Solano Trindade e Sérgio Vaz: o excluído como autor
O poeta recifense Solano Trindad, autor de "Poemas de uma vida simples" e "Cantares ao meu povo" (Foto: Domínio Público)
A voz do angolano Ruy Mingas anima os cômodos da casa com o poema (por ele musicado) “Quem tá gemendo”, do poeta brasileiro Solano Trindade. Extasiado, nem recordo quando pus o músico Martinho da Vila para cantar o poema “Makèzú”, do literato de Angola Viriato da Cruz, que também é cantado por Ruy Mingas. Entre angolanos e brasileiros, recordo Noémia de Souza, a mãe dos poetas moçambicanos, que em “Súplica” apela: “Tirem-nos tudo, mas deixem-nos a música”.
Como lembra o poeta brasileiro Sérgio Vaz, música é poesia acompanhada por instrumentos, o que torna covardia uma disputa entre ambas: para o fundador da Cooperifa, a música é soberana. Talvez imputado pelo compromisso de finalizar a dissertação de mestrado sobre Solano Trindade e Sérgio Vaz, silencio o áudio do notebook, abro um arquivo no Word e me pego escrevendo sobre a relação entre África e Brasil a partir dos poetas estudados por mim.
O professor Mário César Lugarinho, da Universidade de São Paulo, em uma das palestras do poeta, escritor e jornalista angolano João Melo, em 2009, afirmou que “a nova narrativa angolana pode suscitar uma natural empatia com o público brasileiro por abordar temas e problemas muito semelhantes aos vividos diariamente por numerosos segmentos da população, em especial das periferias”; afirmação corroborada por Melo.
Creio que seja apropriado estender o entendimento de Lugarinho ao plano da criação poética. Cada um a seu modo e em seu momento histórico, Solano Trindade (1908-1974) e Sérgio Vaz (1964-) fundam um novo fazer poético, assim como um novo modo de articular arte no Brasil. Ambos iniciam, a meu ver, uma Paideia – que, de modo bem simples, na Grécia Antiga tem “o poeta como educador de seu povo”, segundo o filósofo alemão Werner Jaeger.
Se os escritos dos poetas gregos se destinavam àqueles que “buscam no contato com os gregos a salvação e manutenção de nossa cultura milenária”, de acordo com Jaeger, Solano Trindade e Sérgio Vaz voltam-se aos negros, periféricos e excluídos pela sociedade, tornando-se educadores do povo em uma perspectiva não eurocêntrica. Eles não só promovem o excluído como autor por meio do próprio trabalho, como trazem à tona temas que dizem respeito ao povo e à periferia.
Em “Muleque”, Solano Trindade retrata um menino a partir de palavras frequentemente utilizadas para depreciar pessoas negras – “beiço grandão”, “cabelo pimenta do reino”, “nariz coisa achatada” – para afirmar que quem o “fez assim foi o amor”, e não o ódio racial. Sérgio Vaz emprega o termo “magia negra”, comumente usado para discriminar religiões de matriz africana, para valorizar personalidades negras: “Magia negra era o Pelé jogando futebol, Cartola compondo, Milton cantando. Magia negra é o poema de Castro Alves, o samba de Jovelina…” A lista prossegue encantando o leitor e tripudiando os racistas.
Em seu “Manifesto da Antropofagia Periférica” (2007), o poeta Sérgio Vaz afirma que a “arte que liberta não pode vir da mão que escraviza”, e que “dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune”. Solano Trindade é jocoso ao abordar as questões da língua em “Senhora Gramática”: “Perdoai os meus pecados/ Se não perdoardes, Senhora/ Eu errarei mais”. Também com ironia, Vaz versa que “a polícia acadêmica, quando enquadra/ não sabe o esqueceu/ que as ruas gritam livres/ ainda que durma na calçada”.
Em Angola, “poetas e prosadores começam a afirmar com a Geração da Mensagem novos valores simbólicos angolanos na literatura em contraposição à portugalidade”, como noticiou o Jornal de Angola em outubro de 2011. O escritor angolano Luandino Vieira afirma que “a língua dos colonizadores deve ser vista como um despojo de guerra”. Não difere da percepção do poeta brasileiro Cuti, idealizador dos Cadernos Negros, para quem, embora a língua seja do opressor, nós é que a fazemos diariamente. Aproximam-se as literaturas de nossa terra com a do país africano pelo momento no qual emergem, em ambas, as vozes das periferias e dos musseques.
Na história da literatura brasileira, a Semana de 22 consagrou o excluído como protagonista por meio de uma renovação de formas e estilos. Um bom exemplo é o poema “Pronominais”, no qual o grande Oswald de Andrade transgride padrões estéticos para dessacralizar a gramática lusitana (“dê-me um cigarro”) e consagrar os usos linguísticos do “bom negro e do bom branco/ da nação brasileira”: “deixa disso camarada/me dá um cigarro”, debocha o modernista dos que ignoram a língua do povo – e por que não do Brasil?
Mas a despeito da importância da renovação promovida pelo Movimento de 22 na produção literária brasileira, ainda era a voz da burguesia que se fazia presente na literatura modernista, e não a do próprio marginalizado. Nesse sentido, Solano Trindade e Sérgio Vaz promovem a inserção do excluído como autor.
Fábio Roberto Ferreira Barreto é mestrando de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP, professor da rede municipal de São Paulo e militante do movimento literário periférico. Autor de textos sobre literatura e metodologias de ensino, é frequentador assíduo do Sarau da Cooperifa.