Sobre “Orlando”, de Paul Preciado: O corpo a um toque de se transformar.
(foto: Elena Ternovaja)
.
Não seria exagero dizer que uma biografia emerge desde o apagamento dos traços por onde a vida efetivamente acontece. Ao menos essa seria a versão usual a qual nos acostumamos a reconhecer nesse gênero: quando folheamos as biografias dos grandes filósofos, para ficar no regime em que Preciado também se situa, tudo se passa como se suas vidas só verdadeiramente acontecessem nos intervalos onde a realidade mundana se desvanece.
O gesto filosófico, de mãos dadas ao biográfico ao menos desde da ficção política de Diógenes Laércio, seria uma forma de escansão forçosa diante de tudo aquilo contra o qual o pensamento historicamente se voltou: o sexo, o entorpecimento, a afetividade, o corpo, o desejo. Esses seriam os avatares através dos quais a vida, em geral, se revoltaria diante das pretensões metafísicas com que o Ocidente vem sonhando por milênios. O que explica por que Hannah Arendt certa vez escreveu, sobre Kant, que a vida teria sido a primeira grande inimiga da filosofia. Ela desestabilizaria suas pretensões de coesão e imutabilidade universais.
Filosofia e bios estariam portanto em aparente antagonismo. Lá onde a vida se multidiversificava, a filosofia deveria ser capaz de domesticá-la em categorias estanques. Como se escrever filosofia fosse uma maneira de anestesiar a sensibilidade com as pretensões de pureza com a qual o pensamento historicamente se orna. Escrever filosofia seria uma forma de assepsia diante das inconstâncias da vida; escrever biografias, o esforço cicatrizante pelo qual ficcionalmente elegemos as vozes sacras que ascenderam a tal estado de pureza.
Nada seria mais estranho à obra e vida de Paul Preciado. E, como não poderia ser diferente, nada seria mais estranho a Orlando: minha biografia política, documentário-ficcional com o qual o filósofo estreia no audiovisual. Quando folheamos um livro como Testo Junkie, por exemplo, já de início nos deparamos com o que Preciado descreve ser uma “ficção somatopolítica”. Desinteressado na assepsia, portanto rejeitando o exercício biográfico tradicional, seu gênero de escrita se aproximaria antes do que considera ser um bioterrorismo auto-ficcional. Mas mais do que uma aniquilação daquela inconstância, terrorismo, aqui, passa a significar a potência afirmativa dos atravessamentos erráticos onde a vida nos arrebata.
Em Orlando, o documentário, tais atravessamentos atualizam de maneira competente as virtualidades já encontradas em Orlando, o romance. Quero aqui destacar dois gestos que me parecem decisivos para compreender sua atualização, dando especial enfoque à maneira inovadora como o filósofo traduz um regime estético, o textual-literário, em outro, o cinematográfico-documental. Chama atenção logo de início o desdém para com o que poderia vir a ser mero regozijo individualista: ao invés de assumir o protagonismo da obra, dando-a os ares mofados das biografias de seus antepassados filosóficos, Preciado decide-se por povoar as cenas com outros corpos trans que não o seu.
***
Assim como Woolf se serviu dos vacilos pronominais para ressaltar a diversidade somática com que a personalidade de Orlando se metamorfoseava na versão original, Preciado acertadamente apostou na polifonia. Esse não parece um gesto gratuito. Fazer Orlando falar pela voz de múltiplas/os Orlandos não somente é consequente com o programa político-filosófico do próprio autor ou com a textualidade descosida de Woolf. Que Orlando assuma-se em primeira pessoa desde corpos dissidentes reais, cujos nomes próprios não ao acaso são enunciados assim que entram em cena, é também o que poderíamos chamar de seu primeiro golpe contra o fantasma da propriedade e da autodeterminação, que ainda continuam a assombrar nossa maneira de nossas vidas.
Pois valeria aqui recuperar como o conceito de identidade pessoal foi forjado em intimidade com outra categoria fundacional da modernidade: a de propriedade. Ele surge enquanto maneira de preservar subjetivamente os processos de ordem e privatização a qual progressivamente começávamos a imprimir em nossa realidade externa, através sobretudo da dominação e exploração da natureza segundo os recém-descobertos preceitos científicos de controle e previsibilidade.
Usando um termo de difícil tradução, John Locke, um dos patronos do liberalismo, descreveu certa vez que a capacidade de assumir uma identidade pessoal como uma de accountability diante da permanência da memória. Embora à primeira vista possamos nos perguntar a que serviria a importação de um termo jurídico para explicar processos psicológicos, o recurso que Locke faz a ele não deixa de ser sintomático. Trata-se de explicitar como o tipo de estratégia que passaríamos a assumir para falar sobre nós mesmos, para narrar nossos eventos e afetos, estaria em continuidade discursiva aos que usamos para falar sobre nossa posse diante de demais coisas: assim como a pessoa jurídica se liga a terra ao identificar sobre sua posse a coesão inalienável de suas trincheiras, somente a capacidade para falar sobre nós mesmos desde a perspectiva de donos poderia garantir a permanência de nossa identidade.
Tornar-se accountable, em sentido político e psicológico, significaria assumir a perspectiva supostamente privilegiada diante de eventos e coisas doutra forma desconexos e, portanto, despossuídos de um eu. Em contrapartida, o eu surgiria como garantia narrativa da exclusividade material que os dota de significado: no momento quando só eu posso efetivamente relatar minhas experiências, assumo uma posição refratária diante do outro. No momento quando minha identidade se torna uma propriedade, o outro necessariamente se torna a ameaça potencial de sua aniquilação.
Em Orlando, Preciado problematiza esse regime narrativo ao entremear trechos do romance a episódios das personagens reais que os enunciam. Essa é uma maneira não só de marcar como a obra de Woolf ainda hoje pode nos dizer tanto sobre a experiência em primeira pessoa de corpos não-binários. É também maneira, através de um recurso estético inusitado, de implodir as trincheiras político-jurídicas que a modernidade imputou a nossas subjetividades. Com relatos reais mesclando-se ao ficcional, percebemos como as memórias que nos habitam jamais são propriedades privadas, representações mentais coesas através das quais nos demarcamos do outro. Elas antes diriam respeito aos espaços limítrofes onde nossas singularidades se indeterminam e passam a enunciar uma coletividade que nos constitui. Como se, ao assumir para si a inconstância de bios que grifa nossas narrativas, ter uma biografia fosse agora uma maneira de falar de si para além de um eu. Uma maneira de falar de si que se agencia pela afirmação de um nós.
***
Quero me deter agora noutro aspecto que marca visualmente a “partilha do sensível” – para pegar de empréstimo o termo de Rancière – a qual acredito Orlando busca fazer jus. Ele nos permite explorar a maneira reinventada com a qual Preciado, na esteira de Woolf, busca reescrever aquela grafia da vida. Trata-se da maneira como o autor joga com os cenários, ao longo do filme. Aqui, algo da linguagem visual tradicional vai ao encontro à versão usual de biografias com a qual iniciei. Pois se uma biografia tradicional seria uma maneira de apagar os traços por onde a vida acontece, por onde somos atravessados por bios, esta se apresentaria visualmente pelas determinações de enquadramento. Como se os enquadramentos da câmera atualizassem imageticamente as margens que expulsam de cena as inconstâncias da vida.
Algo similar foi dito por Derrida – professor de Preciado durante seu tempo na New School – sobre a constituição de um texto. Como já escrevi noutra oportunidade para esta revista, para certa versão oficial da História, só há texto lá onde as margens de sua constituição foracluem seus procedimentos de constituição; só há autor lá onde as “personagens menores” confirmam sua excepcionalidade ao serem renegadas à antessala da literatura. Contra tal versão, Orlando tanto subverte a hierarquia autoral, vide o recurso à polifonia, quanto problematiza os limites do que chega mesmo a constituir uma cena digna de figurar numa biografia.
Isso fica claro na maneira como Preciado monta, desconstrói, recompõe os cenários à plena vista do espectador: antes de esconder o maquinário que viabiliza os efeitos visuais e sonoros da produção, o autor opta por deixá-los invadir os frames do documentário. Ao fazer coabitarem narrativas inconstantes e cenas em processo constante de (re)montagem, Preciado reforça que, mais do que autoprodução de uma personalidade coesa e já bem-delimitada, falar em primeira pessoa é exercício contínuo de despossessão criativa diante dos atravessamentos daquilo que excede nossas molduras aparentes.
***
Daí que, na esteira de Woolf, a insistência na reinvenção estética de si assume no documentário de Preciado ares de emancipação decididamente políticos. Se nossa maneira de narrar nossas vidas foi historicamente não só indiferente àquilo que na vida há de insubmisso aos preceitos de previsibilidade e controle que, na modernidade, marcaram os registros institucionais de poder sobre nossos corpos, Orlando ensaia um modelo de subjetividade que conjugue sua singularidade pela assunção de nossos atravessamentos pelo outro.
Numa cena que me parece decisiva para compreender a potencialidade de tais atravessamentos, vemos aquela que Preciado descreve enquanto a primeira metamorfose de Orlando. Trata-se de seu encontro com Sasha, na versão documental, mas também com Nell, na versão literária. No romance de Woolf, o mérito textual encontra-se na maneira como a autora joga com os pronomes das personagens. Orlando, que até então via-se angustiado pela falta de coesão acerca de seu sexo, vê-se enunciado por uma narrativa em que seus pronomes se confundem ao de seu/sua amante.
De modo a que já não mais saibamos se se tratam delas/es, é o toque de Sasha que faz com que padeça o medo diante da indeterminação. O que outrora se apresentava como angústia e medo diante da indeterminação passa a se tornar a força pela qual a multiplicidade de todo desejo se singulariza. Como se Orlando compreendesse que, diante do outro, aquilo que seu corpo faz já não mais pudesse se restringir a uma categoria estanque.
Sua singularidade, antes demarcada pela posse representacional intransigente e fixada por um predicado, agora se mostrava enquanto uma prática. Pois como a polifonia de Preciado atualiza para o audiovisual, com sua constante desconstrução de cenários e multiplicidade somática, mais do que uma posição narrativa estanque, talvez seja o caso que singularidade seja melhor pensada como uma prática intersubjetiva entre agentes corporificados. Singularidade é algo que fazemos com nosso corpo quando nos encontramos com o outro. Não é de surpreender outra maneira de falar de si surge do encontro com sua/eu amante, então. Uma maneira que, ao invés de se entrincheirar num eu auto-proprietário, percebe que diante do outro cada corpo devém radicalmente singular. Cada corpo está a um toque de se transformar.
Pedro Pennycook é bacharel em Psicologia e mestrando em Filosofia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).