Ser provinciano é…

Ser provinciano é…

Ou: qual a semelhança entre Danuza Leão e a vereadora Lucinha?

Francisco Bosco

Um dos motivos que fizeram o então candidato Fernando Gabeira perder as últimas eleições para prefeito do Rio de Janeiro foi sua declaração infeliz sobre a vereadora Lucinha, que, segundo Gabeira, teria uma “visão suburbana” a respeito da instalação de um lixão na Zona Oeste da cidade. A infelicidade da declaração consiste em ter ela propiciado um aproveitamento político por parte do adversário, que por seu intermédio transformou Gabeira em “candidato da elite”, preconceituoso, “contra o subúrbio” etc. Mas, bem compreendida – e sem entrar no mérito de sua adequação à realidade, que não tenho como julgar, por desconhecer as posições políticas da vereadora em questão -, a declaração de Gabeira não carrega qualquer preconceito. Ele empregou a expressão “visão suburbana” no sentido de “visão provinciana”, isto é, uma visão limitada, demasiadamente local e contingencial de um problema. Nesse sentido, não se tratava de um preconceito contra determinada origem sócio-geográfica, mas sim de um juízo político contra uma vista com antolhos. Teria sido melhor, portanto, empregar a palavra “provinciana”, que já traz imediatamente em seu sentido corriqueiro esse deslocamento do geográfico para o existencial: ser provinciano não é um problema de origem, é uma forma de ver o mundo. Que forma?

No final do ano passado, Danuza Leão concedeu uma entrevista à Folha de S.Paulo, por ocasião do lançamento de seu livro Fazendo as malas, uma espécie de relato de viagens contendo reflexões sobre temas como moda, elegância, consumo, dinheiro etc. A certa altura da entrevista, ela comenta, em tom de superioridade, que em qualquer lugar do mundo pede-se um copo de vinho ou champanha – “un verre de vin”, “a glass of wine”. “Só no Brasil existe o hábito de pedir uma taça de vinho, ou uma tacinha, pior ainda”. É curioso que um livro que se pretenda tão cosmopolita contenha uma visão tão provinciana. Devemos começar nos perguntando: por que pedir uma taça de vinho seria pior que pedir um copo de vinho? Afinal, costuma-se beber vinhos em taças, não em copos. Na língua portuguesa, a diferença é clara: taças têm haste e base, possuem uma forma mais delicada; copos são geralmente cilíndricos, desprovidos de haste ou asas, têm uma forma mais simples. Na língua inglesa, entretanto, não existe um correspondente perfeito para taça. “Glass” significa também, e principalmente, copo. Se se procura pelo verbete “taça” num dicionário português-inglês, a primeira palavra que aparece é “cup”. Mas “cup” significa antes xícara, como atestam as expressões “cup of tea” e “cup of coffee”. Em seguida registra-se “goblet”, que designa, com efeito, um recipiente para beber com haste e base, sem asas, mas se trata de uma palavra inusual, e que parece remeter a formas arcaicas da taça (em outros materiais que não o vidro ou o cristal). No francês existe, é verdade, a palavra “coupe”, mas que, salvo engano, costuma designar antes a taça, de boca mais aberta, e não abaulada, em que se bebe, por exemplo, o drinque marguerita. Assim, a falta de uma palavra coloquial para designar especificamente o objeto taça, em sua forma específica de taça para vinho, que não é a mesma que de taça para champanhe [flûte, em francês], por exemplo, seria a provável razão para os falantes de língua inglesa e francesa empregarem as palavras “verre” e “glass”, que são menos precisas.

Ponto de vista do colonizado

Não se trata de convocar aqui um grande conhecimento das línguas inglesa e francesa, portanto o que digo acima pode conter alguma imprecisão, mas esse não é o ponto principal. Seja como for, o fato é que, ao pedir uma “taça de vinho”, e não um “copo de vinho”, nós, brasileiros, estamos sendo apenas literais, chamando as coisas pelo nome que lhes foi dado em nossa língua. Menosprezar esse comportamento é assumir o ponto de vista do colonizado, que é um outro nome para provinciano. Pois, uma vez que chamamos um objeto pelo seu nome correto em nossa língua, por que isso seria pior do que o modo como falantes de língua inglesa e francesa o fazem, a não ser pelo simples fato de eles serem americanos, ingleses, franceses etc, e nós, brasileiros? Esse é o princípio do pensamento colonizado: o que fazemos aqui é pior do que o que os “colonizadores” fazem lá pelo simples fato de que o fazemos aqui. E isso é um modo provinciano de pensar porque incorre num localismo às avessas (mas ainda um localismo): a perspectiva adotada é a do suposto centro, de onde emana todo o comportamento correto. Ao passo que o cosmopolitismo seria antes da ordem de uma relativização e de um descentramento. E, pior ainda (agora sou eu quem diz), ao falar em tom superior e blasé da forma diminutiva “tacinha”, o que se está a menosprezar é toda uma inflexão linguística de dimensão sócio-cultural, ou seja, nossa conhecida propensão às formas afetivas da língua. Aqui não é apenas um caso concreto que é ridicularizado, mas um traço cultural importante e definidor. “Tacinha” é desprezível, no limite, porque o Brasil é desprezível. Quem precisa dessas dicas de elegância?

De modo simetricamente inverso, um poeta e ensaísta, em livro recente (não vou dizer o nome de um e de outro apenas porque não quero lhes dar excessiva importância), faz o elogio da província pela província. Esse tipo curioso de petição de princípio, sócio-geográfico-cultural, obviamente incorre numa segunda petição de princípio que é como que sua consequência (i)lógica: o menosprezo do “centro” pelo “centro”. Assim, o ensaísta em questão, defendendo uma experiência poética do espaço urbano, afirma que “só é possível ter uma compreensão real da vida das casas se fugirmos às zonas centrais, onde tudo já foi por demais pensado e sentido. (…) Tudo que se possa viver nesses lugares, por exemplo, Ipanema, no Rio de Janeiro, será sempre a partir de imagens repetidas e caducas”. Portanto, “é preciso pensar o céu dos
lugares deslocados de qualquer privilégio de centralidade, dos lugares ‘caóticos’ e mal-iluminados”. Esses lugares, o ensaísta os chama de “bairros autênticos”, que seriam, é claro, “os da Zona Norte, Centro, e alguns, raríssimos da Zona Sul [do Rio de Janeiro]”. Assim, a Zona Sul (“centro”, para o ensaísta) é um lugar de “bairros-estereótipos”, e isso impediria uma experiência autêntica em seus domínios. Mas isso não é o mesmo que dizer que não se pode ter uma experiência autêntica no Museu do Vaticano, no Louvre ou na Tate Gallery, ou mesmo em Roma, Paris ou Londres? E, inversamente, que basta estar em qualquer subúrbio de qualquer cidade do mundo para se ter tal experiência? Ora, o que determina um estereótipo é antes o olhar do que o objeto. Uma pessoa pobre de espírito pode ler Stendhal e não ter nenhuma experiência; uma pessoa com grandeza de espírito pode olhar de modo novo para um objeto pisado e repisado. Mas isso que, diante desse argumento, aparece como um mero equívoco de perspectiva, no caso efetivo que estamos analisando se revela, no meu entender, um problema sócio-existencial: o privilégio do subúrbio pela sua condição de suburbaneidade, o menosprezo ao “centro” pela sua condição de centralidade. É uma espécie de provincianismo esclarecido. Creio que isso não chega a formar critérios éticos – políticos, estéticos, poéticos – que possamos afirmar como dignos de orientar nossas ações no mundo.

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