Showbiz de Bowie

Showbiz de Bowie
Bowie: Passagens da infância, episódios obscuros e influências em biografia de Paul Trynka (Foto: Ronald Douglas Frazier/Divulgação)

Frequentemente chamado de “camaleão do rock”, em alusão ao réptil que se camufla de acordo com o ambiente em que se encontra, David Bowie fez o procedimento inverso em sua carreira. Inventou seus próprios cenários, descartando-os e recriando-os.

Longe de se ocultar na Londres pós-guerra cinza e retrógrada em que nascera, criou um mundo calcado em brilhos, cores e pansexualismo – o glam rock.

Na pele de Ziggy Stardust, do aristocrata Thin White Duke ou do astronauta Major Tom, saídos de sua máquina de personas, ele mudou não só a si mesmo, mas o mundo à sua volta – musical, artística e sexualmente.

Na biografia Starman (ainda sem previsão de lançamento no Brasil), que traz mais de 250 novas entrevistas em pouco mais de 500 páginas, o jornalista Paul Trynka, ex-editor da revista britânica Mojo e autor de Iggy Pop: Open up and bleed, procura mostrar quem é David Robert Jones.

Trynka reconta episódios memoráveis da infância de Bowie, época em que estudou na mesma escola de Peter Frampton e teve aulas com seu pai, Owen Frampton; levou um soco do melhor amigo, George Underwood, que causou a dilatação constante de seu olho esquerdo; e criou seu nome artístico.

Ao explorar a juventude do homem que se tornaria lenda, descreve sua passagem por dez bandas antes de partir para carreira-solo e conseguir seu primeiro hit, Space Oddity, aos 22 anos. A música, como narra no livro, foi usada pelo canal televisivo BBC durante a cobertura da chegada do homem à Lua, poucos dias após seu lançamento.

Passagens obscuras, como o consumo intenso de cocaína e o declarado interesse por extraterrestres e nazismo, também são relatados, assim como seu relacionamento com o amigo e rival Marc Bolan.

Igualmente, Trynka fala também de seu “período de Berlim”, entre 1976 e 1979, quando procurou curar o vício das drogas com o músico Iggy Pop, gravou três álbuns e reivindicou sua posição como artista de nível mundial.

CULT – O que diferencia Starman de outras biografias de David Bowie?

Paul Trynka – Essencialmente, sou a única pessoa a fazer um livro baseado em entrevistas novas, que vão lá atrás, no começo, e mostram como o ambicioso menino David Jones se torna David Bowie.

O senhor chegou a contatar David Bowie para escrever a biografia?

Não, ele não estava envolvido com o livro – se estivesse, iria querer ler e aprovar a cópia, e eu queria estar livre para dizer o que quisesse. Lidei com ele algumas vezes quando editava a Mojo, mas sempre por meio de assistentes ou e-mail.

Ele pode ser um tanto complicado de lidar, mas, quando resolve ceder, realmente cumpre bem aquilo a que se propõe.

Encontrou um David Bowie diferente do que imaginava?

Fiquei intrigado com o quão instintivo ele é – as pessoas pensam que ele planeja tudo, mas não é assim… Uma enorme quantidade das coisas é feita no calor do momento.

Também fiquei muito intrigado com o maníaco sexual que ele era quando adolescente. Fiquei surpreso com a quantidade de histórias de suas aventuras sexuais que os membros da banda apresentaram voluntariamente, sem que eu necessariamente perguntasse.

Houve alguém que tenha se recusado a dar depoimento?

A única pessoa com quem gostaria de ter falado e não consegui foi [o músico e produtor] Brian Eno, que estava doente no período em que fiz as entrevistas.

Como foi a infância de Bowie em Brixton?

Brixton era um bairro frio, com ratos correndo soltos e muitas construções arruinadas – mas, também, muita liberdade para as crianças, que podiam passear livremente, sem supervisão.

Seu pai era um fã do show business, mas sua mãe era frígida, especialmente em relação a Terry, seu filho do casamento anterior e meio-irmão de David.

Qual foi a maior contribuição de David Bowie no que diz respeito à revolução no conceito de sexualidade?

Como digo no parágrafo inicial do livro, ele trouxe a androginia e a bissexualidade para a luz do dia, para o mainstream. E ele era destemido em relação a isso, enquanto outros músicos, como Freddie Mercury e Elton John, ficaram no armário.

Acredita que ele sentia necessidade de criar tantos alter egos por insegurança?

Para ser breve, não. Ele não era inseguro. Ele era incrivelmente confiante. Mas os alter egos permitiam-lhe correr riscos, ultrapassar limites. E, se desse errado, ele podia descartar tudo como uma grande piada.

O senhor usa bastante a palavra “dylanesco” para descrever diversos aspectos de Bowie. Que influências podemos detectar em sua música?

Bom, para começar, ouça a voz dele! Muito daquele som nasal vem diretamente do Dylan – assim como muitas das ideias para as letras, como, por exemplo, Let Me Sleep Beside You, que é uma das mais dylanescas, e uma música de começo de carreira chamada Bars of the County Jail, que soa como um pastiche de Dylan.

Pequenos toques, como linhas de abertura com “baby, baby”, algo que Dylan usa frequentemente quando fala diretamente com uma mulher, e o estilo conversacional também são copiados. Ambos usam o discurso direto para falar com o objeto de seu desejo, tecendo uma teia complexa de letras para seduzi-lo.

E em relação à personalidade?

No livro, é revelado pela primeira vez que David foi por pouco tempo um membro do [grupo] Small Faces – mas eles o expulsaram porque ele copiava muito o Dylan! E, o mais revelador, o fato de que ele fez um penteado permanente estilo Dylan. Sua obsessão por Dylan foi bastante duradoura.

Por que ele escreveu Song for Bob Dylan?

Em Song for Bob Dylan, está dizendo que ele é o novo compositor para se observar, assim como Bob fez quando escreveu Song to Woody.

Até que ponto Angie, sua primeira mulher, foi importante em sua carreira?

Ela foi muito crucial em sua vida e sua carreira por volta de 1971, muito mais do que as pessoas imaginam. Mas ela também ultrapassou seu tempo útil mais cedo do que a maioria das pessoas imagina.

Alguns acreditam que, ao declarar-se bissexual, Bowie estava fazendo uma grande jogada de marketing. Concorda?

Ele gostava de experimentar, então foi tudo uma grande diversão. Mas, é claro, ele explorou o potencial de marketing daquilo também.

Como Bowie lidava com a mídia? Ele a manipulava?

Absolutamente! O capítulo de abertura do livro mostra como Bowie instintivamente entendia o poder da TV, e podemos dizer exatamente o mesmo sobre outros meios, particularmente a mídia impressa.

O senhor ora retrata Bowie dominando temas intelectuais, como o dramaturgo Bertolt Brecht, a nova objetividade (terceira onda do expressionismo, surgida no entreguerras) ou o folclore nazista; ora fingindo dominar outros, como quando conversou com o escritor William Burroughs em 1974. Ele é um intelectual ou apenas finge sê-lo?

Essa é uma área intrigante. No começo, blefava bastante, mas, em 1982, ele já podia discutir conceitos com o principal estudioso de Brecht no mundo, John Willett, e convencê-lo de que sabia mais do que ele. A tese do livro, na realidade, é que, ao fingir ser um gênio, ele se tornou um.

David Bowie
Bowie como Ziggy Stardust (Foto: Masayoshi Sukita/Divulgação)

Qual a importância do período passado em Berlim com Iggy Pop, no final dos anos 1970, para o amadurecimento de Bowie?

O período de Berlim (Low, Heroes e Lodger) é a base da reivindicação de Bowie de ser um artista de nível mundial, um artista que teve influência em todos os aspectos da cultura moderna. As eras Ziggy Stardust e Hunky Dory tinham muitas canções de nível mundial, mas o gênero era menos original, pois muitas outras pessoas contavam com uma paleta sônica similar.

Nada mais, porém, soava como a trilogia de Berlim (lembre-se, a propósito, de que Low foi majoritariamente gravado em Paris). Você ainda pode ouvir uma enorme quantidade de músicas hoje que podem ser atribuídas a esse período.

Bowie e Marc Bolan são os dois grandes representantes do glam rock. Qual era a relação entre os dois?

Eram amigos, mas não podiam nunca abandonar a rivalidade. Um ficava feliz quando o outro tinha sucesso, mas sentia inveja do outro também.

O relacionamento dos dois passou por muitas mudanças e é um dos temas centrais do livro. Bolan foi seu principal amigo e rival no começo dos anos 1970; Iggy, seu principal amigo no final dos anos 1970; então escrevo bastante detalhadamente sobre todos os encontros mais importantes entre eles.

No prólogo de seu livro, o senhor pergunta se Bowie era realmente um outsider ou se era um profissional do showbiz explorando os outros. A que conclusão chegou?

Há indícios de sobra para os dois lados. Mas uma resposta é que, embora fosse implacável com seus músicos e os rivais, era ainda mais implacável consigo mesmo. Quando, por várias vezes, seguiu em frente ou então descartou seus músicos, ele também descartou seu próprio passado e teve de recriar tudo do zero. Imagine o quão difícil foi isso!

Tem uma canção favorita de Bowie?

Tenho muitas, mas minha favorita é Sound and Vision. Lembro de ficar chocado com o quão refrescante e diferente soava quando foi lançada. Uma música preferida do começo da carreira é Let Me Sleep Beside You. Meu período favorito é por volta de Low – embora eu também adore Hunky Dory, Scary Monsters, trabalhos subestimados como The Buddha of Suburbia e até material recente como Heathen e Reality.

E alguma de que não goste?

Você pode perceber pelo livro que detesto as canções Tonight e Never Let Me Down. São horríveis e nada originais. Tonigh é um cod reggae ruim como os feitos pelo The Police, grupo que teve hits anos antes, então àquela altura Bowie estava copiando pessoas que estavam ultrapassadas. E Never Let Me Down é uma imitação ruim de John Lennon.

Por último, teve alguma história interessante que não entrou na versão final do livro?

Eu deparei com uma pessoa muito interessante que desapareceu por décadas. Ela me disse algumas coisas fascinantes – mas vocês terão de esperar a próxima edição do livro para descobrir.

Pode dar uma dica?

Bom, vocês sabem que é uma mulher! Aposto que essa informação por si só possibilita que os fãs hardcore de Bowie adivinhem quem é.


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