Sobre incomunicabilidade e destituição

Sobre incomunicabilidade e destituição
Colagem sobre obra A imprensa amarela, de L. M. Slackens. Publicado por Keppler & Schwarzmann em 1910 (Livraria do Congresso)

 

 

Tornou-se moeda corrente dizer que, em tempos de inegável supremacia da técnica, inundados de rápidas transformações, os meios de comunicação e expressão se constituem numa pedra de toque incomparável. É de trivial evidência que o repertório de assuntos e temas que circula no tecido social é fornecido, sobretudo, pelos dispositivos midiáticos. Somos testemunhas de que a nossa época é marcada por uma vertiginosa gama de instrumentos do comunicar que se mostra sempre mais rápida e pervasiva, instalando, assim, um novo dinamismo nas nossas formas de sociabilidade, no acesso ao conhecimento e ao saber e, fundamentalmente, nas formas de diálogo com o outro (o Brasil está na segunda posição no ranking dos usuários do Whatsapp perdendo somente para China).

Paradoxalmente, é nesta ambiência que vimos florescer formas de incomunicabilidade que silenciam, desconsideram, rebaixam, destituem e até matam o Outro (morte simbólica e morte real – lembremos do trágico episódio da jovem Fabiane de Jesus, trucidada no Guarujá por conta de uma página do Facebook que dizia ter certeza ser ela a mulher que matava crianças). Donde podemos concluir que comunicação no sentido radical e originário de pôr em comum, construir vínculos, não é correlata de ferramentas e instrumentos de transmissão. Exemplos temos aos montes desfilando à nossa frente. Coloco-os numa perspectiva reflexiva que puxe do novelo do pensamento teórico alguns fios das tramas que nos fazem humanos, demasiadamente “humanos”.

Mas, por que em meio a tantas formas de comunicação e expressão optamos, naquilo que importa, pela incomunicabilidade, ou por uma comunicação agressiva, até mesmo destituidora?  Dos relatos de uma professora amiga recém demitida: em uma conversa rápida e seca, mas não menos violenta, a pessoa encarregada de acompanhar a demissão expressa enuncia com voz de veludo: “Sinto muito, professora, mas a senhora não pode circular mais pela instituição”. Essa “ordem fofa” foi dada porque a professora, ainda atordoada, falou que iria entregar uma encomenda para uma aluna.  E assim a escolta da simpática funcionária segue até a portaria. No último olhar lançado para os espaços da instituição, a professora vê a moça com voz de veludo conversando com o guarda. Rapidamente, intui o teor da conversa: “ela não está mais autorizada a entrar, não trabalha mais conosco”.

Suponho que esse fragmento nos leva às formas de destituição do Outro pela (in)comunicação ou pela comunicação unilateral, que não leva em conta o que esse Outro pode dizer. Sabe-se que um nome, uma palavra é um mínimo de presença (até as pessoas condenadas à morte têm direito a último pedido, que se dá por meio da palavra ou de um nome).

Destituição e (in)comunicação

Em tempos de fake news, fatos paralelos, pós-verdade e congêneres considero urgência política colocar em perspectiva as formas de destituição que se materializam sobretudo nas redes sociais. Historiadores de proa como Roberto Darnton lembram que a desinformação (que se fundamenta aparentemente em dados com a força comprobatória de um granito, que ganha ares de prova incontestável pelo que se lê, se ouve e até se comprova por meio de fontes “insuspeitas”) tem um longo concurso na história e não é característica de mensagens de texto e tuítes cheios de veneno dos nossos tempos, mas podem ser encontrados em quase todos os períodos da história, inclusive na Antiguidade. A lista parece ser mesmo infindável.

Darnton enumera alguns casos. Procópio, historiador bizantino do século VI, escreveu História secreta, um livro recheado de acusações duvidosas com vistas a arruinar a reputação do imperador Justiniano. Profissionais e pesquisadores da área de comunicação sabemos que os pasquins se transformaram em correia de transmissão para difundir notícias desagradáveis, em sua maioria falsas, sobre personagens públicos. O século 17 testemunhou a ascensão do canard, a gazeta que destilava boatos e falsas notícias. Os canards eram jornais impressos em tamanho grande, às vezes ilustrados com gravuras chamativas.

A morte de Maria Antonieta é exemplo mais que pedagógico das consequências letais da difamação. A produção de notícias falsas, caluniosas, semi falsas ganhou relevo exponencial na Londres do século 18, momento de franca circulação dos jornais.

Provas e convicção

O jornalista Leornado Sakamoto, a partir de suas próprias experiências,  mostra como as notícias falsas procuram ganhar certificado de autênticas por meio de “provas inequívocas”. Alvo constante de campanhas difamatórias nas redes sociais, que apresentam provas, papéis (acusado de “receber mais de R$ 1 milhão por ano para puxar o saco de Dilma”, de ter a ONG Repórter Brasil, acusada de não desenvolver atividade física e se apropriar indevidamente de R$ 1 milhão por ano do Ministério dos Direitos Humanos”, de comprar casa), Sakamoto diz indiretamente nos seus textos que por meio de “provas”, indícios e convicção vamos esculpindo o Outro, definindo seu caráter, sabendo quem ele é (“as pessoas vão comparando “suas histórias”, ao que tudo indica mentirosas, assim insinuou o interlocutor por telefone em assunto que, a rigor, não era de sua alçada, para a moça negra recém demitida no relato que me fez intimamente). Ainda segundo o relato da moça, se ela não está enganada, Sakamoto foi até a instituição onde trabalhou para falar sobre isso.

Com as provas em mãos, pouco importa o que o Outro tem a dizer, sobre ele pairam relatos acima de qualquer suspeita. A comunicação, repito, naquilo que importa, torna-se impossível, afinal de contas, com escória não tem conversa. Escória se expele, se elimina do Facebook, se extirpa do nosso meio antes que provoque ainda mais estragos e “crie” mais estórias. Das provas inequívocas, inquestionáveis, mesmo que entre elas habite post do Facebook de um político sem legitimidade e reputação (sem nenhuma curtida e compartilhamento), legitima-se um processo demissional asséptico, sem explicação, por mínima que fosse, sem palavras, sem olhares, portanto sem vínculos. A moça me diz: podem até dizer que houve tentativa de diálogo, em e-mail com agenda para reunião. Mas é a própria moça que esclarece: tal tentativa foi marcada para um dia em que ela não tinha atividades na instituição e já estava com sua agenda ocupada (ela lembra ainda que mesmo sendo posta para executar uma tarefa em um dia que não tinha aulas, compareceu num evento sem questionar, desdobrando-se em duas numa noite de quarta-feira).

A incomunicabilidade e a destituição parecem ganhar densidade quando xenofobia (nordeste X sul profundo, por exemplo), racismos, sexismos e formas correlatas de intolerância entram em cena. A psicanálise nos ensina que não somos senhores da palavra, mas instituídos pelo que dizemos ou silenciamos, quando deveríamos dizer. Advirto: essa operação não depende da consciência, pois habita nossas estruturas mais profundas. Ao falar, nós somos falados.

Em belo texto intitulado “A existência difamada da gente negra”, a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto lembra que a desqualificação da vida da gente negra figura como um traço constitutivo da experiência brasileira. Tomando um fragmento de Chinua Achebe, escritor nigeriano de origem igbo, nos redireciona para um fundamento histórico: “Esse problema de imagem não tem origem na ignorância, como às vezes somos levados a pensar. Pelo menos não apenas na ignorância, e nem mesmo principalmente na ignorância. Foi, grosso modo, uma invenção deliberada, concebida para facilitar dois gigantescos eventos históricos: o tráfico transatlântico de escravos e a colonização da África pela Europa”. Completa Ana Flávia: “Reconhecemos hoje que essa elaboração comprometeu profundamente o respeito à vida de milhões de pessoas nos mares e nos vários continentes, tendo ressonância na formação de nossa sociedade e apresentando consequências na atualidade em escala global”.

Por que adoto esse fundamento da historiadora? Vitimismo, estratégia retórica para proteger a moça? Nada disso. Longe de adotar o racismo como bunker, biombo com o qual as pessoas se protegem, evitando ser avaliadas no seu lugar de sujeitas de suas ações, como afirmam alguns, o adoto para pensar na forma da demissão (ainda que esse modus operandi não tenha sido adotado somente com ela). Abatida em lapso de tempo curtíssimo, teve, no entanto, tempo para ouvir da rádio peão, infelizmente, sobre o que não pode ser dito. Já diria Wittgenstein: “o que não pode ser dito, tem que ser calado”. Sobre esses interditos, me confessou a moça que ia para casa no final da jornada conjecturando ao modo do filósofo Galvão Bueno: “mas pode isso, Arnaldo?”

A galinha e o grão de milho

É preciso que se diga, no entanto, que o processo de destituição só se realiza plenamente quando o Outro aceita e incorpora o que diz sobre ele. Quando rejeita as formas de destituição porque sabe que não é um grão de milho, institui sua dignidade em bases sólidas e duradouras. Grão de milho, aqui, diz respeito a uma anedota psicanalista muito divertida, por sinal: diz a piada que um jovem senhor começou a ter reações de extremo pavor quando via uma galinha à sua frente, por se sentir um grão de milho e que, portanto, poderia ser devorado impiedosamente pela ave. Depois de várias tentativas em vão da família e amigos em convencê-lo de que não era um grão de milho, mas uma pessoa com nome e sobrenome, resolveram internar o jovem senhor em uma clínica psiquiátrica. Lá ficou por um tempo para um tratamento que parecia eficaz.

Passado algum tempo, psiquiatra e paciente chegaram à conclusão de que o problema havia sido debelado: o jovem senhor sabia que era uma pessoa com família, residência fixa e não um grão de milho. No dia em que recebeu alta, o médico gentilmente vai até o portão da clínica se despedir do seu paciente. Nesse momento, uma galinha irrompe atravessando a rua em direção à clínica. O paciente entra em pânico: meu Deus, uma galinha! O psiquiatra retruca: mas você sabe que não é um grão de milho, portanto, fique tranquilo, ela não vai te devorar. O paciente insiste: sim, doutor eu sei que não sou um grão de milho, estou absolutamente curado, sei que eu sou uma pessoa. Mas será que ela sabe que eu não sou um grão de milho?

A moça negra, que me confidenciou sua história, sabe que não é um grão de milho, portanto não precisa do julgamento do Outro para se pôr no mundo. No entanto, sabe que o Outro é imprescindível naquilo que o filósofo do diálogo, Martin-Buber, designa como relação Eu-Tu.

Em contrapartida, esta moça recebeu apoio de bússolas e monumentos da cena acadêmica, profissional e política manifestando interesse em escrever carta pública sobre sua reputação. Sabedora que não é um grão de milho, recusou gentilmente esse apoio. Afirmando-se onde o Outro a negou, tece sua vida alçando voos mais altos, aprendendo com Ítalo Calvino que é preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma. Assim, ela se levanta, tal como descrito na poesia de Maya Angelou:

Das choças dessa história escandalosa
Eu me levanto
De um passado que se ancora doloroso
Eu me levanto
Sou um oceano negro, vasto e irrequieto
Indo e vindo contra as marés eu me elevo
Esquecendo noites de terror e medo
Eu me levanto
Numa luz incomumente clara de manhã cedo
Eu me levanto
Trazendo os dons dos meus antepassados
Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos
Eu me levanto
Eu me levanto

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