Sobre falsificadores de informação e traficantes de notícias falsas

Sobre falsificadores de informação e traficantes de notícias falsas
Carlos e Eduardo Bolsonaro, espécie de Henry Ford da indústria de fake news no Brasil (Foto: Reprodução/Facebook)

 

Esta semana aconteceu uma operação policial de busca e apreensão contra todas as categorias de pessoas envolvidas na cadeia produtiva de fabricação de notícias e distribuição de informações falsificadas que o bolsonarismo mantém funcionando desde pelo menos 2016 e que esteve profundamente ativa, e bem financiada, desde 2018. A operação é parte do inquérito das fake news contra o Supremo Tribunal Federal (STF) produzidas e disseminadas pelo que o ministro Alexandre de Moraes recentemente chamou de “milícias digitais”. A operação executou 29 mandados de busca e apreensão contra YouTubers e outros influenciadores digitais, deputados e empresários do bolsonarismo. 

Foi um choque para os bolsonaristas, que ainda estavam celebrando a operação policial do dia anterior contra um dos seus inimigos públicos mortais, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Acordar com a Polícia Federal (PF), que dizem adorar, na sua própria casa, cumprindo um mandado judicial que os considera suspeitos de um crime, pareceu-lhes uma heresia. E foram tantos vídeos, tantas lives, tantos tuítes e posts clamando aos céus contra a supressão da liberdade de expressão, o ataque à democracia supostamente perpetrado pelo STF, que só se falou disso nas arenas digitais da política no meio da semana. Do típico vitimismo da extrema-direita, que precisa a todo custo vender a ideia de que é perseguida e sitiada pelo jornalismo, pelo comunismo, pelas minorias e pelos organismos internacionais, passou-se ao ataque. Voltaram, então, as tags (formas de manifestações em meios digitais) pela prisão de todos os ministros do STF, de ameaça ao ministro Alexandre de Moraes e as típicas fake news sobre práticas criminosas dos ministros da Suprema Corte brasileira. Em suma, no final do dia, os bolsonaristas voltaram às suas posições iniciais de desafio e ataque frontal às instituições do Estado (STF e Congresso) e da sociedade (jornalismo, ciência e críticos do governo), ainda mais revigorados porque se sentiram atacados pela manhã e eles precisam de inimigos para se manter motivados.

Esta é a percepção pública que trataram de vender, mas o fato é que estão assustados porque, pela primeira vez, sentiram o peso da mão do Estado. E o inquérito, como amplamente difundido ontem pelo jornalismo, está alcançando a família Bolsonaro, principalmente os filhos Carlos e Eduardo, que, como é sabido, coordenam todo o departamento de propaganda e manipulação que dá sustentação ao governo. 

Desde 2016, todo mundo fala de fake news. No Brasil, em 2018, todo mundo recebeu alguma amostra de notícia falsa da extrema-direita (a esquerda também usou, porém em menor número), em grupos de WhatsApp. Ocorre, porém, que o pequeno traficante e consumidor de falsificações e imposturas políticas, que conhecemos das nossas relações pessoais e familiares, são só viciados ou gente que passa adiante a droga apenas para continuar ganhando as recompensas psíquicas do consumo de fake news. O craqueiro e o pequeno traficante de notícias, por sua vez, recebe o seu produto dos grandes traficantes e dos grandes falsificadores/falsários de informação. Esses últimos, trabalham desde 2016 em ritmo industrial. 

Neste sentido, Carlos e Dudu são uma espécie de Henry Ford da indústria de fake news no BR: organizaram cadeias de montagem, ordenaram a demanda, montaram times de criadores, arrumaram fornecedores, terceirizaram processos e, assim, garantiram e expandiram o consumo do seu produto.

Além dos Bolsonaros’ Brothers & Co, que estabeleceram o “modelo de negócios” da produção e distribuição industrial de fake news, há ainda os engenheiros de produção (como esses que estão recebendo uma visita da PF esta manhã) e os grandes falsários (mas também traficantes) que vivem de produzir dez publicações por hora, 24 horas por dia, sete dias por semana. Dentre os grandes traficantes (e, eventualmente, fabricantes) temos também os jovens deputados bolsonaristas em primeiro mandato como Zambelli, Alê Silva, De Toni, Kicis, Daniel Silveira, Jordy, Martins, todos na lista dos investigados da PF. Sem falar de ministros como Weintraub e Damares, e de ativistas que se reivindicam jornalistas, comediantes e influenciadores. E ainda temos os financiadores dessa engrenagem, que emprega muita mais gente do que vocês podem imaginar, como Hang e alguns sócios ocultos, também conhecidos pelo rótulo de “grandes empresários bolsonaristas”, que sustentam uma espécie de nova Oban, que é o gabinete do ódio. 

Por favor, sem glamour. A falsificação de notícias e a distribuição de fake news são apenas mais um tipo de tráfico. Tem gerente geral, soldado, vapor, avião, fogueteiro, tem o químico, o dono do morro, o viciado e os que morrem consumindo a porcaria que eles falsificam e distribuem, na pandemia e nas eleições. E tem os grandes beneficiários disso tudo, que se tornaram deputados federais e estaduais, vereadores, prefeitos, governadores e até, vejam só, presidente da República. É por isso que dificilmente poderia vir do Executivo ou do Congresso alguma medida de responsabilização dos grandes criminosos da falsificação e tráfico de informação no país. Parte desses Poderes é composto por beneficiários, nunca apoiaria medidas contra o seu próprio interesses. Vejam que metade da tropa de choque Bolsonaro no Congresso foi eleita com base nessa cadeia de falsificação e tráfico e hoje insere-se como parte ativa nessa atividade. Aparentemente, só o STF poderia (se é que vai) quebrar o Mecanismo.

E se você aí está se questionando por que o STF é quem abriu esse inquérito contra os falsificadores de notícias e assassinos de reputação, deveria é estar indagando por que o MP e o TSE não abriram inquéritos semelhantes para apurar fake news nas eleições e na pandemia, quando são mais letais. O TSE até abriu uma, mas não deu prosseguimento. Por quê?

Fake news matam pessoas, como estamos vendo na pandemia. Fake news modificam resultados eleitorais, destroem carreiras públicas de inocentes, enganam eleitores, intimidam e assediam jornalistas e influenciadores (e suas famílias). Se é inadmissível, como disse acertadamente Alexandre de Moraes, “que uma repórter, exercendo sua profissão, seja covardemente agredida por manifestante radical” na rua, por que, pergunto, seria admissível que este mesmo manifestante, juntando-se em dezenas, centenas de milhares, a agredissem covardemente online? Fake news, em suma, são uma arma política poderosa e muito perigosa. Não as subestimem.

Traficantes de notícias falsas fingem desconhecer o quanto a sua atividade é moral e legalmente reprovável. Passaram a terça-feira se queixando por estarem sendo tratados “como se fossem criminosos”. Ora, traficantes de fake news são criminosos, assim como os fabricantes de notícias falsas são marginais, sim. Não há falsário do bem nem traficante virtuoso. Quem manufatura informações falsas o faz para enganar e manipular em benefício próprio ou da facção para a qual trabalha, é um falsário. Infotraficante de fake news é traficante. Falsários e traficantes são criminosos. Ponto. 

Por fim, notem que a maior peculiaridade dos praticamente contumazes dos crimes de falsificação e tráfico de notícia falsa é que este tipo de criminoso precisa convencer os outros (e alguns, a si próprios) que não fizeram nada errado, que na guerra contra o Mal vale tudo, até enganar, mentir e manipular. Imagino Joseph Goebbels, o ministro do Reich para o “esclarecimento do povo” (esse era oficialmente o nome) se explicando postumamente ao Tribunal de Nuremberg, “não, não enganamos, mentimos ou manipulamos. Nós só trabalhamos com o esclarecimento do povo e a propagação da verdade. Só quem é contra a verdade e a liberdade de expressão se incomoda. Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Ah, tá. A pergunta para quem é democrata hoje é uma só: se em algum momento entre 1933 e 1945 houvesse meios institucionais para impedir o funcionamento do Reichsministerium für Volksaufklärung und Propaganda, se deveria interrompê-lo, prender Goebbels e desmantelar a máquina de propaganda nazista ou se deveria respeitar sua liberdade de expressão, que dizer de opressão? A resposta a esta questão determinará se somos democratas ou não. 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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