Sobre a vivência concreta do sexual

Sobre a vivência concreta do sexual
'Heart face', Joy Hester, 1949, Austrália (Foto: Reprodução)

 

Nesta quarta (13), Eduardo Leal Cunha publicou uma réplica a artigo que publiquei nesta revista e que tinha por título: “Não há heterossexuais”. Inicialmente, gostaria de agradecê-lo por sistematizar, em seu artigo, críticas pertinentes ao que escrevi. Creio ser este um debate muitas vezes vítima de caricaturas ruins de ambos os lados e a oportunidade de tratá-lo de forma clara só pode ser saudado.

Começaria dizendo que Eduardo tem razão. Há homossexuais. Se não escolhi esse título para meu artigo, se em momento algum tentei derivar como consequência da inexistência de heterossexuais a pretensa inexistência similar de homossexuais, é por uma razão deveras simples: não acredito nessa equivalência. Não acho politicamente correto operar com tal simetria. Acho importante deixar claro que aqueles que, como eu, fazem há anos a crítica do inflacionamento da identidade como operador político – a ponto de acreditar ser importante denunciar o risco de certo monolinguismo da gramática das lutas sociais que tal inflacionamento tende a produzir -, não desconsideram o recurso estratégico à identidade.

Seria fácil dizer que críticos do inflacionamento do uso político da identidade ignoram que homossexuais, negros e mulheres “são discriminados desde cedo na escola, no trabalho e nas sociedades de formação em psicanálise, e não me refiro apenas à tradicional e sabidamente conservadora Associação Psicanalítica Internacional”, como menciona Eduardo. Seria fácil dizer que eles falam de entidades abstratas e são incapazes de levar em conta a concretude da violência social. Seria fácil, mas seria simplesmente incorreto e injusto. Creio ter expressado várias vezes no decorrer desses anos que considero absolutamente legítimo e necessário o uso provisório do conceito de identidade como marcador de violência social, exatamente por levar em conta fenômenos como esses que Eduardo descreve.

A história conhece várias situações concretas nas quais termos construídos anteriormente por marcadores de exclusão e opressão (homossexual, queer, judeu) são recuperados no interior das lutas sociais a fim de dar visibilidade a processos de violência muito claramente direcionados e repetidos de forma insistente. Essa é uma estratégia que já demonstrou sua eficácia, não se trata de questioná-la, e simplesmente nunca a questionei em momento algum. A meu ver, a questão é outra. Na verdade, há de se perguntar se essa é a única estratégia política que temos à nossa disposição. O que advogo é que ela deve operar acoplada a outras, e que há riscos sérios que devem ser levados em conta se acabarmos por operar apenas com ela.

Exatamente por colocar o problema nesse nível, não posso em absoluto concordar que “o raciocínio de Vladimir em seu artigo é muito próximo daquele que já fez tantos psicanalistas afirmarem, repetidas vezes, que não há brancos nem pretos, mas sim sujeitos”, até porque acho que quem disse algo dessa natureza deveria parar de clinicar. As formas de sofrimento psíquico estão amplamente enraizadas nas dinâmicas de sofrimento social, e o racismo é uma forma de sofrimento social estruturante. Não ser capaz de escutar esta imbricação no interior da clínica é simplesmente ignorância a respeito do sujeito que um analista tem à sua frente.

Acho que a colocação de Eduardo expressa o tipo de equívoco que resulta em acreditar que as múltiplas formas de opressão e sujeição que compõem o tecido social devam ser tratadas a partir das mesmas estratégias políticas, como se estivéssemos a falar de categorias dispostas no mesmo nível. No entanto, classe, raça e sexualidade (só para ficar nessas três) não tecem relações de equivalência sequer do ponto de vista de suas dinâmicas de opressão. Há de se saber operar com suas singularidades. O que é da ordem da sexualidade, por exemplo, se constitui a partir de uma disjunção profunda entre práticas e normas. Aquilo que Eduardo chama de “vivência concreta do sexual” (fantasias, circuitos de afetos, dinâmicas de gozo) não se confunde, em sujeito algum, com as normatividades sociais constituídas. Cada sujeito tratará tal disjunção à sua maneira, mas ela não cessará de assombrá-lo.

Essa disjunção, que pode ser uma arma política importante (e talvez uma questão política central seja exatamente como fazer dela uma força), não é o elemento estruturante, por exemplo, das questões de raça, ao menos não dessa forma. Por isso, do ponto de vista de sua performatividade, ou seja, do ponto de vista daquilo que eles são capazes de produzir, enunciados como “não sou heterossexual”, enunciado por alguém socialmente colocado nessa categoria, e “não sou branco”, enunciado por alguém que a sociedade reconhece como tal, produzem efeitos radicalmente contrários. Não é à toa que o segundo faz parte das estratégias clássicas de sociedades que tentam mascarar seu racismo através do discurso torpe da miscigenação. Já o primeiro merece uma discussão de outra natureza porque estamos diante de um fenômeno de outra natureza. Há de saber melhor distinguir para melhor operar.

Eduardo não pensa da mesma forma, o que o leva a dizer: “Assim, não dá para reconhecer a força da heteronormatividade e ao mesmo tempo supor que heterossexuais não existem. Essas duas existências se determinam e se produzem mutuamente e um dos seus efeitos está no fato de que se desejamos ‘objetos que circulam ou se fixam entre os corpos, em corpos’, esses corpos são situados hierarquicamente em relação à heteronorma, e assim acabam por definir limites para os sujeitos que os habitam”.

Eu diria que, ao contrário, essas duas existências não se determinam e não se produzem mutuamente. Para isso seria necessário que a vivência concreta do sexual fosse ou especularmente constituída pela norma ou que operasse mutuamente como um fator com o qual a norma deveria negociar, flexibilizando-a, retirando seu caráter coercitivo e brutal. Mas nenhum dos dois fenômenos ocorre. A vivência corrói continuamente a norma porque a vivência não é apenas fruto do sistema de deliberações e decisões de indivíduos. Ela é uma dinâmica desamparadora do inconsciente e de seus fluxos libidinais. Por isso, a relação entre vivência e norma é uma relação de disparidade, e aqueles engajados em processo de emancipação social devem usar tal disparidade a seu favor.

 

 

O que não implica, de forma
alguma, ignorar que há uma
hierarquia de corpos em
nossa sociedade. Hierarquia
apresentada como “prêmio”
àqueles que conseguem melhor
massacrar a multiplicidade de
suas vivências do sexual.

 

 

Creio que a diferença com a posição de Eduardo vem, em larga medida, de colocações como: “Para afirmar que heterossexuais não existem, nem tampouco a relação sexual, talvez seja necessário colocar também em questão o binarismo de gênero, o que não poderia ser feito sem interrogar minimamente a diferença sexual e seu estatuto de invariante antropológico”. Se há uma potencialidade política interessante na psicanálise, ela está exatamente no fato de lembrar que a diferença sexual não é da ordem de uma realidade antropológica. Pois tal diferença, tal como ela opera na vida concreta do desejo, não é uma diferença opositiva entre gêneros.

A função lacaniana de afirmar que “a mulher não existe” está em dizer que a única ordem que produz existência social é aquela que organiza todas as formas de gozo a partir de um regime fálico, seja ele presente em “homens” ou “mulheres”. Por isso, esse gozo deve ser derrubado com os lugares que ele sustenta. Logo, a verdadeira diferença não está aí. A diferença é interna a todo sujeito, e se encontra entre as condições de existência e aquilo que se afirma como inexistente. Faz parte da nossa força política fazer do inexistente algo com mais realidade do que o existente, como sempre ocorreu em todo processo revolucionário efetivo. A meu ver, a questão central é saber como.

Insisto no que inicialmente havia chamado de “risco” produzido por um uso inflacionado do conceito de identidade. Em dado momento de seu texto, Eduardo diz o seguinte: “Vladimir é sim heterossexual e mais uma prova viva de que eles existem. O que, aliás, é testemunhado por muitos, já que os supostamente não existentes heterossexuais podem sair nas ruas de mãos dadas com seus objetos parciais, sem o risco de sofrer algum tipo de violência. Eu não”.

Gostaria de chamar atenção para a operação feita aqui, para seu caráter problemático, algo próximo de uma espécie de “interpelação subjetiva forçada”. Eduardo viu por bem definir por mim o que eu próprio seria sem levar em conta o que eu mesmo havia dito, ou sem ter acesso algum ao que seria a singular “vivência concreta do sexual” do qual ele mesmo fala. O que o legitimaria a tanto é a diferença na exposição à violência social. Contra uma violência social, ele opera outra, que consiste em definir e em determinar um lugar ao outro simplesmente sem levar em conta a fala de quem foi definido ou a natureza efetiva de sua vivência.

Creio que isso ocorre porque há uma limitação de estratégia política sintomática aqui. Ela consiste em preservar o binarismo que se quer criticar, preservando, por consequência, a gramática que deveria ter sido abandonada, na esperança de operar uma espécie de transvaloração de valores e lugares. Isso ocorre, a meu ver, porque elimina-se de entrada a possibilidade de trabalhar a força política da desidentificação generalizada. Desconfia-se da disparidade no sexual e, de quebra, não passa sequer pela cabeça de que impulsionar processos de desidentificação seria uma dinâmica importante para a queda de ordens que queremos combater. Seria a condição para caminhar em direção a outra gramática social. Se a urgência exige a mobilização provisória da identidade, a práxis política se degrada quando mede apenas a urgência (da mesma forma que ela se atrofia se não leva em conta a urgência). Mais dialética nesse ponto seria bom.

Discordo de uma afirmação como: “Afinal toda a desordem no gênero que registramos nos últimos anos foi obra de pessoas engajadas em práticas sexuais e performances de gênero dissidentes”. A desordem de gênero é uma força bruta, talvez a única que possa dar sentido a uma totalidade verdadeira. Ela está lá a corroer cada passo de quem procura ignorá-la. Ela está lá a impulsionar criação a quem é capaz de ouvi-la. Historicamente, ela já explodiu muitos edifícios que se julgavam sólidos e já abriu muitas dinâmicas lá onde muitxs viam apenas paralisia.

Essa desordem se dá como proliferação, mas também como decomposição e desfazimento. Uma colocação como essa de Eduardo pode fazer sentido se temos em vista apenas os processos de lutas sociais e seus protagonistas. Mas as lutas sociais são alimentadas e impulsionadas também por instaurações estéticas, experiências clínicas, encontros afetivos. Não se ganha nada desqualificando isso. Quem esqueceu, que leia Grande Sertão: Veredas.

Vladimir Safatle é professor titular do departamento de filosofia e do instituto de psicologia da USP


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