Os especuladores de almas mortas

Os especuladores de almas mortas
Tchitchikov e Sobakevich depois do jantar, Marc Chagall,1923 (Foto: Reprodução/Wikiarte)

 

O que mais me atrai nas artes e, particularmente, na literatura, é a especial capacidade dos artistas lerem e representarem a vida, capturando a nossa atenção para aspectos que só aqueles dotados de sensibilidade apurada são capazes de tematizar de modo singular.

Um craque da literatura mundial, o escritor russo Nikolai Gogol, ainda na primeira metade do século 19, publicou uma obra maiúscula intitulada Almas mortas. O livro tem como protagonista um sujeito cujo engenho está na fórmula especulativa, embora aparentemente legal, que vislumbra para obter vantagens financeiras fraudulentas: a compra de servos mortos.

E como ganhar dinheiro assim? Pois é, Tchitchikov, personagem central da história, almeja fazer dinheiro adquirindo dos proprietários rurais, a preços módicos, almas mortas não contabilizadas nos registros oficiais. Com o patrimônio vitaminado, idealiza levantar boas somas de dinheiro vivo a partir da penhora dos servos fictícios. Aproveitando-se do delay entre a morte dos servos dos proprietários rurais e o registro dessas mortes no censo do Estado russo, engendra um negócio malandro e promissor.

Muitos aspectos chamam a atenção no enredo do livro: a sociedade francamente rural e a servidão, lógico, são aspectos estruturais relevantes, que retratam a Rússia tzarista em fotografia que, aliás, em muito encontra paralelo com a sociedade brasileira do mesmo período, igualmente agrícola e, no nosso caso, escravagista.

Mas é a figura de Tchitchikov que toma conta da cena no livro, principalmente pela caricatura sarcástica, irônica e especialmente crítica de negócios e negociantes relacionados à especulação financeira.

Passados mais de século e meio da publicação de Almas mortas, chama atenção o fato de que modelos mirabolantes de negócios, tão esdrúxulos e legalmente questionáveis quanto esse criado por Gogol, seguem brotando da mente dos Tchitchikovs de agora.

Um desses negócios – que nos últimos dez anos tem demandado esforços reiterados para emplacar no âmbito do Estado – atende pelo nome de securitização. No Estado de São Paulo, a última tentativa de fazê-lo decolar veio embutida no pacote de medidas propostas no controvertido PL 529, hoje Lei Estadual n. 17.293/2020.  Embora o governador tenha retrocedido em algumas proposições originais do pacote, a securitização passou incólume dos debates e questionamentos mais acalorados.

 

Mecanismo de entrega de patrimônio
futuro para levantamento imediato
de recurso financeiro, a securitização
é a venda do que não se tem (alma morta),
mas do que se espera ter – embora sem total
certeza –, para fazer dinheiro no presente.

 

 

Trata-se de uma arquitetura própria do mercado financeiro. No universo entre privados com liberdade para dispor do seu patrimônio como bem lhes aprouver, a operação envolve risco para ambas as partes, seja o tomador ou o fornecedor do recurso.

O pretendido transplante dessa figura para os limites da coisa pública, entretanto, tem contornos completamente diferentes, e que inequivocamente esbarram em vedações legais diversas, além de se mostrar um péssimo negócio para o Estado.

Nesse caso, a securitização significa a venda de créditos tributários futuros, derivados de dívida ativa, para levantamento de dinheiro vivo no mercado financeiro.

Em termos legais, trata-se de figura que alberga inconstitucionalidade e ilegalidades. Ofende a Constituição e o Código Tributário Nacional ao vender crédito tributário (o que não é admitido), e a Lei de Responsabilidade Fiscal ao promover antecipação de receita em operação condenada legalmente.

É verdade que os Tchitchikovs de ocasião insistem que não é nada disso e que o caso não é de venda do crédito tributário, mas de “fluxo” tributário. Acontece, caros leitores, que a figura do “fluxo” inexiste no Direito e, apesar de não ser matemática, o Direito se estrutura a partir de conceitos reconhecidos no ordenamento. “Fluxo” pode ser um conceito econômico, mas definitivamente não compõe o universo jurídico.

Se a coisa é arriscada em termos legais, no aspecto negocial a securitização tampouco se mostra saudável para o Estado. Trata-se de um negócio capenga, em que o Estado põe no mercado crédito futuro bom e certo, mas recebe por ele valor irrisório.

Assim, para o fornecedor do recurso financeiro (dinheiro), para o investidor, trata-se de um negócio sem risco, em que o recebimento futuro do patrimônio adquirido é certo. Aliás, registre-se que as operações correspondentes às securitizações não são abertas de forma universal ao mercado. Via de regra, apenas para investidores selecionados.

Para o governante que se beneficia da operação é uma maravilha, afinal, ele resolve seu problema de gestão e toca seu governo “eficiente”, deixando a bomba para os próximos. Para o Estado e a sociedade, fica o rombo no patrimônio e a certeza de um futuro amargo.

A securitização com crédito tributário, como se vê, é negócio de especuladores de almas mortas. Nossa sorte é que o Brasil e o Estado de São Paulo, em particular, não são obra de literatura, e aqui temos órgãos de controle atentos que, não tenho dúvidas, estarão alerta para salvaguardar o nosso patrimônio das invencionices dos Tchitchikovs de plantão.

Márcia Maria Barreta Fernandes Semer é procuradora do Estado de São Paulo, doutora em Direito do Estado pela USP. Atual presidente do SindiproesP (Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo).


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