“Sou a minha ficção”

“Sou a minha ficção”

Eduardo Simões

Convidado da próxima edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho, Péter Esterházy (1950) é descendente de uma família aristocrática húngara. Debruçou -se sobre sua genealogia em Harmonia Caelestis (2000).

Em seguida, ao descobrir o envolvimento de seu pai com a polícia secreta durante o regime soviético, voltou-se para a autobiografia com Revised Edition [Edição Revisada].

No Brasil, lançará outro romance de tintas bem pessoais, Os Verbos Auxiliares do Coração, em que fala da morte da mãe.

Nesta entrevista à CULT, Esterházy revela que encara a si mesmo como matéria de sua ficção e diz não ver esgotamento na literatura autobiográfica.

CULT – Em seus primeiros trabalhos, o senhor lidou com temas autobiográficos. Eles ainda são matéria para seus livros?
Péter Esterházy – Todo escritor pode repetir a famosa frase: “Madame Bovary sou eu”. Dito de outra forma, eu me encaro como material para a escrita. Acredito que isso está mudando agora – meu livro Keine Kunst [Nenhuma Arte] demonstra tal coisa –, mas isso me parece ser um processo lento.

O que significa confrontar-se com sua própria biografia? Os temas são apenas matéria para a ficção?
A sua formulação está exata: matéria para ficção. Portanto, não se trata de um processo de autoconhecimento. Não quero saber “quem eu sou”, mas sim, por meio do “eu”, representar algo, criar. Não faço diferença entre ficcional e não ficcional, entre realidade e invenção. O fato de que isso não é bem assim veio à tona ao escrever Edição Revisada. Constatei que existe, sim, uma realidade, e não apenas palavras, como eu sempre gostava de afirmar. Mas esse livro tem um status diferente de todos os outros. Ao escrevê-lo, tive a sensação de que não tinha escolha, tinha de escrever aquilo que vivenciei à época, os documentos estavam lá e comprovavam que meu pai havia colaborado com a polícia ou com a Stasi [polícia secreta da Alemanha Oriental].

O escritor português Lobo Antunes disse que uma pessoa nasce com um “número limitado de livros”. Não é também esse o caso de livros que partem da autobiografia?
Sim e não. Depende do autor. Por exemplo, Proust atravessou razoavelmente bem uma vida inteira com sua minguada matéria autobiográfica. Acho que não depende da matéria em si, mas sim do olhar que com que a pessoa a contempla. Algumas obras são, de fato, apenas, uma forma de repetição de anteriores, mas outras se tornam interessantes justamente por isso, porque a mesma coisa é dita de outra maneira, com a sabedoria da idade. E aqui não falo de mim – ainda não percebo qualquer sabedoria em mim!

O senhor menciona o pontilhismo das artes plásticas para descrever a fragmentação de algumas de suas obras. Trata-se aí de distintas vozes narrativas que “contracenam” em seus livros? Um exemplo ideal de tal fragmentação seria seu livro Uma mulher, recém-lançado no Brasil?
Pensei assim ao escrever Uma mulher. Que cada fragmento de texto isolado, portanto, seria um quadro, uma vida, um ponto. Mas o conjunto provê, então, um quadro maior. Meu primeiro livro, Harmonia caelestis, também trabalhou com esse efeito.

Na Hungria, o senhor vivenciou uma ditadura. Como observa os últimos acontecimentos no Egito, Líbia e Costa do Marfim?
Quando se vive em uma ditadura, sabe-se que elas serão eternas. Mas aí, como por um milagre, sempre resulta não serem eternas. Um milagre assim está acontecendo agora nesses países. O mundo está mudando neste momento.

Como avalia o papel da Hungria, visto como um dos “tigres do Leste” na Europa?
Como um tigre inofensivo. Ou um tigre com dívidas internas muito elevadas.

Como vê as relações entre Rússia e Hungria, após todos os anos em que seu país foi um satélite da União Soviética?
Espero que se tornem cada vez mais normais e pragmáticas. Acredito que o ódio natural que se tinha contra a União Soviética agora já passou.

Alguns críticos afirmam que não há mais literaturas nacionais, e sim uma literatura influenciada pela globalização. Como avalia a literatura hoje?
Eu a vejo do ponto de vista da língua. E a língua não é global. Em português, eu escreveria livros completamente diferentes dos que escrevo agora. E uma frase em português escrita agora tem muito a ver com frases em português escritas em séculos passados. Chamo isso de literatura nacional, que vai permanecer. Todo o resto é verdade: há poucos leitores, ou os leitores leem outras coisas, muita coisa em inglês etc. É preciso pensar no leitor, mas nem tanto.

Como avalia a obra de autores húngaros, como o veterano Imre Kertesz e a “novata” Teresia Mora, que traduz seus livros para o alemão?
Kertész é não apenas meu amigo, mas um autor muito importante para mim – também por sermos tão diferentes. Escrevemos um livro a quatro mãos, Eine Geschichte, Zwei Geschichten (uma história, duas histórias, de 1994), que demonstra essa profunda ligação. E Mora é não somente uma genial tradutora dos meus romances, como uma colega de primeira categoria. É especialmente interessante para nós, húngaros, porque é alemã, escreve em alemão, mas também é húngara, viveu na Hungria até os 19 anos, e a matéria com que trabalha nos é muito conhecida.

O escritor húngaro Sándor Márai se tornou cult no Brasil por sua ligação com a cultura brasileira, que lhe rendeu o livro Veredito em Canudos. Há influência dele em suas obras?
A grandeza de Márai me aparece mais em seus diários. E acho muito bom que, ainda que tardiamente, seus livros tenham chegado ao mundo tão bem. Era uma escritor muito inteligente, refinado. Talvez não haja influência direta, mas o universo de seu pensamento se aproxima do meu, e também gosto de citá-lo.

Tanto o húngaro quanto o português são idiomas estrangeiros “difíceis” para a literatura mundial. Há relativamente poucos tradutores. Em português, fala-se sempre que trair e traduzir têm as mesmas raízes etimológicas. Como isso lhe soa?
A mesma relação existe em húngaro: “fordítani” (traduzir), “ferdíteni” (algo como mentir). Sim, pode-se dizer que algo se perde, mas não se pode fazer nada em relação a isso.  Pode-se apenas ter a esperança de que aquilo que permanece seja interessante. Porém, às vezes a tradução também é um enriquecimento, o livro mostra uma cara em uma língua estrangeira que, “em casa”, não é conhecida.

Qual o papel da matemática, que o senhor estudou e com que trabalhou, em seu processo de trabalho?
Difícil dizer. Talvez uma determinada ordem em meu caos venha daí. Eu escrevi uma peça musicial sobre [o pintor flamengo] Rubens, cujo título não existiria sem o estudo da matemática.

O que tem em mente para sua participação na Flip? Dizem que o senhor faz fantásticas leituras a partir de suas obras…
Já estive na América do Sul, mas não no Brasil. Não sei exatamente o que me espera. Quanto às minhas habilidades como leitor, receio que não possa brilhar no Brasil. Tentarei silenciar-me de maneira inteligente.

O que conhece da literatura brasileira?
Não conheço nada da literatura brasileira contemporânea. Li Jorge Amado – Dona Flor e seus dois maridos e Jubiabá.

Em 1985, o senhor viu as seleções de futebol do Brasil e da Hungria jogarem. Vários autores buscam identificar no esporte aspectos das sociedades. Em seus livros, o futebol tem algum papel?
Como assim, “viu jogarem”? Vamos deixar algo bem claro: a Hungria ganhou de 3 a 0 do Brasil, e meu irmão caçula, que na época jogava para a seleção húngara, fez o terceiro gol. Já escrevi bastante sobre futebol, porque eu mesmo jogava (há pessoas sérias que dizem que eu teria sido melhor jogador do que meu irmão, o que naturalmente não é verdade, mas eu gosto de ouvir isso). Tudo que eu sei sobre a seriedade e dignidade do jogo em si, eu aprendi com o futebol. Mas ver o futebol como metáfora… Na maioria das vezes considero um exagero. Não escrevo sobre futebol como escritor, mas como jogador, de quarta categoria, mas jogador… No Brasil, quero ver uma partida sem falta. Para alguém que joga, o Brasil é o paraíso. Ouve-se falar tanto dos jogadores geniais, anônimos, que jogam na praia da Copacabana… Talvez eu vá ver. E, se uma bola rolar até os meus pés, então… Então eu não vou fazer nada, não vou me mexer, vou apenas olhar.

Os Verbos Auxiliares do Coração
Péter Esterházy
Trad.: Paulo Schiller
Cosac Naify
Preço e número de páginas não defiinidos

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