“Fui salva pela escrita e pela guarda da memória”

“Fui salva pela escrita e pela guarda da memória”
fotos: Marcus Steinmeyer

 

Scholastique Mukasonga cresceu ouvindo de seu pai que, para escapar da morte, deveria encontrar “um belo diploma”. Afinal, apenas um documento comprovando a conclusão de um curso superior poderia amenizar o peso do documento de identificação racial que era, em si, uma sentença: tutsi (grupo étnico minoritário de Ruanda, vítima do genocídio de 1994). Em Ruanda, onde nasceu, Mukasonga assistiu ao crescimento da violência sectária, deixada como herança da colonização belga – e, por isso, teve de se refugiar: primeiro no Burundi, depois no Djibuti, em seguida na França (onde vive desde 1992). “Quando fomos expulsos das escolas, o francês que eu tinha aprendido foi meu passaporte internacional”, diz a autora de Nossa Senhora do Nilo, A mulher de pés descalços e Baratas, dentre outros (todos publicados no Brasil pela editora Nós).

Da pequena cidade de Caen, na Normandia, ela assistiu pela televisão às primeiras imagens do genocídio de 1994, vitimando cerca de 800 mil tutsis – incluindo 37 de seus familiares em Nyamata, região para onde foram deportados em 1959: “Um genocídio não é uma sucessão de massacres espontâneos: é algo que se prepara”.

Enquanto esteve no Brasil para uma série de eventos literários, apresentando obras como Um belo diploma, livro cujo título ecoa a frase paterna, Mukasonga falou à Cult sobre o dever que seus pais lhe confiaram – o de ser a guardiã de uma história que o extermínio tentou apagar – e a sorte de ter encontrado na literatura uma forma de retornar à palavra, sequestrada pelo assassínio e pelo terror.

Hoje, aos 68 anos, ela é uma das vozes mais emblemáticas de seu país no mundo – e crê no poder dos livros: os livros não permitirão que o mal se repita.

Por que a senhora decidiu revisitar seu passado em Ruanda e o genocídio de 1994 ao escrever Baratas?

Sinto que foi uma obrigação. Não tive escolha. Esse livro começou a ser escrito no mesmo dia em que eu soube dos expurgos contra tutsis em Ruanda, ou seja, em 7 de abril de 1994. Desde 1992, eu vivia na França. Se estivesse em Ruanda, não teria escapado ao genocídio.

Eu vinha de Nyamata, região para a qual fomos deportados em 1959 durante a preparação do nosso extermínio. Os assassinos nem precisavam olhar nossas carteiras de identidade, pois lá só havia tutsis – o que facilitou o “trabalho”. Chove muito em Ruanda: é um país agrícola. Em Nyamata, porém, não havia chuva ou vida humana; havia apenas grandes animais, como leões, elefantes, búfalos, leopardos, ou a mosca tsé-tsé, que matava os poucos ruandeses que tentavam se aventurar ali em busca de terras. Foi nessa região em que fomos jogados: para sermos exterminados pela própria natureza. Mas resistimos e sobrevivemos.

Em Nyamata, assistimos também ao início do trabalho ideológico de nos fazer sair do estatuto de seres humanos. Passamos a ser chamados de “baratas”. Depois, em 1963, começaram as matanças de professores e pequenos comerciantes tutsis. Só podíamos ocupar 10% das vagas nas escolas secundárias. Eu fazia parte dessa exceção, mas, em 1973, a Primeira República de Kayibanda decidiu que era preciso matar todos os intelectuais tutsis. Meus colegas quiseram me matar ali mesmo, nas carteiras da escola, mas consegui fugir. Cada nova onda de massacres tomava proporções maiores.

Meus pais compreenderam que seríamos mortos – e que era preciso salvar pelo menos a memória. Que não morrêssemos sendo esquecidos como baratas. Então, de noite, sob a chuva, tive de fugir a pé para o Burundi. Eu não podia voltar para casa, pois, se voltasse, seria morta. Eu e toda a minha família. Do Burundi, fui para Djibuti; em 1992, cheguei à França. Quando tudo explodiu, em 1994, o genocídio retomava o que já haviam começado antes: era a “solução final”.

Imediatamente pensei: “Meus pais me enviaram para preservar nossa história. Chegou o momento”. Levou tempo, mas, finalmente, comecei a escrever. Escrevia em qualquer pedaço de papel que encontrava. Não dormia – porque dormir significava ter pesadelos de perseguição e morte. Minha única preocupação era a de salvar a memória o mais rápido possível antes de sucumbir à loucura que me rondava, pois o sofrimento era extremo e imenso. Escrevi, então, sobre tudo o que vivi em Nyamata – desde os três anos de idade, quando fomos deportados, até os 16, quando parti. Nomeei meus mortos, porque isso significava devolver-lhes a humanidade que lhes foi roubada; lembrar que os que foram assassinados eram seres humanos, não baratas.

Depois, a Frente Patriótica Ruandesa – formada pelos refugiados ruandeses em Uganda que pararam o genocídio – começou a reconstruir o país em um momento em que as Nações Unidas e o mundo haviam nos abandonado. O primeiro gesto do novo governo foi chamar de volta os exilados, mas eu não voltei. Apenas dez anos após o genocídio é que reuni forças para regressar e enfrentar a realidade, mas Gitagata, minha antiga aldeia, não passava de uma mata selvagem sem qualquer testemunho da minha infância. Tomada de vertigem, lutando contra a loucura, corri para o aeroporto de Kanombe e peguei o avião que me levaria de volta à França. Foi quando percebi que não podia continuar guardando aqueles papéis dispersos. Era preciso reuni-los e transformá-los em um texto coerente para publicação. Escolhi três editoras que eu tinha ouvido falar que eram importantes: Gallimard, Éditions de l’Olivier e Actes Sud. A Gallimard aceitou o manuscrito. Eu era a guardiã da memória. Meus pais haviam me confiado essa missão.

A morte está sempre presente em sua obra, mas nunca como encerramento – ela parece gerar linguagem, movimento, memória. Como sua escrita transforma a ausência em presença?

A melhor maneira de reencontrar pessoas amadas que se foram é consagrar uma obra literária a elas. Meu último livro, Julienne [com previsão de publicação em 2026 no Brasil], dedicado à minha irmã, me permitiu reencontrá-la. Eu poderia ter me contentado em ser a guardiã da memória como se fazia antigamente em Ruanda, quando os saberes eram transmitidos de forma oral pelos maires [anciãos, chefes de linhagem], mas o genocídio não se conta através da fala, pois ele sequestra a palavra. Não era possível falar sobre o genocídio, pois ninguém ouviria. Quem compreenderia nossa dor? Quem acreditaria? As pessoas diriam que é um exagero. Tive a sorte de encontrar em meu caminho a folha em branco, minha única confidente, que acolheu meus mortos e minha história. Se eu não tivesse encontrado a escrita, teria enlouquecido. Foi como uma terapia para um sobrevivente.

Seu pai insistia na ideia de que um diploma era um papel que podia salvar sua vida. Como essa convicção familiar moldou sua maneira de enxergar o mundo e a educação?

Em Nyamata, os pais não tinham outra preocupação senão a de salvar seus filhos da morte. Se tivessem de morrer, que ao menos os filhos vivessem. Minha mãe, por exemplo, procurava esconderijos – imagináveis e inimagináveis –, fazia todo tipo de plano para nos esconder. Meu pai, por outro lado, se tornou órfão quando era criança, após uma grande epidemia matar seus pais e irmãos. Ele estudou durante cinco anos o suaíle para servir de intérprete entre os belgas e a população camponesa durante a colonização. Chegou à função de secretário-contador de subchefe. Por ter construído seu status social através dos estudos, ele sabia muito bem o valor da escola e acreditava que ela poderia salvar ao menos um de seus filhos.

Eu era a terceira filha da família – e ter muitas mulheres na família não era valorizado. Por isso, ele dizia que seria ainda mais importante que eu conseguisse me destacar na escola. Ele acreditava que eu faria parte dos 10% de tutsis admitidos no ensino secundário e que “um belo diploma” seria meu passaporte para a vida. Ele não se enganou. Quando fomos expulsos das escolas, o francês que eu tinha aprendido foi meu passaporte internacional. O belo diploma acabou se tornando o cordão umbilical que me ligava à minha família, depois que parti de Ruanda. Ele me permitiu sobreviver, o que não é uma grande sorte: a culpa do sobrevivente é terrível. Durante muito tempo, fui salva pela escrita e pela guarda da memória.

Seu pai dizia que um diploma é um papel, mas que pode salvar da morte, enquanto a identificação de tutsis era feita pela carteira de identidade: um papel que poderia matar. Como escritora, a senhora vê a sua obra também como uma espécie de documento?

Sim, a escrita é também uma forma de documento, pois os livros são o melhor meio para manter a memória viva. A história que conto é dolorosa, mas é a nossa história. É o que nos permite lutar contra o esquecimento e não cair nos mesmos erros do passado. Em Ruanda, a história do genocídio não é ocultada ou posta de lado – muito pelo contrário. Os jovens em Ruanda leem meus livros pois há essa consciência. Por isso, tentei encontrar as palavras certas para que a dor não afastasse o leitor.

Outro aspecto que quero ressaltar é que Ruanda havia se transformado num gueto. Nada podia sair para o mundo exterior. Foi isso que permitiu que o genocídio fosse possível. O mundo, à exceção de alguns que nos abandonaram ao nosso triste destino, não viu o que foi feito durante a preparação do genocídio. Um genocídio não é uma sucessão de massacres espontâneos: é algo que se prepara. Os livros que falam hoje da história do genocídio mostram que todas aquelas humilhações, agressões e massacres anteriores a 1994 foram ocultados das pessoas comuns – não dos políticos. Por exemplo, os franceses comuns não sabiam absolutamente nada em relação ao que se passava naquele país. E os livros permitem que hoje ninguém mais possa dizer “não sabíamos”. Porque está escrito.

Os livros permitem justamente que um país saia de seu confinamento e se abra para o mundo. O presidente Lula acaba de nos enviar uma embaixadora, a sra. Irene Vida Gala. Isso é fruto de uma promessa que ele havia feito a mim quando nos encontramos em 2017, durante minha primeira visita ao Brasil para a Festa Literária Internacional de Paraty. É algo histórico. Graças aos livros, talvez Ruanda não volte a viver o mesmo drama. Talvez a comunidade internacional não nos abandone mais. Porque agora o mundo sabe.

fotos: Marcus Steinmeyer

O que precede um genocídio? Estamos sujeitos o tempo todo à ocorrência de um genocídio? Como evitar a tragédia?

Há sempre alguma ideologia afirmando que certa categoria de pessoas não configura seres humanos e, portanto, não merece viver. Para se difundir uma lógica genocida, é preciso diabolizar as pessoas que se pretende matar. Nós devíamos ser “inyenzi” – baratas – e ser percebidos como tal pelos nossos vizinhos. Em Ruanda, diferentemente de outros genocídios raciais, as etnias envolvidas haviam sido criadas pelos colonizadores. A origem do mal, como escrevi em Kibogo subiu ao céu, é a colonização e a Igreja católica – à qual foi confiada a “missão civilizadora” a ser levada aos povos considerados inferiores e ignorantes –, que imaginou que éramos dois povos diferentes.

Nunca existiu um território hutu ou um território tutsi. A língua e a cultura eram as mesmas. Foi só em 1931 que a administração colonial belga criou um documento de identidade no qual as pessoas passaram a ser catalogadas arbitrariamente – hutus, tutsis e twas. Ser hutu ou tutsi dependia da atividade econômica que você exercia: tutsis eram aqueles que criavam gado como atividade principal; hutus cultivavam a terra; os twas eram caçadores. Até 1931, bastava você mudar de profissão para também mudar de categoria.

Quando os primeiros colonizadores chegaram a Ruanda, encontraram um pequeno país bem organizado, com um poder central. Ficaram surpresos, pois isso não existia em sua concepção de África, segundo a qual os africanos eram incapazes de se organizar. O rei – Mwami – de Ruanda fazia parte da categoria dos tutsis. Então imaginaram o mito de que os tutsis não podiam ser meros negros, mas descendentes de etíopes, ou das tribos perdidas de Israel. Eram “negros brancos”, inteligentes; de forma alguma “negros comuns”. Os colonizadores, então, despojam os líderes hutus que governavam reinos autônomos ao lado dos tutsis e encontram o poder nas mãos de um pequeno núcleo de tutsis. Em 1960, isso cria a fissura. Quando todos os países africanos começaram a lutar pela independência, as pessoas nos vilarejos enxergaram os pequenos tutsis como o “real colonizador”. Os hutus tomaram o poder e foram estimulados pelos colonizadores a expulsar os tutsis para consolidar esse poder.

Ao ver novos genocídios e ocupações se desenrolando diante dos nossos olhos, como o genocídio palestino, de que forma a senhora entende o papel do escritor diante do horror?

O escritor, infelizmente, não tem poderes mágicos. Seu dever é simplesmente escrever. Ele tem a liberdade intelectual de se expressar e o dever de testemunhar para que ninguém possa dizer “nós não sabíamos”. Os livros existem para dizer o não dito, para que as pessoas passem a saber o que não sabiam. Se há manifestações nas ruas, é porque algo foi denunciado, porque um escritor cumpriu seu dever.

Nós, em Ruanda, fomos abandonados pela comunidade internacional. As Nações Unidas, que representam um espaço de diálogo entre os povos, têm a responsabilidade de zelar pela segurança e pela paz no mundo. Por isso, penso que eles têm uma parcela muito importante de responsabilidade pelo que ocorreu e devem ser os primeiros a responder. Senão, por que as instâncias internacionais existem? Para evitar que as situações saiam do controle. Para o escritor, é como lançar uma garrafa ao mar, mas é preciso lançá-la.

Como a senhora vê o cenário das vozes africanas na literatura atual? Sente que o reconhecimento internacional da literatura africana ainda depende de certa validação europeia?

Durante muito tempo, houve um monopólio da palavra. Se quiséssemos ser amplamente lidos, era preciso passar pelos editores ocidentais. No meu caso, escrevi em francês – embora pudesse muito bem ter escrito em kinyarwanda, minha língua materna – pois quis que a minha história sobre o genocídio não ficasse confinada ao meu país. Um genocídio é algo que diz respeito à humanidade inteira, à nossa história comum. Se meu objetivo era tirar Ruanda do gueto no qual nos haviam isolado, eu precisava usar uma língua que fosse acessível ao maior número possível de pessoas. Hoje penso que alcancei esse objetivo, porque fui traduzida a partir do francês para muitas línguas.

Havia um grande intelectual queniano, sempre cotado para o Nobel de Literatura, chamado Ngũgĩ wa Thiong’o; infelizmente, sua alma nos deixou antes que ele recebesse o prêmio, o que é uma pena. Ele deixou de lado o inglês, a língua oficial do Quênia, para escrever apenas em sua língua materna. Seus livros eram muito apreciados por seus compatriotas, mas, infelizmente, encontrar tradutores nem sempre é algo fácil para os editores – infelizmente, o ofício de tradutor ainda não faz parte da mentalidade de muitos na África.

Nossa Senhora do Nilo foi traduzido para o kinyarwanda e distribuído para as escolas em fevereiro deste ano, durante uma grande festa nacional de celebração da nossa língua materna. Entre as mudanças que tivemos após o genocídio, uma delas é a volta do ensino do kinyarwanda nas escolas como primeira língua. As línguas dos países africanos começam, enfim, a ocupar seu lugar. Agora, o que ainda é difícil é o movimento inverso: ser traduzido do kinyarwanda para outras línguas.

O fenômeno da autoficção é muito forte na literatura francófona atual e também tem ganhado força no Brasil. Onde a senhora situa a sua obra nesse espectro entre a memória pura e a invenção ficcional??

Minha adesão – ou não – à autoficção depende da história que quero contar, de sua dimensão e contexto. Baratas e A mulher de pés descalços só poderiam ser autobiográficos, pois narram uma história universal que emerge da minha experiência singular. Falo em nome de todos aqueles que viveram a mesma história.

Em Nossa Senhora do Nilo, ousei me aventurar na escrita de um verdadeiro romance – que também pode ser classificado como autoficção, já que se apoia nas lembranças dos meus anos no colégio Notre-Dame de Cîteaux, em Kigali. Mas essas lembranças foram transpostas para um colégio imaginário situado próximo a uma nascente imaginária do rio Nilo. Religiosas flamengas formam, como em Notre-Dame de Cîteaux, a elite feminina do país. Esse colégio imaginário foi pensado como um microcosmo da Ruanda das décadas de 1960 e 1970, em que a Primeira República Hutu impunha o apartheid étnico e perpetuava o sistema colonial que confiava às missões católicas o monopólio da educação.

Essa autoficção também foi, para mim, um meio de apaziguar o sofrimento daqueles anos de solidão, nos quais eu era excluída por ser tutsi. Foi uma experiência dolorosa que me fez recorrer à ficção para poder narrá-la.

fotos: Marcus Steinmeyer; maquiagem: Mari Nunes; assistência de fotografia: Eric Albano; tratamento de imagens Sandro Iung

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