Stanley Kubrick e seus filmes-eventos
Um diretor com mania de inscrever seus filmes na agenda social
Sérgio Rizzo
Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, e Tropa de elite (2007), de José Padilha, exemplificam, com tintas nacionais, uma espécie bem particular de longa-metragem, que o mercado cinematográfico batizou de “filme-evento”. Alguns deles foram concebidos para isso; outros, no entanto, são beneficiados pelas circunstâncias. Todos se assemelham na capacidade de se inscrever no debate social.
Os jornais e revistas não lhes dedicam apenas o espaço convencional, na forma de crítica e reportagem sobre o lançamento. Abrem também espaço para artigos que explorem aspectos polêmicos do filme, convidam os realizadores a escrever em defesa da obra, às vezes com réplicas e tréplicas. As emissoras de TV e rádio fazem o mesmo e, à sua maneira, o incluem por algumas semanas na pauta. Portais de notícias, blogs e listas de discussão amplificam o debate na internet. Como resultado de tanto movimento, conversa-se sobre o filme em pontos de ônibus e mesas de bares. Fica no ar a sensação de que é preciso ver, afinal, o dito cujo. Caso contrário, você está “por fora”.
O fenômeno se intensificou nos últimos anos, em geral graças a produtos da indústria cinematográfica norte-americana que desembarcam simultaneamente em dezenas de países e ocupam parcela significativa de seus circuitos de exibição. Como tendem a ser novos episódios de franquias, eles se beneficiam do efeito de recall na mente do consumidor, que já sabe do que se trata sem a necessidade de muitas informações, e que sua presença é novamente aguardada na bilheteria. Essa mecânica transformou a trilogia O senhor dos anéis e as séries Homem-Aranha, Harry Potter e Piratas do Caribe, por exemplo, em empreendimentos milionários cujas receitas são obtidas também em diversos outros guichês que não apenas as salas de cinema. Onde for possível comercializar algo relacionado a um filme-evento, haverá um produto qualquer à espera do consumidor. Não surpreende que crianças e adolescentes sejam o público preferencial de tais estratégias. Nessa idade, o apelo de consumo se traduz em desejo de integração social: se todos os colegas de escola têm o caderno X ou o videogame Y, não posso ficar de fora, mãe. E tome complemento de mesada.
Uma expedição antropológica em busca de indícios dos ancestrais do “filme-evento” contemporâneo apontaria para Nascimento de uma nação (1915), de D. W. Griffith, que contribuiu para formatar o negócio de acordo com as coordenadas que hoje conhecemos muito bem. Com três horas de duração, três núcleos dramáticos simultâneos e a pretensão de falar a respeito da formação dos EUA a partir dos acontecimentos da Guerra Civil (1861-1865), essa superprodução se oferecia ao espectador com a promessa, reforçada depois pelo bate-boca, de que “você nunca viu um filme como esse”. Justificava-se, assim, a majoração do preço médio do ingresso praticado nos EUA, salto que jamais se teria a coragem de promover novamente: em vez dos 10 centavos habituais que pagava para entrar em sessões corriqueiras, o espectador se viu obrigado a pagar um dólar para assistir a Nascimento de uma nação. Depois dele, diversos outros grandes espetáculos se dirigiram ao público com a ênfase da obrigatoriedade, como …E o vento levou (1939), épicos religiosos na linha de Os dez mandamentos (1956) e Ben-Hur (1959), e produtos da “nova Hollywood” como Guerra nas estrelas (1977) e E.T. – O extraterrestre (1982).
Entre os diretores e produtores com sensibilidade especial para arquitetar projetos com essas características, Stanley Kubrick merece destaque especial. Com exceção de seus três primeiros longas-metragens (Fear and desire, A morte passou por perto e O grande golpe), que caracterizam o período de aprendizado de um fotojornalista talentoso iniciando-se no cinema, seus projetos sempre foram orientados, entre outros critérios, pelo de potencial para repercussão. Se o material parecia fadado a gerar polêmica, então poderia se tornar um filme de Stanley Kubrick. Ninguém imaginava ainda o uso do termo “filme-evento”, mas já era algo muito próximo a isso o que ele se especializou em fazer a partir de Glória feita de sangue (1957).
Para muitos, seu quarto longa-metragem na direção sobrevive ainda hoje como um dos principais dramas de guerra já realizados pelo cinema. Kubrick e seu então parceiro, o produtor James B. Harris, se interessaram pela adaptação do romance de Humphrey Cobb porque, inspirado em fatos verídicos (e escandalosos) da I Guerra Mundial e na experiência do próprio autor no front, fornecia a base para um filme-denúncia que tomaria o partido de soldados injustiçados contra a insensibilidade de oficiais franceses.
Méritos cinematográficos à parte, a estratégia funcionou. Glória feita de sangue permaneceu proibido na França e na Suíça até 1970. Não deu lucro, mas rendeu a Kubrick o prestígio que o levaria, por indicação do ator Kirk Douglas, a substituir o veterano Anthony Mann nas filmagens já iniciadas de Spartacus (1960). Era apenas um diretor contratado, alguém de segundo escalão na hierarquia hollywoodiana do sistema dos estúdios.
Sem obter o respeito dos profissionais mais experientes, e pouco interessado em conquistá-lo, o diretor se isolou e aprendeu a lição que balizaria o restante de sua carreira: sem controle, em cinema não se tem nada. Jamais verbalizaria outra lição, a do “filme-evento”: sem material de impacto na mão, não se vai muito longe. E Kubrick, como se sabe, foi.
O impulso decisivo para sua trajetória independente veio com Lolita (1962), baseado no romance escandaloso que Vladimir Nabokov havia publicado em 1955 na França. Kubrick e Harris o leram enquanto estavam envolvidos em Spartacus e concluíram rapidamente que o material era incendiário. Resolveram vender os direitos sobre O grande golpe à Universal para levantar os US$ 150 mil necessários à compra de Lolita e de Gargalhada no escuro, outro romance de Nabokov, com situação semelhante. Ambos temiam que, nas mãos de um aventureiro, Gargalhada fosse adaptado e lançado antes de Lolita, esvaziando o teor polêmico do filme.
Ainda que o resultado da adaptação tenha sido comportado em comparação com o livro, sobretudo em virtude das limitações impostas pelo Código Hays (o código de auto-regulamentação da indústria cinematográfica dos EUA, que vigorou por mais de três décadas, até 1967) e do conservadorismo do grande público norte-americano, Lolita se tornou mais um “filme-evento” cuja bilheteria se beneficiou, entre outros fatores, da reação de conservadores religiosos. De acordo com alguns deles, que espalharam sua mensagem por igrejas de todo o país, os fiéis que assistissem ao filme cometeriam um “pecado”. Nada melhor para a publicidade do filme do que essa sugestão quase irresistível de transgressão.
No auge da “guerra fria” entre EUA e URSS, Kubrick se interessou pelo romance Red alert (também lançado com o título Two hours to doom), de Peter George, sobre uma hecatombe nuclear, e decidiu comprar os direitos, desta vez sem a companhia de Harris, que decidiu seguir em carreira solo como diretor. Acreditava, mais uma vez, ter um potencial “filme-evento” nas mãos. Foi só no desenvolvimento do roteiro, no entanto, que ocorreu a ele transformar o material em comédia de humor negro, satirizando o aparato militar de ambas as potências. Mais uma vez, teve os meios de comunicação a serviço do filme: quem esse Kubrick pensa que é para brincar com assunto sério? Como a década mais transformadora do século 20 já estava na rua, Dr. Fantástico (1964) encontrou o seu público entre todos os que partilhavam da idéia de que não se pode entregar o controle do planeta a meia dúzia de políticos e militares.
Outra disputa entre EUA e URSS, desta vez em torno da corrida espacial, levou Kubrick a acreditar que havia terreno para um filme de ficção científica de contornos mais “realistas”, que fosse além da chegada à Lua, então iminente, e considerasse que, em futuro não muito distante, o homem estaria desbravando (e até mesmo colonizando) pontos mais distantes do universo. Sem a esperança de que ele fosse aceitar, convidou o escritor Arthur C. Clarke a participar do projeto. Clarke, no entanto, adorou a idéia e, a partir de seu conto “The sentinel” (1948), desenvolveu com o cineasta o roteiro de 2001: Uma odisséia no espaço, que viria a se tornar um clássico, igualmente amado e odiado, e cuja força simbólica persiste ainda hoje.
Seu derradeiro “filme-evento” seria talvez o maior de todos: Laranja mecânica (1971), adaptado pelo próprio Kubrick do romance homônimo de Anthony Burgess, distopia sobre um Reino Unido futurista em que uma gangue de jovens pratica atos de violência. Grandioso em sua concepção e ambíguo em sua representação do problema, ele sobrevive como um dos melhores exemplos, talvez o melhor, para discutir a violência da imagem e a imagem da violência. Diversos países – entre eles o Brasil, então sob o regime militar de 1964 – o censuraram. Na Inglaterra, foi o próprio Kubrick quem decidiu retirá-lo de circulação, em represália contra a decisão de alguns juízes de proibi-lo em suas regiões. A polícia britânica registrou incidentes supostamente inspirados em cenas do filme; em ao menos um desses casos, houve uma vítima fatal.
Com Laranja mecânica, a sensibilidade de Kubrick para inscrever suas obras na agenda social parece ter se esgotado. A repercussão de seus filmes seguintes – poucos, diante da média da primeira metade de sua carreira – teve mais a ver com o prestígio então acumulado pelo cineasta do que com o potencial de provocar debates e oferecer visões inusitadas de temas de grande interesse. Barry Lindon (1975) foi um drama histórico baseado em romance homônimo de William M. Thackeray, O iluminado (1980) procurou reinventar o filme de horror a partir de um argumento de Stephen King, e Nascido para matar (1987) elegeu a Guerra do Vietnã para falar da brutalidade de todas as guerras (e da natureza violenta do homem, tema recorrente em Kubrick). O cineasta morreu antes de entregar a versão final de De olhos bem fechados (1999), baseado em romance de Arthur Schnitzler. O lançamento póstumo reforçou a idéia de que um dos mais eficientes criadores de “filme-evento” acabou por se tornar, ele mesmo, um “cineasta-evento” que se sobrepunha, com sua imagem cuidadosamente cultivada de artista recluso e perfeccionista, aos próprios filmes.
Sérgio Rizzo
é jornalista, crítico de cinema da Folha de S.Paulo, professor da PUC-SP