenção exclusivamente voltada para o conteúdo exibido, como se faz no teatro. Estávamos agindo junto com os atores, comentando livremente.

O fato é que aos poucos, o que poderia se parecer de alguma forma com o Teatro Pobre de Grotowski se tornou uma manifestação artística chamada muitas vezes de híbrido, por conter elementos do teatro, principalmente um tipo específico de atuação e de texto, e elementos do audiovisual, como o uso de locações, a direção de fotografia, a edição e, muitas vezes, a pós-produção farta em efeitos visuais.

2. O Ator Santo x O Ator Verificado

Procurei perceber as diferenças cruciais do processo criativo do Teatro Pobre e do Teatro On Line no que tange seu elemento mais essencial, o ator.

Como sabemos, Grotowski advoga o ator santo – aquele indivíduo que se engaja na investigação de si mesmo para se tornar um criador. Esse engajamento exige dele a destruição de todos os estereótipos até aflorar sua verdade pura.

O ator do Teatro On Line, quando muito bem intencionado, se envolveu numa busca de certo modo inglória pela catarse ou, no mínimo, pelo ritual. Se deu a testar os limites do ritual, como fazê-lo atravessar a tela e nos fazer estar realmente juntos? Praticamente todas as religiões se deram ao mesmo desafio, missas, cultos e giras foram realizados para poucos ou para quem chegasse através de transmissão de dados ao vivo. Ninguém jamais poderá dizer ao certo qual a qualidade da atenção dispensada a esses eventos. A medida do tempo de engajamento se dá somente pela permanência de um IP – identidade de um computador na rede – num determinado site ou conteúdo, também identificado por um endereço digital. Mas o IP logado só é capaz de gerar um número, nada mais. A concentração que é a única escada capaz de levar à catarse não se pode medir por ele – o que, diga-se de passagem, contraria os sonhos do comércio da atenção, que a pretendia em pacotinhos de 10, 30, 50 ou 100 reais, a famosa venda de engajamento.

Mas, então, teria saído dessa imensa vulnerabilidade que é estar na frente de uma câmera portátil, sob uma luz circular fria que se marca em todos os olhos de como a um outro tipo de gado, fazendo um ritual para ninguém ou para alguém que realmente acha a coisa ridícula e só assiste para mostrar aos amigos a que ponto chegamos, teria sido justamente esse ponto de vulnerabilidade, que nos fez delegar a veracidade da nossa própria identidade à empresa que vende o conteúdo que produzimos de graça com a esperança de nos tornar alguém importante para alguém, mas que é muitas vezes senão uma performance rasa da nossa própria intimidade editada até virar mentira?

Será a fake news não um mecanismo de produção de notícias falsas, mas um meio de vida que consiste em nos forjar melhores do que somos?

Mas e a dor? Como realizar o ritual que atualiza o tempo, que resgata a essência, que nos torna o que sempre fomos, que nos revela em nosso verdadeiro lugar em comunhão, como propôs Grotowski, se negamos a dor de estar prescindindo do que nos é essencial? Chegaremos a algum lugar sem cuidar juntos das nossas feridas, sem sentir o cheiro delas?

O Ator Verificado não verifica a si mesmo. Sua palavra não basta. Ele é verificado pelos algoritmos planejados por técnicos em Tecnologia da Informação que se esforçam de sobremaneira para tocar com cálculos algum tipo de Verdade coletável e passiva de se tornar um produto.

Enquanto o Ator Verificado se obriga a ter uma carga de selfies que garantam o engajamento em seu life style, ele mergulha de cabeça no tsunami e se enrosca na rede. Se dedicando a não só enviar uma imagem estereotipada de si mesmo, mas a produzir ele mesmo seu próprios estereótipos, ele se condena a uma imagem da qual talvez nunca mais possa se ver livre.

Falta perguntar qual seria o sentido de ser um Ator Santo, como propôs Grotowski, numa sociedade que nada tem de blasfema, que se quer inteiramente profana? O Ator Santo só faria sentido se houvesse um real interesse na morte. Terceirizada a morte para os velhos e os números de vítimas do Covid-19, o Ator Verificado encontra seu lugar no centro de um mundo frígido.

3. O real x O virtual

Para Grotowski, o teatro só terá importância se experimentar o real, tendo desistido de fugas e fingimentos do cotidiano.

Mas o que é o real?

Bem antes da pandemia, cheguei a ouvir de um executivo de uma das mais poderosas redes sociais responder à minha inquietação quanto a elas com a pergunta Mas o que é presença? Naturalmente, respondi como uma mulher de teatro: Estarmos juntos no mesmo tempo e no mesmo espaço, e ele replicou: Mas o que é espaço, o que é tempo?

Me calei cheia de dúvidas. Se estamos nos falando através de uma tela e nos vendo e ouvindo separados por imperceptíveis átimos de segundos e se é lógico que o espaço virtual poderia, sim, por que não, ser espaço em si, conceito que Einstein sustentaria facilmente, o que restaria de nossa grandeza?, como mostrou o coro a Creonte, em Antígona?

Mas isso foi bem antes da pandemia e pensei que se chegássemos ao lugar que aquela conversa apontava, isso seria um problema em 30 anos. Talvez 20. E que, por ora, bastava observar como a coisa poderia estar se montando, se é que ela estava se montando de fato.

Quando a única solução para a pandemia se tornou evidentemente o isolamento social e quando ficou claro que essa única solução era uma tsunami na qual se poderia pescar de rede – rede tecida com fios de silício – tive a sensação de que o mundo sugerido por este amigo poderoso fora antecipado e a lembrança da conversa me sugeriu que talvez a coisa tivesse se dado de maneira muito mais premeditada do que parecia.

Anos depois, aqui estou de volta ao Templo dos Ancestrais, me havendo com Grotowski e tentando entender o Auschwitz da minha época ou ao menos se posso compreender o contexto atual como o Aschwitz de minha época ou se precisaremos avançar até isso.

O fato é que o ser humano jamais negou conhecimento. Trotamos bravamente em direção aos escombros da civilização, a fim de criar com nossos gestos algo que talvez até já existisse, mas que não era criação nossa. A virtualidade do real é uma dessas coisas. Temos o mundo dos sonhos, a imaginação, a intuição, o psiquismo e a magia, atributos desde sempre humanos. Conhecê-los não foi o suficiente para nos libertamos das amarras da ideia de que o real se compõe de matéria densa. Preferimos inventar a realidade virtual e hoje estamos de frente para a difusão do metaverso e sua popularização que nos levará em breve a algo como um Teatro em Realidade Virtual. Mas que tipo de problema isso representará se nesse mesmo período provavelmente teremos cérebros híbridos de matéria orgânica e neurochips?

Conclusão inconclusiva

Segundo Jerzy Grotowski, o grande trunfo do teatro é ser um ato gerado no encontro entre pessoas, o que o torna também um evento biológico. A realidade do teatro é instantânea e se dá de maneira fisiológica, na respiração conjunta.

Qual terá sido para o futuro a solução que demos para o teatro no momento em que tivemos que prescindir justamente da respiração conjunta?

Se fomos bem, terá sido porque conseguimos nos expor aos riscos. Se fomos mal, terá sido porque não usamos o período de confinamento como uma caverna, não usamos a treva da existência, como sugeria Hannah Arendt, o lugar onde nenhum spot de luz chega para sentir a dor de estarmos nos comportando como uma espécie doentia que sufoca a si mesma em busca de narcísica superioridade. Se fomos mal é porque não tivemos coragem de lidar com o cheiro do sangue e do pus dessa dor de sermos o que somos e talvez produzir o teatro que possa dizer ao mundo a verdade que ele insiste em não ver.

Se eu tivesse que levar a Jerzy Grotowski a descrição de como fizemos teatro durante o período de isolamento social, talvez o fizesse com grande constrangimento. Tentando manter em nível aceitável o fato de termos feito teatro à custa do próprio teatro, na medida em que, se por um lado, tínhamos a convicção de que poderíamos prescindir de todos os recursos que nos ajudam a fazer teatro, mas não são essenciais a ele, prescindimos inexoravelmente da única coisa que Grotowski considerava essencial, a presença humana.

A fim de tentar esgotar a discussão com o mestre, eu lançaria como um David em direção à sua gigantesca testa a única pedra que me restaria: Jerzy, nunca estivemos tão frágeis.

Marcia Zanelatto é dramaturga, roteirista e escritora. É autora de dezenas de peças teatrais, sendo as mais recentes Infância Roubada; Menines; Genderless – um corpo fora da lei; Eles não usam tênis naique e os musicais Merlin e Artur – um sonho de liberdade e Deixa Clarear – homenagem à Clara Nunes.

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