Sobre saber pensar e saber gozar
A autora Catherine Malabou. (European Graduate School / EGS)
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Catherine Malabou, pensadora francesa de origem argelina, parece transitar por entre as mais relevantes correntes do pensamento filosófico na atualidade. Sua primeira obra publicada, L’Avenir de Hegel: Plasticité, Temporalité, Dialectique (O Futuro de Hegel: Plasticidade, Temporalidade, Dialética), de 1994, é fruto de sua tese de doutorado defendida na École Normale Supérieur de Fontenay-Saint-Cloud, sob orientação de Jacques Derrida.
Desde então, foram 17 livros publicados, que se dedicam a diferentes temas, como o estudo do pensamento heideggeriano, anarquia, dialética, e até uma crítica à neurociência que incorpora conceitos hegelianos e psicanalíticos para elaborar o conceito de neuroplasticidade.
Em seu mais recente livro, publicado no Brasil pela Ubu, O prazer censurado: Clitóris e pensamento, Catherine faz uma incursão pelo feminismo orientada pela análise do que classifica como “uma pedrinha minúscula alojada no fundo do sapato do imaginário sexual”. Longe de ser um falo excisado, como a psicanálise o caracterizou desde seu início, o clitóris é, para a pensadora, um poderoso símbolo da autonomia libidinal feminina, e do pensamento feminino.
A autora evita essencialismos e determinismos biológicos ao não se inscrever no feminismo trans-excludente, assim como não compactua com as correntes que “acusam de ‘terf’ (trans-exclusionary radical feminist, feministas radicais trans-excludentes) qualquer voz que tente dar conta do feminino”. Segundo Catherine, que segue a abordagem do feminismo diferencialista, “falar de binariedade é subentender um equilíbrio, um balanço entre dois termos ou dois valores. Falar de diferença já introduz desproporção, heterogeneidade”.
Em entrevista à Cult ela fala sobre a presença e a ausência do clitóris na psicanálise, a relação desse órgão com o pensamento feminino e o feminismo contemporâneo.
Você evoca a dialética do senhor e do escravo ao menos duas vezes em seu livro para falar da dinâmica do desejo para Hegel e Sartre, e outra vez para falar da relação entre a vagina e o clitóris para Carla Lonzi. Isso é um sinal de que a sexualidade ainda está tomada por relações de poder? É possível pensar a sexualidade para além dessa dialética?
A relação mestre-escravo permaneceu por muito tempo como o modelo dominante para se pensar as relações entre o homem e a mulher. E mais precisamente as relações sexuais. O par dominação-submissão surgiu como o conceito que melhor caracterizava a relação entre a atividade fálica e a passividade vaginal. Eu não penso que Hegel tinha isso em mente, mas foi dessa maneira que me ocorreu a interpretação da dialética. Hoje em dia não nos referimos mais a isso nesses termos, mas seria interessante ver como isso se aplica ao BDSM (bondage, discipline, dominance and submission, sadomasochism. Conjunto de práticas sexuais envolvendo submissão, disciplina, dominação e sadomasoquismo). Talvez a dialética do senhor e do escravo possa ser uma herança de Hegel, quem sabe.
Onde localizar a origem da mulher “vaginal” e a mulher “clitoridiana” em nossa sociedade? A superação do orgasmo vaginal como o único possível é um evento histórico e político?
O prazer feminino se manifesta entre dois órgãos: o clitóris e a vagina. A feminista italiana Carla Lonzi tenta demonstrar em que esse arranjo anatômico-simbólico pode ser relevante; não só fisicamente, mas também simbólica e politicamente. Em 1974, Lonzi escreveu La femme clitoridienne et la femme vaginale. É nesse livro que é cunhada a expressão “mulher clitoridiana”, e que ela associa o gozo clitoridiano à autonomia feminina, recusando-se a associar o clitóris à masturbação. Para ela, é o clitóris o órgão feminino por excelência, associado à reprodução, e não a vagina. O prazer advindo do clitóris é, para Lonzi, o equivalente ao “penser par soi-même” (pensar por si mesmo) masculino. Um equivalente que se transforma. Lonzi destaca como o falo é tradicionalmente associado à retitude e à autonomia masculinas, já que o homem, dotado de um único órgão, é “um” e não obedece a influências senão a ele mesmo.
Lonzi rompe precisamente com essa compreensão ao analisá-la sob a ótica do composto e da diferença. Nós podemos ter dois órgãos sem sermos indivíduos hesitantes ou indeterminados. Se é verdade que o clitóris representa a autonomia feminina e a diferença, o ato de autorizar o prazer feminino emerge como uma afronta endereçada precisamente ao patriarcado. Daí surge seu caráter altamente político. Espero ter demonstrado em meu livro que uma visão pluralista acerca do prazer e dos corpos é hoje a única defensável.
Eu introduzo, por minha parte, um modelo do clitóris em contraposição ao falo. Não apenas como um órgão anatômico, mas também como um elemento de pensamento. Assim como o falo é a projeção do elemento corporal no plano simbólico, a figura do clitóris aparece como um outro tipo de prazer próprio da intelectualidade: contraposto aos momentos monumentais e unitários do pensamento, vemos emergir a ideia de “zonas erógenas” múltiplas, colaborativas, contraditórias, por vezes. Isso é instigante porque, se a noção simbólica do falo nos é familiar no plano psicanalítico, sociológico e antropológico, a ideia de examinar um mesmo texto ou discurso à luz desses momentos fálicos e clitoridianos é muito menos comum. Essa nova distinção possibilita identificar não apenas as zonas clitoridianas de um texto, mas também suas zonas fálicas. Estou trabalhando para caracterizar melhor essas duas categorias. O clitóris textual é definido como o ponto onde o logos vacila.
Como diminuir a distância entre o “saber pensar” e o “saber gozar”?
Precisamente, essa dupla ação de gozar e pensar me remete ao título do livro, O prazer censurado. Para Freud, desde a infância, meninas e meninos experienciam a angústia da castração, que está ligada ao medo de morrer ou de perder algo. A menina descobriria que, no seu caso, a castração já ocorreu, pois ela está “cortada”, o que intensifica sua angústia. O clitóris aparece para ela como a cicatriz do pênis. A menina então vive a ausência do pênis como uma falta a ser preenchida. Ela brinca com essa cicatriz e, em seguida, descobre que apenas a sexualidade vaginal pode preencher essa falta. É com base nesse raciocínio que Freud pode afirmar que o prazer clitoridiano é um prazer atrasado, infantil e masturbatório, centrado na falta e na angústia. Essa perspectiva acaba por privar a mulher de um prazer que não tem relação com a falta do pênis. Trata-se de uma forma de excisão lógica tanto quanto de uma amputação simbólica.
A eliminação e a invisibilização do clitóris se refletem, é claro, no campo do pensamento em geral, mas também na filosofia de modo particular. Eu citei Sartre que, por exemplo, afirma que a mulher é um ser vazio à “espera de um preenchimento, de uma satisfação”, silenciando assim o fato de que seu sexo não é feito apenas de orifícios.
Ao analisar todos esses discursos, eu me perguntei se a invisibilização do clitóris não estaria acompanhada da invisibilização do prazer feminino de pensar. Como se gozar e pensar só pudessem se adequar ao modelo fálico, o que Derrida chama de “falogocentrismo”, com seus paradigmas de ereção, emissão e penetração.
Eu já havia começado essa reflexão há algum tempo, em meu livro Changer de différence: Le féminin en philosophie (Paris, Galilée, 2009), questionando que tipo de ser híbrido poderia ser uma mulher filósofa e o que significa estar em um corpo feminino na maneira de abordar os conceitos filosóficos, uma questão em particular que ainda não tinha sido verdadeiramente abordada. Concluí que, ao excluir a mulher, a filosofia se privava de uma reflexão sobre uma outra relação com o poder e que, ao fundo da questão do feminino se abria um espaço de solidão absoluta, ainda não explorado.
Em O prazer censurado: Clitóris e pensamento, ampliei esse conceito de mulher no feminino, que não designa mais um gênero específico, mas um certo modo de ser pensado, no próprio ato de recusar o paradigma da penetração, seja física ou intelectual. Existe, evidentemente, uma ligação entre gozar e pensar que não se encaixa nesse paradigma e que, longe de se limitar à mulher, designa o que chamo de espaço clitoridiano do ser.
Pelo menos desde os anos 1920 a psicanálise parece se ocupar da sexualidade feminina. Por que o tema é ainda tão incompreendido e até agora nenhuma obra se ocupou tanto da anatomia do clitóris e sua relação com o pensamento como outras se ocuparam do falo?
O falo, é preciso lembrar, não corresponde ao pênis. A compreensão psicanalítica desse termo, introduzida por Lacan, implica que o falo seja o objeto inalcançável do desejo, tanto para o homem, quanto para a mulher. O que, é claro, não impede que as posições dos homens e das mulheres em relação ao falo sejam diferentes (a mulher é o falo, diz ele; o homem tem o falo). Mas ambos veem seu desejo orientado por ele no próprio espelhamento de suas posições diferentes em relação a ele. O que isso quer dizer? Lacan diz muito corretamente que a relação sexual não pode ser de ordem puramente física. O discurso, ou seja, o simbólico, está sempre nessa equação. Quer dizer que não há desejo sem fantasia, sem projeção no domínio simbólico das imagens e das palavras. Contamos a relação tanto quanto a praticamos. O falo é precisamente o objeto dessa projeção no significante. Por isso é que Lacan afirma que não há relação sexual. Não há uma relação sexual pura, que esteja separada dessa incursão simbólica. Na medida em que os dois sexos estão envolvidos nessa projeção, mesmo de maneira diferente, não há motivo para questionar o que seria uma sexualidade especificamente feminina. Por isso Lacan responde com desdém a Simone de Beauvoir, recusando-se a continuar a conversa com ela: “não há segundo sexo”. Ou seja, o prazer clitoridiano não muda nada na estrutura fálica do desejo. Muito bem. Mas mesmo que Lacan rejeite a correspondência imediata falo/pênis, ele ainda mantém o falo! É difícil ver como ele seria tão diferente do sexo masculino! É uma piada.
Como evitar determinismos biológicos ao explorar a relação da anatomia com o pensamento?
O projeto do meu livro está fortemente vinculado a questões políticas e epistêmicas. Eu situei minha posição desde o primeiro capítulo: eu desejava situar-me na esteira do feminismo radical diferencialista, ao mesmo tempo que me integro aos avanços dos “militantes pós-binários”. É essa dupla afirmação que me permite dar um espaço ao clitóris, tanto anatômico quanto simbólico, não necessariamente ligado ao corpo da “mulher”. Estou ciente de que essa maneira de pensar não é nada evidente; ela divide muitos militantes e pode parecer paradoxal.
Assim coloquei em discussão as duas correntes do feminismo: o feminismo da diferença sexual e o transfeminismo, enfatizando a necessidade de não pensar um sem o outro. Minha abordagem visa precisamente a pensá-los juntos, um com o outro; um contra o outro, essas duas grandes tendências do feminismo, que também podem ser chamadas de feminismo radical e pós-feminismo. A principal diferença entre eles é que o primeiro está centrado na mulher, e o segundo, na não-binariedade.
Silvia Federici, por exemplo, recentemente expressou posições anti-trans em nome do feminismo radical. (Um homem trans seria uma mulher que “traiu a causa”.) E alguns representantes das correntes pós-feministas acusam de “terf” qualquer voz que tente dar conta do feminino. Eu digo, não me sinto confortável em nenhum desses dois campos. Felizmente, existem vozes que não bradam esse dogmatismo. Judith Butler, por exemplo, em uma entrevista ao Guardian intitulada “We need to rethink the category of the woman” (“Precisamos repensar a categoria da mulher”), de setembro de 2021, fez declarações que me parecem muito acertadas: “O que significa ser uma mulher não pode permanecer o mesmo a cada década. A categoria ‘mulher’ muda e deve mudar. É necessário que seja assim. Politicamente, garantir maiores liberdades para as mulheres requer que novos sujeitos que não são mulheres biológicas sejam incluídos como ‘mulheres’. O significado histórico do gênero é suscetível à mudança quando suas normas são reencenadas, rejeitadas ou recriadas.”
Acho essa afirmação interessante porque é genealógica e não opõe mulheres a trans, ou mulheres a homens, ou mulheres a não-binários. E isso sem abandonar a categoria “mulher”. E ao mesmo tempo, ainda marca a necessidade de rupturas históricas.
Como poderíamos, de qualquer forma, deixar de lembrar constantemente que, sem as feministas da diferença sexual, como Irigaray ou Lonzi, seria impossível, simplesmente impossível, entender o que significa a noção de gênero?
Qual é a relação entre clitóris, feminino e anarquia?
Como mencionei, perguntei-me se não haveria, nos textos, nas obras e nos corpos, zonas diferentes. Do “feminino”. O que também chamei de ponto de anarquia. As zonas clitoridianas seriam aquelas que convocam um tipo de olhar e de interpretação não penetrante, uma forma de carícia que revela um sentido lateral, excêntrico, o pequeno ponto de prazer que transmite uma mensagem diferente daquela da linha reta e da intrusão. Esse é o tipo de leitura que pratiquei em todos os meus livros, como acredito. E penso que é perfeitamente possível percebê-los nas obras de arte, como esses pontos que escapam à verticalidade, à unidade e à definição.
Escrevi O prazer censurado: Clitóris e pensamento ao mesmo tempo que outro livro, Au Voleur ! Anarchisme et philosophie (Paris, PUF, 2022. Trad. livre: Pega ladrão! Anarquismo e filosofia), que explora profundamente a ideia de governo. Os anarquistas rejeitam a lógica de comando e obediência, inerente a qualquer ideia de governo. O que não significa que defendem a desordem. Pelo contrário, militam por uma outra ordem, livre das relações de dominação. Parece-me interessante situar minha reflexão nesse contexto. Um clitóris não se governa.
Como Derrida influenciou seu pensamento?
Responder a essa pergunta exigiria páginas e mais páginas. Então, vou dar uma resposta muito breve. O essencial do que Derrida me ensinou é o seguinte: não existe nenhuma evidência normativa. Em qualquer domínio.
Victor Kutz é estagiário na Revista Cult.