A propósito de um erro de estrutura
(Arte Andreia Freire)
Se me permitem, o maior erro da criação foi colocar a morte no fim, como um bloco completo que se manifesta de uma vez. Foi uma ideia ruim, faltou dialética neste momento da criação, é o mínimo que se pode dizer. Alguém deveria ter pensado na possibilidade de se morrer às vezes, várias vezes. Você poderia, por exemplo, morrer durante seis meses e, três anos depois, morrer novamente três semanas. Eu arriscaria dizer que o dito “problema da vida”, toda essa confusão que uma má filosofia popular chama normalmente de “o problema da vida”, resume-se a isto: nos impediram de morrer por um tempo. Então você precisa fazer esta escolha teológica desprovida de sentido: ou escolher viver ou morrer de vez. Que tipo de lógica de oposições é essa? De fato, foi uma decisão de principiante.
Morrendo de vez em quando, sentiríamos a vida calar, o sangue parar de circular e deitar em silêncio, o corpo esfriar até o grau zero, os pensamentos se despedirem um por um. Sentiríamos a produção terminar. Sim, veríamos a produção terminar e o desejo ter de dizer: “eis que os objetos se desfazem”. E depois de certo tempo, o sangue voltaria lentamente a circular até encontrar novamente seu pulso, o corpo voltaria a se esquentar e acordaríamos com os lábios voltando a sentir. E teríamos outro ritmo: o ritmo dos que voltaram mais uma vez. E teríamos outro pensar; o pensar dos que um dia morreram e conservaram a lembrança da sua morte, da sua primeira vida, de sua segunda. Isto nos livraria de certos medos próprios a organismos que morrem
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