Shakespeare em Goethe
Edição do mêsA descoberta de Shakespeare, comparada ao milagre que restitui visão ao cego, marca a autonomia de Goethe frente ao modelo neoclássico
Wilma Patricia Maas
A obra de Shakespeare tem um papel importante na formação da “moderna literatura alemã”. Membro de uma geração anterior à de Goethe, o dramaturgo e filósofo Gotthold E. Lessing declarou, em sua Dramaturgia de Hamburgo, ser o espírito das peças shakespearianas muito mais adequado e afim ao gosto e à sensibilidade do público alemão do que o teatro neoclássico francês. Em um texto que ainda hoje mantém seu apelo, o iluminsta Lessing dedica-se, de forma saborosa, a uma comparação entre o surgimento do fantasma do pai de Hamlet e a aparição do fantasma na Semíramis, de Voltaire, para concluir pela indiscutível credibilidade e superioridade do espectro shakespeariano. Para Lessing, os franceses teriam entendido mal os preceitos aristotélicos da unidade de tempo, espaço e ação, propondo em seu lugar um arremedo estéril e hiperrealista. Em Shakespeare, encontra-se ao mesmo tempo o antídoto a essa esterilidade e o caminho para a formação e cultura do público alemão.
O jovem Goethe, poucos anos depois, em meio ao projeto de criar um “teatro alemão”, destinado ao público alemão e adequado ao espírito desse público, deparou-se com a obra de Shakespeare, provavelmente nas primeiras traduções de Wieland. O assombro causado pela leitura pode ser avaliado pelas palavras de Goethe no seu Discurso para o dia de Shakespeare: “A primeira página dele que li foi uma identificação por toda a vida, e quando tinha terminado a primeira peça, fiquei como um cego de nascença a quem um gesto milagroso dá, num instante, a visão”.
Teatro e formação
Ao longo de sua carreira literária, Goethe criará uma galeria de personagens, passando do melancólico Werther aos apaixonados Egmont e Götz, de evidente inspiração shakespeariana. Mas é no Wilhelm Meister que Goethe, na voz do diletante Wilhelm, expressará o impacto que a dramaturgia de Shakespeare provocou no incipiente “teatro alemão”. Estamos aqui em terreno escorregadio, pois é justamente em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796) que a ironia goethiana corre à larga, ainda que nem sempre percebida pelo leitor, ingênuo como é ingênuo o próprio Meister.
No romance de Goethe, o teatro é visto inicialmente como a única instância na qual o jovem Wilhelm, burguês de nascimento, mas dotado de alma aristocrática, poderia atuar como “pessoa pública”, livre dos constrangimentos impingidos ao burguês, a quem a chamada “formação” (Bildung) universal é negada pela própria origem.
Se começamos a ler o romance de Goethe mantendo-nos a salvo daquela ironia que Schlegel chamou uma vez de “ironia primordial”, que devora todas as outras pequenas e grandes ironias até que não sejamos mais capazes de decidir se estamos no plano do irônico ou do extremamente sério, entenderemos que a dedicação ao teatro pelo aspirante a ator e diretor Wilhelm Meister é a tábua de salvação para essa alma sensível e atormentada pelas exigências de “classe”, em um momento da história da Alemanha em que ao jovem burguês de perfil intelectual só lhe restava assumir a profissão de comerciante ou pastor, exercida anteriormente pelo pai. Wilhelm quer mais. É no teatro que encontrará pela primeira vez, a possibilidade de “suster-se como o nobre se sustém”. A possibilidade da assim chamada “formação universal”, aquela capaz de desenvolver no homem seus talentos inatos até atingir o grau de perfeição, está vedada a Wilhelm Meister por conta de sua origem. A atividade teatral deverá substituir a esfera do “grande mundo”. É sobre o palco que o jovem Meister acredita poder alcançar o burilamento de suas capacidades, de seus afetos, de sua aparência, pois “sobre os palcos, o homem culto aparece tão bem pessoalmente em seu brilho quanto nas classes superiores”.
O narrador do romance de Goethe, entretanto, não deixa de semear, aqui e ali, indícios da perspectiva impiedosa sob a qual focaliza seu protagonista, já em suas primeiras experiências teatrais. Desde a leitura das novelas de cavalaria, realizada pelos membros da pequena companhia teatral ambulante à qual Wilhelm Meister se associa, até a encenação de Hamlet, da qual Meister será o diretor e protagonista, a atividade teatral será sempre associada ao comportamento buliçoso e libertino da trupe de atores.
Ao mesmo tempo, a encenação de textos que falem mais de perto ao público alemão, em franca oposição à herança neoclássica que chegara a Alemanha por meio dos autores franceses, é focalizada no romance de Goethe como o caminho a ser seguido para dotar a Alemanha de um “teatro nacional”. Para Goethe, assim como para Lessing, esse caminho passa pelo teatro shakespeariano. Na mesma linha de raciocínio já desenvolvida antes por Lessing, que, na revisão dos preceitos da Poética aristotélica acaba por criar o que a história da literatura veio a conhecer como tragédia burguesa, Goethe verá em Shakespeare o autor em cuja obra se encontra a galeria de características da própria humanidade. Se Lessing transportou e flexibilizou os princípios da tragédia clássica para a Europa da segunda metade do século 18, criando assim um gênero que se mostraria como a base para a literatura alemã moderna e burguesa, Goethe fará da leitura de Shakespeare o móvel para algumas de suas próprias reflexões sobre o gênero dramático.
Um Hamlet goethiano
Em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, uma encenação de Hamlet funciona, na economia do romance, como ponto de crise (e de solução de crise) para a trajetória do protagonista, ao mesmo tempo em que dá ensejo a um longo excerto para que o narrador elabore suas considerações sobre o gênero dramático.
Ao ingressar, em meio às suas peregrinações, na companhia teatral de Serlo, Meister impõe como condição a encenação de Hamlet “por inteiro e sem cortes”. Depois de longa discussão entre ambos, que toma boa parte do Livro V, chega-se ao consenso: Meister identifica duas vertentes na composição da obra: “a primeira, refere-se às grandes e íntimas relações das personagens e dos acontecimentos, aos poderosos efeitos derivados dos caracteres e atos dos protagonistas, sendo alguns destes excelentes, e irretocável a seqüência em que se apresentam”. Tais elementos, segundo o protagonista de Goethe e diretor amador de teatro, são aqueles que “não podem ser alterados por nenhuma espécie de adaptação (…) e que (…) têm levado quase todas as pessoas ao teatro alemão”. Mas Wilhelm Meister distingue ainda uma outra vertente na composição do texto de Shakespeare: trata-se das “relações exteriores das personagens, pelas quais elas são levadas de um lugar a outro ou ligadas dessa ou daquela maneira por acontecimentos fortuitos”. Depois de enumerar algumas dezenas dessas circunstâncias, como as agitações na Noruega, a guerra com o jovem Fortimbrás, assim como o regresso de Horácio a Wittenberg e o desejo de Hamlet de partir para lá, Meister acrescenta que “todas estas são circunstancias e eventos que poderiam dar amplitude a um romance, mas que predicam extremamente a unidade desta peça em que sobretudo o herói não tem um plano, e que são muito defeituosos”.
É assim que Meister chega a delinear uma espécie de “encenação corretiva” do texto de Shakespeare, na qual “o expectador não tem que imaginar nada mais; todo o resto ele vê, todo o resto se passa sem que sua imaginação tenha de correr o mundo inteiro”.
A adaptação sofrida pelo texto de Shakespeare dentro da narrativa de Goethe aponta para a descendência hamletiana do próprio herói de Goethe, que assim como o príncipe dinamarquês, “não tem um plano”. As circunstâncias da vida de Meister, assim como as personagens que encontra ao longo de sua trajetória, são unidas por “fios tênues e frouxos”, a ponto de o narrador goethiano empreender grande esforço, no capítulo final de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, para atar todos eles.
A comparação entre as peças de Shakespeare e própria produção literária (à época, ainda menos do que incipiente), já está presente no Discurso para o dia de Shakespeare, que um Goethe ainda muito jovem dá a público em 1771. Ali, em perfeita coerência com a perspectiva de Lessing sobre a necessidade de se criar um “teatro alemão” mais adequado ao exercício da imaginação e livre da artificialidade do teatro francês, Goethe confessa que “a unidade de ação” lhe parece “amedrontadora” e que “as unidades de ação e tempo [são] pesadas algemas de nossa imaginação”, reconhecendo a “injustiça praticada pelo senhores das regras” capazes de “aleijar tantos espíritos livres”. É ainda no Discurso para o dia de Shakespeare que se encontra famosa exortação: “Franceses! O que quereis com toda essa roupagem grega, ela vos assenta muito grande e muito pesada”.
Certo de que “o gosto degenerado” de sua época não é capaz de afastar a névoa que recobre a visão dos contemporâneos, o jovem Goethe, sabendo-se homem de seu tempo, inclui-se entre eles: “Muitas vezes envergonho-me diante de Shakespeare, pois pode ocorrer que, à primeira vista, eu pense que eu mesmo teria feito de maneira diferente. Logo, porém, reconheço que sou um pobre pecador, que a natureza, em Shakespeare, é sábia, e que meus caracteres são meras bolhas de sabão, movidos por caprichos romanescos”.
De Shakespeare à opereta italiana
O Discurso para o dia de Shakespeare data de 1771 e corresponde à disposição de rebeldia e ao espírito Sturm und Dränger que o próprio Goethe mais tarde rejeitaria. No entanto, em seu romance, escrito 24 anos depois, Goethe encontrava-se mais maduro para fazer uso da ironia e do distanciamento com que brinda seu protagonista e suas “aventuras” teatrais. Mas entre o jovem entusiasta de 1771, que escreve um manifesto a favor da liberdade diante da famigerada regra das três unidades e da grecomania dos autores franceses, e o escritor no pleno exercício da maturidade, que propõe uma encenação “corretiva” de Shakespeare que favoreça exatamente essas mesmas regras, não há tanta oposição quanto possa parecer à primeira vista. Não seria descabido pensar a trajetória do jovem Wilhelm Meister como metonímia do caminho que o próprio Goethe decidiu traçar para sua “pessoa pública”. Afastar-se do discurso inflamado e juvenil da década de 1970 e da admiração apaixonada e irrefletida da arte e da poesia foi um processo que Goethe vivenciou em sua própria trajetória. A grande diferença é que, no caso de seu protagonista, o caminho em direção à formação estética, à superação de uma perspectiva temática e “catártica” da obra de arte não foi alcançada. Meister (substantivo que, em alemão, quer dizer “mestre”, inclusive no sentido de ser perito em alguma atividade) termina sua trajetória em um estado de indecisão pessoal e de ingenuidade artística tão atrozes como no início da narrativa. Depois de sua encenação de Hamlet, Meister abandona, sintomaticamente, a atividade teatral, e sua antiga trupe passa a dedicar-se à encenação de operetas italianas, o que torna a companhia mais viável financeiramente. A encenação de Hamlet, aparentemente bem recebida (por um público que, no romance, é caracterizado, ainda que de maneira sutil, como inculto e imaturo) não cumpre a esperada função de preparar a criação de um “teatro nacional alemão” e de formar o público apto a recebê-lo. Dessa forma, tornam-se duvidosos também os pressupostos que orientaram a leitura de Shakespeare pela personagem de Goethe.
Já no caso do próprio Goethe, chega a ser desnecessário lembrar o sucesso obtido pela empreitada da formação pessoal, estética e política. Inúmeros são os testemunhos das etapas desse processo, seja nos escritos autobiográficos, seja no lugar que ocupa na história da literatura e da cultura ocidental. O quanto Goethe teria submetido também esse processo àquela “ironia primordial” que lembramos acima? Eis uma tarefa para a crítica goethiana do século 21.
Wilma Patrícia Maas é doutora em Língua e Literatura Alemã pela USP e professora da Unesp
(1) Comentário
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Ha, que ironia. O próprio Goethe condenando a excessiva valorização dos valores gregos pelos neoclássicos quando ele próprio mais tarde na sua vida, depois da sua viagem pela Itália e pela Sicília vai voltar pra Alemanha completamente helenizado e incluir figuras e monstros obscuros da mitologia grega na segunda parte da sua peça Fausto. Goethe foi realmente uma metamorfose ambulante.