SOBRE A ARTE E A VIDA
Dias atrás escrevi um texto para o livro do Projeto Arte de Viver do Instituto Lado a Lado que promove um concurso de pintura e poesia com esquizofrênicos. Quando pensamos em esquizofrenia e arte é impossível não lembrar de de Arthur Bispo do Rosário, nosso grande artista brasileiro, e de Aby Warburg, o grande estudioso alemão que fundou a iconologia. Ambos eram esquizofrênicos. Como em sentidos diversos, a sociedade inteira é esquizofrênica (já o dizia Warburg), sugiro a leitura do texto que pode nos ajudar a entender o que se passa em nossos dias em relação à arte, esta que sempre nos salva de todo mal, inclusive o mal de viver.
Sobre a Arte e a Vida
Um dos problemas que enfrentamos em relação à arte hoje é que precisamos entendê-la, mas isso só pode acontecer de um jeito diferente de como a entendíamos em outras épocas. Saber que cada época tem a sua arte, assim como cada tempo e cada espaço, não facilita muita coisa. É preciso levar em conta também a particularidade de cada pessoa que faz arte; daquela pessoa que, profissionalmente ou não, é, de algum modo, artista.
Talvez a arte de tempos anteriores ao período modernista do século XX, seja até hoje evidente como arte para nós. Um quadro de Leonardo da Vinci, para citar um italiano muito conhecido e cuja obra ninguém se negaria a chamar de arte, nos oferecia referenciais de compreensão com os quais muitas vezes poderíamos pensar que tínhamos o mundo da arte nas mãos. Com base nesses referenciais entendíamos que a arte era boa se imitava bem a realidade em termos técnicos, se além de tudo, emocionava e, até mesmo, se agradava e, assim, de algum modo, entretinha. A arte da pintura tinha a função de nos iludir sobre a realidade. Depois, com o modernismo, as pessoas aprenderam a muito custo a não “entender” de arte, a aceitar sua ignorância como observadores. Alguns, mais felizes, aceitaram o enlouquecimento das formas. Compreenderam que uma figura como Picasso – para citar outro europeu, bem menos aceito que Da Vinci, mas a seu modo também reconhecido por sua linguagem genial – tinha feito uma revolução estética. Perceber que esta revolução estética é também política e ética já é uma ideia mais difícil de se ter, mas muitos também se deram conta disso.
Por outro lado, para os menos preocupados, a arte passou a ser apenas uma espécie de loucura aceita. Ou um lugar para fazer loucuras sem maiores consequências. Estavam enganados, pois a arte nunca é uma experiência banal para quem a realiza. A loucura da arte sempre foi a mais perigosa, porque ela podia mudar a sensibilidade das pessoas e assim ensinar um outro jeito de ver o mundo. Mudando a visão das coisas, um outro modo de agir no mundo era possível. Diga-se de passagem que um jeito livre de viver a vida e de expressá-la nunca agrada aos que agem como donos de quaisquer poderes.
Levando em conta estes aspectos. O que é a arte hoje? Arte não é apenas expressão, nem só comunicação de uma ideia, nem apenas um problema de qualidade estética de uma obra. Arte, tampouco é uma questão conceitual. Arte é, para nós hoje, muito mais uma questão de experiência estética. Mas o que é isso? Todos nós vivemos experiências estéticas, poucos tem experiência com a arte. Experiência estética é a vida da percepção, das sensações que vão do sentimento diante de um filme até o uso de drogas. O mundo da estética é vasto e nem sempre está povoado de arte. A indústria da cultura, os meios de comunicação de massa que administram a experiência sensível das pessoas em geral, ocupam o espaço onde poderia acontecer o despertar da sensibilidade ao qual podemos dar o nome de arte. Aquilo que chamamos de Indústria Cultural acaba com esta chance de despertar da sensibilidade. E ela consegue isso por uma estranha norma estética: a que decreta a criatividade deturpada da publicidade enquanto as potências da arte são confinadas ao espaço dos especialistas. Diante desse quadro, cabe perguntar, como podemos chegar à arte, quando o sistema econômico e político organizado esteticamente conspira contra ela?
Arte se tornou justamente aquilo que se pode realizar fora dessa norma, na contramão da mera indústria cultural e até mesmo das regras que, de um modo ou de outro, os especialistas vão definindo. E aí voltamos ao problema. A norma estética é culturalmente tão forte que muitas vezes não fazemos ideia de como chegar à arte. Como produzi-la? É comum que pessoas que desejam escrever, por exemplo, não tenham ideia de como fazê-lo, porque interpretam a arte da literatura do ponto de vista de uma instituição que deve ter a propriedade da norma a ser seguida. O mesmo ocorre com a pintura. A técnica em pintura é uma coisa maravihosa, mas justamente porque se pode usá-la para combater a própria ideia de uma regra. Muitas vezes as pessoas acreditam sem questionamento que há uma norma para fazer a arte, como se a arte não fosse justamente a contraposição a esta norma.
A arte e a loucura
Além disso tudo, a origem da arte – o motivo pelo qual precisamos fazer arte – permanece misteriosa para nós. Não é por acaso que ela partilha seu caráter misterioso com a loucura, acontecimento da vida cuja origem também perdemos de vista. Aquilo que chamamos de loucura é, independentemente de querermos julgá-la como doença ou não, uma saída da norma de conduta e até mesmo da norma de pensamento que esperamos uns dos outros enquanto as instituições (do Estado à Família) esperam de cada indivíduo. O termo “loucura” é pouco usado hoje em dia senão para expressar um exagero, uma aberração, uma estranheza, uma incompreensão. Mas o termo ainda é válido, embora pareça politicamente incorreto, justamente porque marca um lugar amplo de fenômenos que não podemos compreender, sejam eles bons ou maus. A palavra anda por aí em nosso dia a dia e, desde que a psiquiatria invadiu a esfera da vida, medicalizando todos os fenômenos mentais e espirituais, o termo loucura foi varrido para debaixo do tapete. O uso da palavra, no entanto, é pertinente, quando queremos apenas definir o amplo campo da inadequação ao qual está lançada a experiência mental e de linguagem de muitas pessoas.
Mas há outro aspecto ainda mais importante para compreender a relação entre arte e loucura. É a questão do sentido da arte. Em geral não há consenso em relação ao que podemos chamar “o sentido da arte”. Assim, podemos partir da ideia de que a arte partilha também com a loucura o problema do sentido. Mas se a arte ainda pode ter um sentido, a loucura é o que não terá sentido jamais. Ela representa uma ruptura justamente com o sentido que a arte pode, de algum modo, vir a constituir. Neste sentido, a arte surge em contraposição à loucura. Ao mesmo tempo, a semelhança entre elas pesa mais do que a diferença.
No meio do caminho de nossos pensamentos sobre o tema, podemos nos perguntar: quantas vezes confundimos arte e loucura? Quantas vezes simplesmente associamos uma à outra como se viessem do mesmo fundo obscuro. Não está errado pensar assim. Tampouco está certo. Mas a questão ainda não é bem essa quando o que está em jogo é o mistério da complexa condição humana expressa na arte ou na loucura. Se a arte é a saída da norma, assim como a loucura, por que tendemos a olhar para artistas em estado de loucura como se o que fizessem não fosse arte? Não entendemos de arte, podemos alegar gentilmente para escapar do problema. E talvez seja a saída mais hábil. Mas deveríamos também dizer que não entendemos nada de loucura. Ao não saber o que fazer com isso, entregamos os saberes e os poderes aos especialistas, como se não precisássemos nos comprometer com esses dados da cultura e da existência.
Muitos grandes artistas foram loucos ou mais ou menos loucos. Ou pelo menos foram vistos como estranhos, excêntricos, anormais. Depois da invenção do dignóstico e o avanço do poder da psiquiatria, a loucura foi confinada e explicada. Seu caráter misterioso e incontido criou contornos suportáveis. Sua desmedida foi metrificada. Sabemos da insuficiência da ciência em relação à questão das doenças mentais, nome que damos ao que não conhecemos senão por classificar. E a sociedade sustenta o discurso da ciência porque é, de todos, o mais confortável quando se trata dessa vasta estranheza, deste reino obscuro e sombrio que é o da loucura. Detalhe importante neste contexto e ao qual devemos ficar atentos no contexto desta reflexão é que a ciência também não pode explicar a arte.
A arte escapa, assim como a loucura, dos discurso científicos que tentam amarrá-la. Neste sentido, ela tem mais poder que a loucura. E este poder vem do fato de que a arte é a linguagem universal. Somente ela une o reinos tão ideologicamente separados quanto o dos que são designados como sãos e o dos que manifestam-se no lugar do que os ditos sãos entendem como doentes. Sabemos, contudo, que esta divisão é produto de uma cultura em que a ciência impera como articulação da verdade absoluta sobre o sentido do campo da loucura. Se olhamos do ponto de vista da arte, tudo muda. O que para a ciência é doença por sair da norma, para a arte é o elemento comum. Um simples modo de ser.
O Projeto Arte de Viver, por meio do Concurso de Poesias e Pinturas, quer dar lugar a essa diferença fazendo despertar o conhecimento no âmbito de uma compreensão maior sobre a vida da experiência mental, seu sofrimento e suas características. Sobretudo, seu fim maior é promover uma nova ética, aquela do respeito à individualidade e à singularidade da existência de cada pessoa e sua potência expressiva que é a arte.