Sob o signo de Strindberg

Sob o signo de Strindberg

Clara Carvalho, Daniel Volpi, Nicole Cordery e Norival Rizzo em “A noite das tríbades”

Welington Andrade

“Mas a ciência do homem foi até agora pouco fomentada por aqueles autores que tentaram com seus parcos conhecimentos de psicologia projetar a vida psíquica, que na realidade continua oculta. Só se conhece uma vida, a sua própria.”

August Strindberg

Criada para integrar a Mostra Strindberg, realizada pelo SESC-SP em setembro de 2012, a montagem de A noite das tríbades, do dramaturgo sueco Per Olov Enquist, em cartaz no Teatro Eva Herz da Livraria Cultura, convida o espectador a usufruir de uma experiência teatral que propõe um mergulho radical na alma humana. A peça foi escrita em 1975 e trata de um episódio da vida do escritor August Strindberg (1849-1912), misturando realidade e ficção. Em uma tarde de março de 1889, Strindberg e sua mulher, Siri Von Essen, reúnem-se no Teatro Dagmar de Copenhague com uma amiga do casal, Marie Caroline David, e com o ator dinamarquês Viggo Schiwe para ensaiar a peça A mais forte. Strindberg atravessa uma profunda crise: está se separando de Siri, não encontra editor para suas obras, vive praticamente na miséria e sente-se marginalizado em seu país, a Suécia, o que o leva a querer montar o Teatro Experimental Escandinavo, em Copenhague, para voltar a ver, por meio de seus próprios esforços, suas peças encenadas. O ensaio começa, mas, em pouco tempo, fatos do passado vêm à tona, estabelecendo um clima de hostilidade geral que irá revelar o pior da condição humana.

Embora as quatro personagens de A noite das tríbades (tribadismo é a palavra de origem grega que designa a prática homossexual entre mulheres) sejam reais, a presença de Marie Caroline David no ensaio de A mais forte jamais ocorreu, configurando um elemento ficcional sui generis que serve de estopim para a explosão de ódio e ressentimento que o texto de Enquist explora tão bem. Siri e Viggo ensaiavam Senhorita Júlia na capital dinamarquesa quando a peça foi censurada e, por isso, então, os dois resolvem encenar, de fato, A mais forte, que Strindberg havia escrito para Siri. Já Marie era uma jovem libertária, de idéias avançadas, com quem Strindberg e Siri haviam convivido intimamente em uma pousada de artistas escandinavos, situada próximo a Paris. Siri deixou-se fascinar por aquela figura feminina que estudara medicina e escrevia críticas literárias e, quando Strindberg percebeu que entre as duas mulheres havia um vínculo profundo, passou a odiar Marie, desfazendo-se os laços de amizade entre os três. Muito dessa complexa triangulação aparece no próprio texto de A mais forte, em que duas mulheres lutam pelo amor de um homem ausente. Strindberg, defende a peça de Enquist, ansiava ocupar esse papel.

Dirigida com muita segurança por Malú Bazán, A noite das tríbades é o tipo de espetáculo que depende basicamente do desempenho dos atores frente a um texto denso e a um jogo cênico enovelado, reunindo um elenco (bastante conhecido do público paulistano) que se sai muito bem da empreitada: Clara Carvalho (Siri), Norival Rizzo (Strindberg), Nicole Cordery (Marie) e Daniel Volpi (Viggo). Intérpretes e direção, aliás, devem ser saudados pelo fato de estarem envolvidos em um projeto dos mais conseqüentes, responsável por fazer circular no ambiente cultural brasileiro idéias teatrais cujas origens remontam à grande renovação vivida pelo teatro na virada do século XIX para o século XX e ao nascimento da modernidade crítica. Ao homenagear duplamente Strindberg, tomando-o como personagem de ficção e ao mesmo tempo recriando as famosas “batalhas cerebrais” do autor, nas quais seus personagens feriam-se mutuamente por meio de diálogos marcados pela exposição de dores e crueldades, a peça de Per Olov Enquist vai diretamente à fonte que alimentou o teatro modernista durante décadas. (“Strindberg foi o precursor de toda a modernidade em nosso teatro atual (…) o mais moderno dos modernos”, declarou em 1924 o dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill).

A obra dramatúrgica do rapaz pobre – que também escrevia romances, contos, textos autobiográficos e artigos científicos –, filho de um homem de negócios com uma garçonete de bar, espraia-se por duas vanguardas que ele ajudou a fomentar, revolucionando incontestavelmente o teatro moderno: o naturalismo e o simbolismo. Militando na primeira delas, Strindberg inovou radicalmente sua carreira, imprimindo a O pai (1887) e Senhorita Júlia (1888) um tipo de realismo sem precedentes, no qual a brutalidade dos diálogos e dos conflitos tornava-se um estilo dramático. Em Modernismo, o fascínio da heresia: de Baudelaire a Beckett e mais um pouco, o historiador alemão Peter Gay afirma: “nunca se ouvira no palco um diálogo tão aberto, ofensivo, erótico e apresentado de maneira tão sugestiva; a rapidez da ação e a economia das falas também eram essencialmente inéditas. (…) Strindberg tratava explicitamente de coisas que a sociedade respeitável não discutia nem havia começado a entender: a coexistência tensa do amor e do ódio, as energias do desejo e do sadismo, os prazeres luxuriantes da vingança, o predomínio da paixão sobre a razão. Raras vezes a ambivalência tinha gozado de tanto reconhecimento”.

A fase naturalista do teatro de Strindberg propiciará mais tarde a chamada “dramaturgia do eu”, na qual a experiência da subjetividade enraizar-se-á de maneira indelével nas narrativas modernas, contaminando não somente o teatro, como também o cinema. (Grande parte da filmografia de Ingmar Bergman é tributária desse legado. Se não houvesse Strindberg, Bergman não teria realizado Persona, por exemplo). Tanto nas peças longas quanto nas obras de um único ato, o dramaturgo revelou-se um mestre do conflito psicológico e da realidade entranhada que subjaz à alma dos indivíduos, evitando incorrer nos inúmeros clichês e lugares-comuns daquele tipo de realismo pitoresco que logo desregularia em hiper-realismo. O verdadeiro realismo, segundo ele, “gosta de ver aquilo que não pode ser visto todos os dias”. Detentor de uma intensidade e de uma profundidade impensáveis, por exemplo, em Ibsen, Strindberg figura ao lado de Dostoiévski e Proust como um acurado psicólogo da literatura moderna.

A dramaturgia subjetiva praticada por Strindberg corresponde à intenção de conferir realidade dramática à vida psíquica, isto é, à vida essencialmente oculta. “O drama, a forma literária por excelência da abertura e franqueza dialógicas, recebe a tarefa de representar acontecimentos psíquicos ocultos. Ele a resolve ao se concentrar em seu personagem central, seja se restringindo a ele de modo geral (monodrama), seja apreendendo os outros a partir de sua perspectiva (dramaturgia do eu), com o que, no entanto, deixa de ser drama”, defende Peter Szondi, a respeito da crise da forma dramática representada nas obras de Ibsen, Tchekhov, Strindberg, Maeterlinck e Hauptmann, em Teoria do drama moderno (1880-1950).

Assistir à experiência da descida aos infernos proposta por A noite das tríbades reveste-se, então, de um caráter de nostalgia que talvez possa se transformar em atitude de resistência. A arte contemporânea não parece tão preocupada em empreender uma exploração profunda da subjetividade, em gerar novas maneiras de ver a sociedade e em examinar que papel cumpre nessa sociedade o artista. Vivemos em um tempo pós-subjetivo, para o qual o que vale mesmo é a exacerbação da singularidade, a violência frígida, a psicologia medicamentosa. Uma perspectiva artística que privilegie a análise interior e a concentração de conflitos (que, no Brasil, diga-se de passagem, moldou tardiamente a dramaturgia de Plínio Marcos e da chamada “geração de 1969”) já não nos soa tão atraente. Para medir o quanto conhecemos de nós mesmos, basta, nos dias de hoje, assistirmos à comédia musical que estiver em cartaz no teatro mais próximo.

A coluna Cena Contemporânea retorna em janeiro, tão logo a temporada teatral da cidade seja retomada.

A noite das tríbades
Onde: Teatro Eva Herz – Av. Paulista, 2.073 – São Paulo
Quando: até 15/12 – sáb, às 18h e dom, às19h
Quanto: R$ 50
Info.: www.teatroevaherz.com.br

welingtonandrade@revistacult.com.br

 

Deixe o seu comentário

Artigos Relacionados

TV Cult