Sob o signo da insatisfação
Arthur Rimbaud na pintura 'À volta da mesa', de Henri Fantin-Latour, 1872 (Foto: Reprodução)
Você costuma afirmar que o grande tema da obra de Rimbaud é a insatisfação. Como esse tema se relaciona com a vida do poeta que, em certa medida, foi um jovem de seu século?
André Guyaux – Minha hipótese, ao fazer da insatisfação a força motriz de seus comportamentos e um tema maior de sua obra, leva a vincular Rimbaud ao romantismo, o qual eu defino justamente pela insatisfação. A maneira pela qual Rimbaud se desapega de tudo e se coloca em ruptura o situa sob o signo da insatisfação. Após cada ruptura, a insatisfação renasce. Quando se compreende essa lógica, não se fica mais espantado com a última ruptura, a mais aparente, aquela que o libera.
A evasão aparece em Rimbaud como uma forma ativa de sua liberdade. Albert Henry a considerava um “lirismo cósmico”. Desde o primeiro poema conhecido (“Ver erat”), passando por “Minha boêmia” e “O barco ébrio”, até as Iluminações, você apresenta a evasão como uma espécie de “sensualismo do espaço”. Seriam duas expressões distintas para designar um mesmo fenômeno?
Partir, ir-se embora, abandonar os lugares onde se sente confinado é uma “forma ativa”, como vocês estão dizendo, de liberdade. Dela, Rimbaud fez um lugar comum para a sua poesia. Dela, o exemplo mais impressionante é “O barco ébrio”. Ela aparece nos poemas em latim. É reencontrada em Uma temporada no Inferno, onde assume pleno sentido biográfico. Está no coração de alguns poemas das Iluminações. Parece coincidir com aquilo que Rimbaud não pode deixar de ser e que durante alguns anos ele quis exprimir poeticamente, antes de decidir que não mais iria exprimi-la. Quanto às duas fórmulas, “lirismo cósmico” e “sensualismo do espaço”, elas são sinônimas. Aplicam-se sobretudo às últimas temporadas poéticas de Rimbaud, a poemas em verso como “Eternidade”, ou em prosa como “Aurora” e “Promontório”. Mas as duas quadras de “Sensação”, na primavera de 1870, já respiravam esse lirismo e esse sensualismo do espaço.
Já se repetiu bastante a fórmula contida na carta de 15 de maio de 1871, a Paul Demeny: “um longo, imenso e raisonné desregramento de todos os sentidos”. Você poderia retomá-lo a seu modo, levando em conta que o termo “raisonné” se presta a equívocos consideráveis?
Nesse longo sintagma, com efeito, há uma aparente contradição entre “desregramento” e “raisonné”, se pensarmos que o que é desregrado já não é mais “raisonné”. Rimbaud, porém, nos convida a imaginar que um “desregramento de todos os sentidos” pode ser “raisonné” e, mesmo, organizado. O poeta de maio de 1871 recusa a subjetividade. Ele o faz no momento da polêmica com Georges Izambard, onde dá vazão a toda sua insolência. O que ele entende por “poesia subjetiva” é uma certa herança romântica, com a qual quer romper.
Duplicidades, jogos de máscaras, substituições de identidade – esse gosto pelas metamorfoses torna a singularidade de Rimbaud ao mesmo tempo muito próxima e difícil de cingir. Como você a encarou ao longo desses anos de pesquisa? Já que o poeta, no projeto do vidente, se dedicava ao autoconhecimento, que relações se pode estabelecer entre o “desregramento” e o seu gosto pelas metamorfoses?
A questão sugere uma contradição entre, de um lado, o voluntarismo de Rimbaud, sua maneira de afirmar, por exemplo, “E vi por vezes o que o homem pensou ver” (“O barco ébrio”), e, de outro lado, seu gosto pela alteridade, que se traduziu no exercício do pastiche, performático e perturbador. Tal contradição poderia se resolver na pequena
frase das duas cartas de maio de 1871: “Eu é um outro”, credo da alteridade e, ao mesmo tempo, presunção egótica.
Há, em Rimbaud, ao menos no início, uma bulimia de identidades. É um fenômeno ligado à adolescência: ser o que se quer ser consiste em projetar-se em todos os tipos de identidade. Como a própria criança que quer ser ela mesma ao se tomar por grande aviador ou grande explorador, Rimbaud se identificou com os poetas que ele admirava – provisoriamente –, para melhor revelar-se a si mesmo. E a poesia é o teatro ideal para esse jogo de máscaras.
Rimbaud não é o primeiro a descobrir a alteridade. O que o caracteriza, antes, é a perversão da alteridade. Em “Eu é um outro”, o espírito criador incide numa simples substituição: “é” no lugar de “sou”. Ao fazer o “Eu” dizer que “é um outro”, Rimbaud capta sinteticamente essa pulsão da metamorfose. Bem se vê como o poeta que ele é, o poeta que ele busca ser, destrói outras identidades poéticas para melhor se construir. O jogo de máscaras é um jogo de massacres. Vejam a sorte que ele reserva a Alfred Musset, a Victor Hugo, que se tornam os bodes expiatórios de sua afirmação do “eu”.
Há, nas Iluminações, um poema intitulado inicialmente “Metamorfoses”. Antes de se tornar “Bottom”, o primeiro título é riscado e substituído pelo segundo. Ali se vê bem o que vocês chamaram o “seu gosto pelas metamorfoses”: o poeta se figura como “grande pássaro”; depois, como “grande urso”. A alternância dos dois títulos é uma alternância das duas referências, a Apuleio e a Shakespeare. Rimbaud gosta de alterar os títulos. É o que ele faz com “Canto de guerra parisiense”, que opera um desvio em um título de Coppée (“Canto de guerra circassiano”); com“Minhas pequenas namoradas”, que se apropria de um título de Glatigny (“As pequenas namoradas”); ou, no Álbum zútico, com “Festa galante”, que reproduz, no singular, um título da coletânea de seu amigo Verlaine.
No que diz respeito ao sentido e ao destino dos engajamentos de Rimbaud, sua recusa em bloco do primeiro e do segundo Impérios, a causa antibonapartista e a causa revolucionária permitem reconhecer a posição política do jovem de 1871. Por outro lado, a prosopopeia e a antífrase, o mimetismo e o pastiche, a paródia e a caricatura implacável das retóricas da reconciliação são meios de “fazer falar aquele que Rimbaud não é”. A reinvenção do poema político em Rimbaud é solidária da criação de si mesmo?
Em maio de 1871, no momento da Comuna, Rimbaud tem dezesseis anos e meio. Apenas um adolescente, e viu cair o regime que ele detestava. Tal como Baudelaire, que falava de “embriaguez literária” para explicar a revolução de 1848, Rimbaud enxerga a revolução de 1871 sob o prisma de suas leituras. Sua carta a Paul Demeny de 17 de abril de 1871, no momento em que se desencadeia a tempestade, é uma bibliografia da insurreição. A isso ele acrescenta o seu gosto pela violência. Tudo isso ele traduz numa forma de lirismo vingador, característico de alguns poemas, como “Canto de guerra parisiense”, “A orgia parisiense” ou “As mãos de Jeanne-Marie”. Após Victor Hugo e uma longa tradição religando a poesia à política, Rimbaud soube encontrar outro tom, sarcástico-belicista, já perceptível um ano antes, em “O ferreiro”. A primavera de 1871 é um momento único, imediatamente em fase com o acontecimento. Esse momento se prolonga de maneira descontínua em 1872 (“Que importa a nós, meu coração?”) e nas Iluminações (“Depois do dilúvio”, “Democracia”), como relembranças da “ideia” de revolução, que “sossegou”.
Na transmissão da obra de Rimbaud, autores como Paul Demeny, Georges Izambard, Théodore de Banville, Ernest Delahaye, Germain Nouveau, entre outros, desempenharam papéis decisivos. O de Paul Verlaine, entretanto, foi tal que você chegou a sublinhar: a posteridade de Rimbaud é verlainiana.
Verlaine é aquele que foi abandonado por Rimbaud. Recorro a essa analogia para mostrar que nós reencarnamos coletivamente esse estatuto do abandonado. Rimbaud deixou nosso mundo familiar para viver em outro lugar, para exercer ocupações com as quais não conseguimos identificá-lo, que estão em contradição com a imagem que nos obstinamos a ter dele. Ele o fez, deixando-nos com uma obra interrompida e incompleta. Basta ver como circulam esses “espectros” que são os títulos das obras perdidas, suscitando toda sorte de fantasmas de descoberta. Ora, no ano de 1883, em Os poetas malditos, ao revelar a existência de “A caça espiritual” e dos “Vigias”, ao dar a conhecer que tais “Vigias” eram “o que o Sr. Arthur Rimbaud escreveu de mais belo”, Verlaine entretém, precisamente, o
nosso luto eterno. Verlaine transmite e, ao mesmo tempo, diz: há também aquilo que eu não posso transmitir. É o protótipo do leitor frustrado que cada um de nós encarna.
“Música e música”. A música, que não é menosprodigiosa em Verlaine, teria assumido papel fecundo na musicalidade do próprio Rimbaud?
Claro, a música está presente em todos os poetas. Ela está presente em Rimbaud desde o início. Há, nos primeiros versos, musicalidade; por vezes, raciniana: “Oh esplendor da carne! Oh esplendor ideal! / Oh renovação do amor, aurora triunfal” (“Sol e carne”). Mas a intenção musical só se determina realmente nos versos de 1872, que, em alguns casos, são compostos sob o modelo da canção: são os “refrãos simplórios” e os “ritmos singelos” que serão postos em questão em “Alquimia do verbo”. “Eternidade” ou a “Canção da torre mais alta” têm “refrãos simplórios” ou falsamente simplórios: “Ah! Que o tempo venha/ Em que a alma se empenha”. A ideia de Rimbaud é descobrir poesia nessa singeleza. Assim é da definição da eternidade: “É o mar misturado com o sol”, onde o sensualismo do espaço de que falávamos é reencontrado, formulado em linguagem infantil: “misturado com”.
Quando você estabelece relações entre Baudelaire e Rimbaud, no momento em que “Bohême” se torna poesia, ocorreu-lhe dizer que “os passos do vagabundo são as sílabas do poeta”. Desde “Coração logrado” até “Aurora”, parece que o alcance da própria fantasia é que mudou…
Os passos de Rimbaud são os do caminhante, ou, se preferirmos um retrato mais lisonjeiro, são os passos do boêmio, do vagabundo… Isso pode parecer banal, ou mítico, mas são palavras que ele utiliza e conceitos que sua poesia desperta em nós. E tais passos são também, evidentemente, os da poesia. Rimbaud, como todos os poetas, conta as sílabas. É o que outrora chamavam “pés”, a fim de designar as sílabas contadas dos versos. Tal analogia existe desde que existe o verso, mas Rimbaud lhe deu uma força particular.
Digamos que a obscuridade está para a subversão assim como o hermetismo está para a interdição. Ao retomar as últimas obras de Rimbaud, o motivo dos “amores novos” acenaria para uma espécie de utopia?
Talvez. Mas Rimbaud não constrói utopia erótica como Baudelaire o fez n’As flores do mal, exaltando a “estéril volúpia” do narcisismo lésbico. Em Rimbaud, a imagem do “novo amor” permanece uma virtualidade: é a “Razão” do inadaptado que procura adaptar-se. Em “A uma Razão”, como em “Gênio”, ele reencontra uma forma de lirismo encantatório que o afasta do real: cria sua religião pelo verbo. Tampouco se pode dizer que os “Delírios” de Uma temporada no Inferno e o psicodrama homossexual que agita a “virgem louca” e o “esposo infernal” em seu “casal doido” desenhem perspectivas eróticas; ao contrário. Quando o “esposo infernal” declara que “o amor precisa ser reinventado”, ele se atém a uma postulação. É verdade que nas Iluminações existem dois poemas, “Conto” e “Antiguidade”: passa por eles o vento das asas de um erotismo masculino. Nos dois casos, porém, trata-se menos de construções utópicas do que fantasmas, e fantasmas que se cobrem de um álibi estético. Em “Antiguidade”, a transgressão está camuflada no registro de certo paganismo. Em “Conto”, ele evoca o mistério, na tradição do conto, e, de resto, o conto termina mal: após o sonho de uma “felicidade indizível”,de um aniquilamento na “saúde essencial”, há esta palavra terrível: “ordinário”. Rimbaud, como em outros poemas, destrói o que ele construiu.
Que se pode dizer atualmente da controvérsia sobre o sentido e o valor do silêncio em Rimbaud?
Rimbaud dizia: “Minha jornada chega ao fim”. Verlaine, que cita esta frase de Uma temporada no Inferno, conclui pelo “rápido ressecamento de seu veio, sob o sol fastidioso de Paris.” Isso vale mais que todas as tagarelices que a posteridade derramou sobre o assunto. Pois, nisso, a posteridade já não é mais verlainiana; de resto, nem rimbaldiana. Ela hipertrofiou o “silêncio”, fez dele um mito, o pior de todos, o que provoca mais estragos e o que melhor resiste ao desgaste do tempo, pelo revés da ideia de Verlaine, o qual subentendia que Rimbaud nada mais tinha a dizer. O motivo do silêncio sempre me pareceu o sinal de um cansaço do leitor.
Lucas Bertolo é tradutor e estudante de filosofia na Universidade Federal de São Paulo.
Sílvio Rosa Filho é professor de filosofia na Universidade Federal de São Paulo, autor de Eclipse da moral: Kant, Hegel e o nascimento do cinismo contemporâneo (Discurso Editorial & Barcarolla).