Silêncio, vazio e arruaça
Manoel Ricardo de Lima, autor de 'O método da exaustão' (Foto: Mila Langel van Erven)
Sobre o livro de Manoel Ricardo de Lima, O Método da Exaustão (Editora Garupa, 2020)
a força da existência sem
mundo fixo, contra a frase
feita, a todos os lados, que
impõe a vida como
mapa, modelo, cartografia e
suas formas abissais de
resistência: isto que
não é nada, nunca é
nada
a força, todos os sonhos
do mundo
[Manoel Ricardo de Lima]
Este texto é sobre o livro O Método da Exaustão, de Manoel Ricardo de Lima, um dos livros que atravessam este desesperado ano de 2020 com mais força (na acepção física do termo: “agente capaz de alterar o estado de repouso ou de movimento uniforme de um corpo material”), mas antes quero voltar a uma imagem do início do século XX, porque ela me parece indissociável do modo como o presente é trespassado pela escrita do poeta.
Refiro-me ao drama mais conhecido de Karl Kraus, Os Últimos Dias da Humanidade, que termina com as visões do Apocalipse na Terra e do bombardeio imposto por Marte, onde o que resta é “Campo de batalha. Crateras. Nuvens de fumo. Noite sem estrelas. O horizonte é uma parede de chamas. Cadáveres. Moribundos. Entram em cena homens e mulheres com máscaras de gás. Grande silêncio. A VOZ DE DEUS: Eu não quis isto.”
Em que pesem o título e o desenlace fuminante da peça (concebida para ser apresentada num teatro de Marte, porque “o público do nosso mundo não teria forças para suportá-lo”), no proscênio o fim-dos-tempos não se dá somente na forma de uma grande catástrofe final. Não: para Kraus o apocalipse está desde sempre inscrito na normalidade das formas do cotidiano, como afirma em um de seus aforismos, escrito durante a Guerra (janeiro de 1917): “o estado em que vivemos é o verdadeiro apocalipse: o apocalipse estável.” Estável = inalterável, firme, seguro. Portanto, os últimos dias da humanidade são estes que continuamos ainda a viver, todos os dias.
Mas nesse mundo transformado no cenário de um “apocalipse estável” (nas palavras de Karl Kraus), ou de uma “catástrofe permanente” (nas palavras de Walter Benjamin), cabe formular a pergunta: existe algum propósito em continuar a escrever, dançar, tocar, esculpir, desenhar…?
Essa é a pergunta mais fundamental dirigida à arte, nos últimos cento e vinte anos, ao menos. Theodor Adorno, em 1951, chegou a responder que não. Auschwitz tinha infectado cada sílaba da língua alemã. Dez anos depois, quando em contato com a “contrapalavra” (Gegenwort) de Paul Celan, Adorno volta a achar que sim. As respostas podem ser variadas, mas em geral concorda-se que artista e poeta não poderiam mais se prestar à mera expressão de ideais estéticos, na representação do “super-humano”, e sim, talvez, reconhecer e apresentar – contra a eloquência, contra o discurso – a força atópica do balbucio: palavras mais ou menos insignificantes, entreouvidas na áspera travessia pelo “sobre‑inumano” (das Überunmenschliche) da guerra. Escrita do des-]astre (perda da estrela): céu que se faz ilegível = Escrita do poema: disseminação de palavras-tumbas: Ex-cripta.
O Método da Exaustão, livro de Manoel Ricardo de Lima recém-lançado pela Garupa, é uma resposta pungente à velha (e ainda necessária) pergunta sobre a força ou subserviência da escrita às formas deste mundo. Logo no início, fica claro que sua respiração se apoia num diálogo polifônico, disseminado, ao mesmo tempo certeiro e concentrado, entre/ com textos de distintas épocas – de Da Vinci a Belchior, de Sandra Bullock a Euclides, de Maria Gabriela Llansol a Torquato Neto – que começa com o prefácio assinado pelo português João Barrento (não por acaso, tradutor de Benjamin e muito próximo de Llansol), sua companheira (Júlia, também poeta), seus amigos todos.
São nomes “próprios” que desapropriam a autoridade da autoria e atravessam o livro como intensidades do di-ferimento e da inter-ferência comunal (Inter-ferer = “lutar um com o outro, entre si”) : “contra o/ discurso, o vazio/ dizer sem nome, sem/ meu, sem me,// sem eu (…)”. Enfim percebemos que não se trata de uma única Júlia, um único Ricardo, um único João, assim como o próprio Euclides (matemático grego) ressoa em Euclides da Cunha (autor de “Os Sertões), e vice-versa, numa temporalidade reversível. Ao propor um corte na dura possessividade dos pronomes, a poesia pode se abrir à possibilidade de respirar-com: uma força contra a asfixia das formas:
Um pictograma, chão
de astronauta = cláudia josó
ricardo edson annita tarso sid
horácio euré sílvio davi laíse
sérgio veronica heitor elida
raúl carolina alexandre maria
petrônio domênico e joão
continuam respirando,
mal,
mas continuam, seguem
respirando numa
plataforma, e com
força
antes de todas as coisas
A conjuração de uma comunidade contra o comum, em que os shifters ou dêiticos (dêixis = mostrar, indicar, assinalar) são dedos sem dono, usados para apontar e furar a eloquência serial e embalsamada das notícias, das propagandas, dos levantes políticos (clichês ambulantes, cheios de palavras de ordem), da própria poesia, pervertendo por dentro (e só existe dentro, ou: não existe dentro) a tagarelice que enforma o nosso “apocalipse estável”.
Por isso, embora o livro assuma às vezes o aspecto de uma narrativa, não chega a constituir uma forma estável. Ou, como prefere João Barrento em seu prefácio: só um “estável desequilíbrio”. Mais uma vez, o que se lê é a repetição de um furo na superfície:
uma narrativa? não, nada de narrativas
nunca mais
Pouco importa que estes furos sejam inúteis, no fim das contas. Aliás, o livro é pungente justamente porque parte da compreensão dessa suprema inutilidade, assim como Karl Kraus sabia, ao escrever Os Últimos Dias da Humanidade, passando pelo inominável da Guerra, que “não, a alma não fica com cicatrizes. A bala entrará por um ouvido da humanidade e sairá pelo outro.” Pois é. Eis-nos aqui, mais de cem anos depois, encalacrados ainda. E nesse sentido, a força motriz da poesia talvez tenha a ver com a possibilidade de adiar um pouco o silêncio, a destruição total da linguagem, sem deixar-se seduzir pelas formas banais de uma eloquência tagarela. Algo assim como o que disse um lírico francês sobre a poesia balbuciante de Paul Celan: “Ele não pode parar de falar, porque senão o silêncio cessaria”. O silêncio da poesia é necessariamente ruidoso.
Penso também naquele Bouvard et Pécuchet, de Flaubert, que tanto fascinava Roland Barthes e Ítalo Calvino, em que o autor é habitado pela loucura da leitura preparatória, e sobretudo pelo prazer da cópia, numa empreitada alucinada (a escrita) fadada a um não-fim. E que não deixa de ser um projeto de vingança e insulto à Autoridade, baseado no ódio que lhe inspira a burguesia. No teimoso processo de reescrita de Manoel, percebemos um pouco disso que Barthes admirava no trabalho dos copistas: “A cópia não é um ato mecânico, é um ato de avaliação. Copiar é um ato de avaliação, isso deve ser repetido sempre.”
Contra a lógica (ou escorando-se num tipo de lógica paraconsistente), O Método da Exaustão é e não é um livro de poesia. Pode-se dizer que se trata de um livro contra a poesia, em grande medida, assim como de uma poesia contra a ideia de livro. Desse paradoxo nasce o ruído que desfaz ou fura – feito traça ou broca – o lugar comum do dito (“contra o comum, a estranheza// contra o comum, a luta, o/ limiar, o milagre”). Mesmo o vigoroso apelo do poeta a certos saberes científicos (à fisica, à matemática, à engenharia), que dão força e complexidade ao projeto, parece ir ao encontro da afirmação de Paul Feyerabend, naquele polêmico Contra o Método: “A ciência é um empreendimento essencialmente anárquico.” Não há uma fórmula (nenhuma forma) contra o Método: apenas um esforço: “estágio da experimentação em que o corpo, se deformando, começa a deformar, por sua vez, o corpo deformador.” (Manoel Ricardo de Lima <> Joaquim Cardozo <> Beppo Levi).
Reivindicando o conceito de exaustão, de Euclides (rearmado pelo matemático italiano Beppo Levi) Manoel incorpora em seu método a reescritura – teimosa, incessante e sem fim – de livros anteriores, como Geografia aérea: “guardar a inocência, a espera, estudar// o vento, o encontro, a porrada// uma geografia de ossos, aérea”. E Geografia aérea nasce justamente como reescrita de todos os seus livros anteriores. Quer dizer: na poética de Manoel os poemas nunca estão prontos e as linhas de um poema reaparecem nas linhas de outros poemas de um mesmo jeito, ou armando uma transparência. Tampouco se nota uma relação fronteiriça entre “poesia” e outras dimensões da vida (vida acadêmica, por exemplo), e sim uma montagem que funciona mais ou menos como – para usar o nome de outro de seus livros – um jogo de varetas. Nesse caso não se trata, claro, de mero entretenimento. Vejamos como a questão é tratada em seu texto “Antes do museu, o método da exaustão”, publicado na revista Remate de Males, da Unicamp (de onde saiu a citação acima), em 2019:
Como enfrentar a palavra de ordem, a frase feita, para reinventar outras exigências, outras emergências a partir de alguma disposição política e um outro vocabulário, mínimo que seja? Um disparador se dá no nó que liga a tecnocracia (uma democracia para a eficácia) à frase feita, isto que torna qualquer ideia intransitável. Ainda mais quando a libertação da língua se torna idêntica à frase feita. Karl Kraus é quem denuncia esses usos unilaterais da frase feita e aponta para a manutenção dos imaginários simbólicos, sempre bélicos, produzindo uma imutabilidade e uma pobreza de imaginação. E diz: “aquilo que não é pensado tem de ser feito, mas o que não é senão pensado não pode ser dito”. E, depois: “os que, agora, não têm nada para dizer, porque é a ação que tem a palavra, continuam a falar. Quem tiver alguma coisa a dizer, avance e fique calado”.
Uma curiosidade vem ao caso: antes mesmo de sair da gráfica O Método da Exaustão, Manoel organizou, em parceria com a Mórula Editorial, e em plena pandemia de coronavírus, uma antologia com 70 poemas, 70 poetas + 4 posfácios mínimos, chamada Uma pausa na luta, inspirada em Pier Paolo Pasolini, para quem “uma pausa na luta é, ao mesmo tempo, uma reavaliação da luta.” Isso é relevante aqui porque nos dá a dimensão política do desejo de silêncio (“avance e fique calado”) na escrita inquieta de Manoel Ricardo de Lima, traduzida no gesto de organizar um grande livro para propor uma pausa na luta. Talvez seja um modo de dizer que a poesia ou é contra si mesma (sua tagarelice) ou não é poesia. Postura política que remete a César Aira, um dos mais prolíficos escritores argentinos (Manoel publica relativamente pouco, mas encontram-se na predileção por editoras pequenas), e que, num livro dos anos 1990, Diario de la hepatitis, se põe a escrever, compulsivamente, para dizer que não escreveria jamais:
Nada, ni una línea, ni una palabra. No escribiría, definitivamente. Pero no por no poder hacerlo, no por las circunstancias, sino por el mismo motivo por el que no escribo ahora: porque no tengo ganas, porque estoy cansado, aburrido, harto; porque no veo de qué podría servir.
A utopia – o impossível ao qual a escrita se dirige – não é a retórica cheia de torneios dos oradores; é o retorno ao grafismo, ao esforço muscular reconhecível pelo traço, não pela letra: a mão que produz feridas, fendas, rastros (“Escrever” deriva de Graphein = gravar, sulcar, arranhar). Disso participam o prazer da cópia, a reescrição infinita. E se for para escrever, que se escreva contra: buracos, furos que permitam à linguagem alguma porosidade. Inscrever o presente: aporia.
Eis o modo como comecei a abrir O Método da Exaustão, extremamente perturbado, desconfortável, deslocado. E aqui, sem qualquer intenção de tentar encerrá-lo em chaves capengas de leitura, o que proponho é a multiplicação do gesto: este esforço que é lançar(-se) ao outro através de um poema, que, como disse uma vez Paul Celan, não é muito diferente de um aperto de mãos. Talvez o poema seja mesmo isso:
o choque de um aperto de mãos
a violência de um beijo
não há limite nem
o imprevisto da série
o pouso do carcará é
uma apresentação
do silêncio, um vazio
e uma arruaça
O método da exaustão
Manoel Ricardo de Lima
Garupa
196 páginas – R$50,00
Marcelo Reis de Mello é poeta, crítico e professor universitário. Autor de Esculpir a Luz (2010), Violens (2016), Elefantes dentro de um sussurro (2017) e José mergulha para sempre na piscina azul (2020).