O coice da égua: um livro para enfrentar ‘os dias que estão’
A poeta Valeska Torres, autora de 'O coice da égua' (7Letras) (Foto: Reprodução/Facebook)
O coice da égua (7Letras) é um livro de palavras proibidas. O primeiro livro de Valeska Torres funciona como um testemunho da sobrevivência em uma cidade de violência e cólera, o Rio de Janeiro. Por ela, o sujeito poético transita profundamente e à própria sorte, mas não se molda inteiramente às suas regras, pois veste uma armadura de malícia, ódio e autonomia. Neste Rio de Janeiro caótico, tanto a cidade quanto o livro são marcados pela desigualdade, pela degradação e pelo cansaço, mas também por uma imensa vontade de viver, se relacionar e revelar o mundo como ele é.
A raiz do sujeito poético está fincada nessa cidade e não há escapatória – mesmo quando, em um poema, passa por São Paulo, ou, em outro, pela Argentina (possível fruto do Festival Internacional de Rosário, do qual a poeta participou como residente em 2017). Nessas cidades, seu asco diante da estrutura social também são evidenciados. Mas é o Rio de Janeiro que ela conhece em suas profundezas: os poemas de Valeska passam pelo ambiente da casa, mas também pela passarela 22 da avenida Brasil, pelo Hospital Rocha Faria, por bares, pelo Ceasa, pela linha Caxias-Méier, pelo Bonsucesso, pela feira de São Cristóvão, por Irajá, Cosme Velho e Jacarepaguá. Há toda uma cartografia poética produzida no livro, pela identificação e/ou recusa de cada lugar – e, decerto, quem vive na cidade sabe, pela experiência vivida, bem mais do que eu, paulistana, o que cada um desses lugares significa para a vida coletiva carioca.
O coice da égua é um livro para enfrentar “os dias que estão”. Sua escrita, junto aos seus eixos temáticos, é uma espécie de síntese da atualidade pela perspectiva da poesia. Inclusive, pode-se dizer que o livro faz questão de mostrar sua atualidade, com títulos como “2018 é tudo nosso”, “Saiba como usar o esfregão MOP”, “Que merda é essa de troncal?”, além do uso irônico de emojis, indicando que os poemas estão no plano terreno dos busões, das estradas, das avenidas e também do zapzap.
A voz poética de Valeska parece assumir o lugar de sujeito marginal na cidade, como fizeram já vários poetas, como é a posição de boa parte das e dos cidadãos do país. Isso não é uma característica generalizante sobre sua poesia, muito pelo contrário: talvez seja por isso que suas experiências nos espaços públicos e privados, mesmo tão específicas, se alarguem para serem reconhecidas por quem lê.
Nesse sentido, é muito importante para a dicção de Valeska o uso do que aqui apelidei de “palavras proibidas”, ou seja, aquelas palavras mais cruas, da “vida real”, que não são entendidas como “poéticas” para determinadas visões que colocam a poesia sobre um pedestal de temas elevados. “Inhaca”, “Alagada na merda”, “Pombo morto” e “Mijada” são mais alguns títulos do livro. Os “poemas sujos” se atualizam no Brasil, tentando, a cada vez, novas formas de perspectiva e modelagem da linguagem.
É junto a esse léxico do cotidiano mais profundo que é composta a dicção dos poemas, e esta é uma grande virtude: seu texto completo funciona em voz alta, acentuando os procedimentos de repetição, fluxo e também a altura da voz, representada graficamente no papel por letras maiores ou menores, que gritam ou são silenciadas. Depois de assistir à Valeska falando seus poemas, não tem como ler sem ouvir mentalmente sua voz marcando as sílabas. A fala assertiva presente no texto de alguns poemas também pode estar conectada com a dinâmica das batalhas de slam, movimento poético que tem muita força no Rio de Janeiro e com o qual Valeska tem familiaridade, chegando à posição de finalista em 2017 com “Marlene”, que integra o livro.
A posição do sujeito no livro é, então, muito definida. Ao definir-se, é definidora também de um posicionamento perante a cidade, o poder, as relações sociais e a própria poesia. Os poemas geralmente marcam a primeira pessoa: é um sujeito que está sempre presente, contando sua própria história. A voz poética que viu e viveu aquilo tudo é marcada pela articulação das dimensões de raça, classe e gênero, e plasma seus procedimentos de sobrevivência aos procedimentos de escrita.
Seu procedimento central parece ser o uso ativo do ódio, a quem a autora agradece no início do livro, por ser “catapulta para os dias que estão”. A poeta negra lésbica caribenha-americana Audre Lorde, em sua coletânea de ensaios Irmã outsider, fala recorrentemente sobre o uso da raiva na reação ao racismo. O uso da raiva é, para ela, o oposto do medo, que tem o silêncio como grande parceiro. Segundo Audre Lorde, é preciso alimentá-la, “usá-la antes que ela relegue ao lixo as minhas visões”, ou seja, transferindo a raiva de si mesma para a raiva das estruturas sociais racistas. “A raiva é repleta de informação e energia”, diz Lorde, e isso, de certa forma, se imprime na poesia de Valeska Torres.
É do ódio como ferramenta de sobrevivência e transformação que parece vir o uso de palavras tão cruas. É daí, também, a recorrência de referências à carne, ao sangue, à sujeira, materializando uma degradação coletiva através da dupla crítica à discriminação e ao higienismo. Lembra a “mulher suja” escrita, em ironia muito crítica, por Angélica Freitas, no que se pode chamar de começo do que é hoje a poesia contemporânea: “porque uma mulher boa/ é uma mulher limpa/ e se ela é uma mulher limpa/ ela é uma mulher boa// há milhões, milhões de anos/ pôs-se sobre duas patas/ a mulher era braba e suja/ braba e suja e ladrava”. Mas dessa vez é diferente: a mulher, entendida como suja, fala em primeira pessoa; ela denuncia e se rebela, assumindo não apenas a sujeira incrustada, mas também o prazer e o gozo. E, ao fazê-lo, mobiliza outros procedimentos para criticar e para revidar.
Lembra, também, as “Considerações sobre higiene íntima”, da poeta Natasha Felix, por sua relação ativa e erótica no ecossistema da sujeira: “ácaro, mofo, manchas de vinho/ eu nunca conheci quem tivesse cabeça limpa/ eu saio do banheiro cada vez mais suja/ cada vez mais suja”. Parece que, em ambas, os poemas que envolvem um teor erótico bebem de uma fonte semelhante – porque é uma fonte estrutural, que organiza as relações sociais neste Brasil urbanizado, racista, patriarcal e neoliberal. É a este modelo que as poetas revidam com seus corpos e sua voz, cada uma com seus procedimentos, formas de criar e de dizer.
A poesia como procedimento
Gostaria de me deter em dois poemas para uma leitura mais detalhada. São poemas que sintetizam a perspectiva de Valeska sobre a ação poética e seu uso do ódio. O primeiro deles é “Saiba como usar o esfregão MOP”. Este é um poema sobre procedimentos de limpeza e de ódio. A forma do poema emula a forma do trabalho doméstico de limpeza: Valeska Torres imprime no poema o trabalho repetitivo de pegar, sugar e torcer, e, através da forma como realiza o trabalho, revela o sentimento do ódio. Chega até a parecer uma movimentação erótica, pela intimidade que cria com o cabo, pela voracidade da sucção, do esfrega-esfrega e da molhadeira envolvida.
Valeska apresenta o passo a passo do trabalho. O primeiro verso é uma versão sintética de descrição do uso: “pego o cabo amadeirado do esfregão torço o pano d’água”. Parece um uso simples, como devem mostrar as peças de marketing e os tutoriais sobre este equipamento moderno. A versão “real” do uso se desenrola a partir do segundo verso: é preciso fazer o procedimento por vezes consecutivas, encarar a sujeira da casa e de quem a habita. Aí está também a razão do uso sem receio de verbos, que conduzem o poema como um texto de ações, respondendo ao convite do verbo “saiba” do título – se você quer saber, você vai ter que fazer. Por isso, conjuga-se a primeira pessoa no presente indicativo: a voz do poema (a voz do livro por inteiro) se coloca para jogo, vai lá e faz. Assim, mostra que saber usar é mais profundo, pois exige trabalho, exige organizar um procedimento para encarar a própria sujeira e transformá-la – uma ideia que parece servir tanto para o uso do esfregão quanto para a criação poética. Valeska usa os procedimentos da limpeza para fazer um poema – ou seja, também usa os procedimentos do poema para limpar a casa.
O corte de palavras e versos contrasta com a repetição sucessiva e continuada. São cortes que se alimentam do conteúdo: em “os es/ ti/ lha/ ços escorrem para o ralo“, as sílabas assumem o papel dos estilhaços (não fica claro se de vidro, de bomba ou do reboco), descendo pelo ralo pela forma que assume na página; em “dois canos explodiram as paredes infiltradas encardidas o que antes/ branco”, a quebra de “branco”, colocado no final da linha, faz seu verso cheio de espaço vazio ser o verso mais branco possível, além de acentuar o contraste entre a parede quando nova, ideal, e quando infiltrada e encardida. “branco”, além de assumir a caracterização da limpeza, pode carregar consigo o caráter da racialização que está posto nos demais poemas do livro.
A disposição dos versos na página não é linear, ou seja, não começa sempre à margem esquerda até cortar-se e voltar à margem. “branco” e “es/ ti/ lha/ ços” já são exemplos disso, mas também acontece quando a repetição se escancara como procedimento, formando uma dupla de blocos de versos que podem muito bem ser lidos da forma usual ou em colunas. O “tamanho” das ações se materializa no tamanho dos versos, num vai e vem que imita o movimento do esfregão. Também não é à toa que este bloco forma um retângulo, é verdade que irregular, mas bem definido, como é o trabalho doméstico, bem concreto. Como é uma casa meio apertada.
O ódio, força-motriz
No penúltimo verso, “jogo fora o que resta na so(m)bra”, Valeska também molda uma palavra específica. “so(m)bra” é o inverso de branco (seja no sentido próprio das palavras, no sentido da limpeza ou no procedimento poético): não serve para criar um contraste dentro do verso, (como fez o corte de “branco”), e sim para aproximar dois sentidos em um único signo, a sobra e a sombra, ambas diretamente ligadas ao sujeito, como indica o próximo e último verso, “o ódio que tenho em mim”.
Partindo do pressuposto de que o ódio carrega consigo um ímpeto de violência, é possível observar alguns momentos em que o ódio se expressa pela violência na forma. Os verbos assertivos (“torcer”, “explodir”, “sugar”, “pisotear”) geram um impacto violento na recepção do texto, especialmente na materialização da ação repetitiva. O corte dos “es/ ti/ lha/ços” também é agressivo, mesmo passada sua explosão.
A supressão de partículas do texto (conjunção, preposição e pontuação) no segundo verso (“dois canos explodiram as paredes infiltradas encardidas o que antes”) trazem a rapidez agressiva com que os desafios se expõem para a concretização do trabalho da limpeza. Os obstáculos geralmente advêm da deterioração da própria casa, mas é inserido também um sujeito que dificulta o trabalho: “meu pai pisoteia na água com o sapato vindo do asfalto”. E, assim, se abre um novo leque de enfrentamentos: a esfera pública que invade a esfera privada, justamente pela figura do pai, objeto clássico dos obstáculos e espelhamentos em nossas subjetividades. Sua ação não é violenta de forma direcionada; mas ele “pisoteia”, mancha a casa com as sujeiras do mundo exterior e, assim, obriga essa que escreve a esfregar mais, com mais ênfase. É justamente aí que começa sua repetição mais estruturada.
O ódio é, como já dito, um elemento-chave desta poética. E a chave gira quando a voz poética admite a imanência do seu ódio: “jogo fora o que resta na so(m)bra/ o ódio que tenho em mim” parece indicar que, apesar de toda a limpeza – a concreta e aquela metafórica, subjetiva, como um descarrego -, o ódio segue vivo em seu interior, flexionado no presente e não em um passado escoado pelo ralo. O ódio, assim como a sujeira de uma casa, se refaz, é intrínseco ao correr da vida (a da casa, a das pessoas) e pode ser, então, um dos responsáveis pelo movimento que faz o poema.
A fricção dos temas da limpeza e do ódio (e fricção me parece uma ótima palavra para falar de ambos) não é imediata, mas está presente ao longo de todo o livro. Revela a repetição como um procedimento prático comum, que leva à intensidade. O ódio e a limpeza parecem fazer uma movimentação ambígua, ora unidos, ora atracados um contra o outro. Não deixam de ser formas de se confrontar com a própria insatisfação perante o mundo. Neste poema, então, os procedimentos para encarar o mundo se retroprojetam em pelo menos dois também árduos procedimentos: o de limpar a casa e o de escrever poesia.
Um amor todo fudido
O segundo poema sobre o qual me debruço é “Pombo morto”, um poema que, mais uma vez, estabelece vínculos entre as esferas pública e privada e a posição desta voz. Muitos elementos presentes em “Pombo morto” são marcadores do livro O coice da égua. Ele estabelece relações entre erotismo e ódio, cidade e corpo, abandono e autonomia, sujeira e poesia, entre várias outras, que permeiam todo o livro. Como já dito, todas estas questões são permeadas pelo posicionamento em relação ao tempo, ao espaço, à classe, ao gênero, à raça.
É um poema exemplar para trabalhar o tema do amor segundo Valeska Torres. Ao expor sua relação com o amor, a busca por ele, suas negativas e armadilhas, suas materializações apesar de, a voz poética segue seu tom de testemunho. É importante falar sobre o amor na poética de Valeska Torres, porque o desejo de tocar e de se relacionar é um elemento chave na construção desse sujeito que escreve/fala, e não pode ser apagado ou reduzido apenas ao desencontro.
Vou enfocar o olhar, de forma mais detida, no antepenúltimo verso de “Pombo morto”, por sua centralidade no desfecho do poema. “o poema fudido suplica todo ferido pra que te deixe atravessar a rua” é um verso sobre a disjunção amorosa. O verso é escrito em linguagem informal, com uma dupla de adjetivos (fudido/ferido) do mesmo campo semântico e sonoramente muito semelhantes, criando um efeito de repetição que aprofunda o problema. O verso inicia a última estrofe, e é longo como todos os outros versos anteriores, mas contrasta com os dois versos finais “de longe/ te vejo indo”, que são a consequência do longo e violento fluxo de pensamento do poema.
“o poema fudido suplica todo ferido pra que te deixe atravessar a rua” pode ser também um verso sobre abandono. O poema, este sujeito ativo do texto, age para que aquela que escreve permita a disjunção amorosa, permita que o amado vá embora. Este é um verso sobre a resistência ao abandono, a afeição a uma relação e a luta pela sua manutenção. É um verso sobre a mudança de perspectiva sobre o abandono – o que, enfim, permite deixar o amor ir embora: uma forma de reconstrução.
O sentimento de abandono é uma questão no amor como o conhecemos. E é uma questão que se complexifica quando são imbricadas as dimensões de gênero, raça e classe, responsáveis por moldar uma parte considerável do que são as relações amorosas. O sentimento do abandono move muitas coisas: a luta por uma relação, a nostalgia de momentos passados, a comparação, a solidão.
É um verso que colabora para a alteração de um estado emocional transposto para o poema em todas as passagens anteriores. Ele é a chave que vira e que altera o sentimento de abandono, no sentido de desabrigo e solidão, para o sentimento da conformidade, no sentido de uma paciência transformadora. Claro que essa aceitação não acontece de repente: é preciso uma estrofe anterior inteira dedicada à ação de resposta “em caso de emergência”, em que o sujeito que fala se encontra em estado de “abolição”, quebra tudo e se cultiva dentro de um vaso sem recursos para a sobrevivência. A sequência é a da explosão seguida pelo encerramento em si mesma. Daí, irrompe o poema como sujeito, desatando o nó a partir da negação do estado de abandono.
Cada estrofe do poema é um momento da consciência do sujeito poético – mesmo que às vezes, mais marcadamente na segunda estrofe, o momento retomado e descrito seja uma sequência muito rápida de elementos dispersos, gerando encadeamentos raros. O caminho traçado vai do tempo para a rua, da rua para o sangue, do sangue para o desconforto, do desconforto para as estrias, das estrias para o carinho, do carinho para a falta dele, da falta dele para a afirmação dele enquanto posse, da posse para a crise, da crise para uma libertação bem dolorida, bem não resolvida, como são muitas disjunções da vida, em que a gente segue vivas mas com alguns caquinhos a menos. Este é o caminho do sentimento do poema.
Essa lista de elementos permeia o livro, em poemas como “Indomável” e “Inhaca”. Os homens crescem sobre ela, “querendo ser grandes em cima” dela, minando suas possibilidades, aprofundando o sentimento de carência (palavra mobilizada no poema “O vício do crédito fácil”), de imundície, de retração (“não quero que ninguém me veja”). É um livro sobre muitas formas de violência, sobre o sentimento de desconformidade (que pode ser muito solitário, abandonado), mas é também um livro sobre as formas possíveis e encontradas para reagir.
A ação do poema
Voltamos, agora, para “o poema fudido suplica todo ferido pra que te deixe atravessar a rua”. Além do tema da disjunção amorosa, o verso fala sobre o papel mobilizador de ação do poema. O poema se refere a ele próprio, mas se posiciona contrário ao desejo de quem o escreve. O poema toma partido ao lado do homem que vai embora. E o poema, ao suplicar, é capaz de fazê-la deixar o homem ir. O poema é a matéria da dúvida na consciência de quem escreve, é um dos sujeitos na ação necessária para o estabelecimento da ruptura e da calma que se expressa nos dois versos finais.
Os sujeitos presentes neste verso são, portanto, três: o poema, o sujeito poético, o homem amado. O sujeito poético se dirige ao homem na segunda pessoa; nós, leitores, já conhecíamos esses dois desde o início do poema. O poema é, portanto, um terceiro, que ainda não havia sido apresentado mas que, possivelmente, acompanhou a relação desde antes, pois está ferido assim como o homem que foi ferido antes por quem escreve (“quebro/ você no canto”).
Este verso, ou melhor, esta estrofe final, funciona como uma conclusão que altera a perspectiva do poema. Se, antes, a voz poética descreve com precisão suas lembranças sobre tempos passados, com elementos muito específicos de determinados domingos, determinados espaços públicos, determinados trechos de seu corpo, partindo sempre da ferocidade da própria experiência em frases encavaladas, na última estrofe o verso aqui discutido altera o prisma: ao fim, toda a experiência relatada e alargada pela linguagem do poema não serve para a concretização do desejo de quem escreve, e sim para o seu convencimento do oposto, de si para si mesma, através das palavras. O final do poema indica uma transição, que parte da indignação ativa (cheia de verbos, cheia de ações) para a resignação.
É nesse acúmulo de situações da experiência vivida, marcadas (às vezes alternadamente, às vezes ao mesmo tempo) pela violência e pelo afeto (num mesmo poema há os versos “as cutículas sangrando espirrando líquido vermelho tudo é dor” e “e transas de compridas horas no quarto o eu rebocado com pasta branca”), que ganha força o poema. O poema não é o único sujeito desviante… O pombo morto que intitula o poema é mais uma das perspectivas possíveis para encarar a realidade, e é também uma metáfora para as coisas que o tempo faz (“com suas grandes mandíbulas esmigalhando a carniça caída”). Os signos tempo e poema, apesar das letras minúsculas no texto, funcionam como entidades, sujeitos maiores capazes de estraçalhar pombos, marcar o crescimento, romper o amor.
Do ferrete ao coice
São muitos os elementos mobilizados por Valeska Torres para construir sua poesia tiro, porrada e bomba. Aqui, tentei listar apenas alguns, mas cada poema traz consigo múltiplos pontos de leitura, chaves a serem giradas, chutes para engolir a seco, sussurros para escutar, vozes da gente mesma impelidas a falar também.
Esta característica da poesia de Valeska está inserida em um momento que a abrange, na poesia contemporânea que vive e reage, às suas maneiras, a uma estrutura social brasileira que aprofunda suas misérias e recebe de volta o desejo da revanche, a resistência, a resiliência. O problema trazido por Valeska é, ao mesmo tempo, particular e coletivo. A égua retratada por Valeska é ela mesma, e pode ser, também, muitas outras pessoas, obrigadas pela injustiça do mundo a retrucarem, a serem incendiárias.
O livro é mais que o simples retrato, porque ele não é passivo: é um manual de ação. Isso se explicita nos títulos de suas quatro seções – Ferrete em brasa; A bufada; No cio, relincha; O coice – demarcadoras do processo que vai da violência ao revide. Tudo o que vai, volta. Há, segundo Valeska, pelo menos “Três formas de matar porcos fascistas”. E há gente como Marlene, há mais gente pelas cidades, pelos subúrbios, sobrevivendo em suas vidas tão específicas, alterando as rotas da morte. O livro de Valeska não deixa de ser um novo Minimanual do guerrilheiro urbano. Da guerrilheira, no caso.
A égua é, na verdade, uma mulher, ainda que digam que não, cruel e insistentemente. E ela é forte, e ela chuta longe, e ela acerta.
O coice da égua
Valeska Torres
7Letras
88 páginas – R$ 39
Helena Zelic é poeta, comunicadora, militante feminista. Autora de Durante um terremoto (Patuá, 2018) e das plaquetes 3.255km (nosotros, 2019) e Caixa preta (Primata, 2019)