Rosa Luxemburgo e Paul Celan na encruzilhada

Rosa Luxemburgo e Paul Celan na encruzilhada
A filósofa e revolucionária polaca Rosa Luxemburgo (Foto: Domínio Público)

 

No dia 15 de janeiro de 1919 foi assassinada a líder de esquerda, a judia polaco-alemã Rosa Luxemburgo. Em abril, outra efeméride marca os calendários: o fatídico suicídio do poeta judeu-romeno, Paul Celan.

Ambos se encontram aqui nessa encruzilhada verbal, na rememoração interligada por um poema simbólico da barbárie que se repete de tempos em tempos, sob diversas maneiras, com novas roupagens e outras máscaras.

A biografia da “águia polaca” é amplamente conhecida, sua atuação combativa contra os processos revisionistas, a crítica feroz contra a penetração da direita nos sindicatos alemães da sua época, para além de incitar a greve geral como instrumento de combate revolucionário. A lista das ações de Rosa é extensa e até hoje inspira movimentos intelectuais e feministas.

Mas é preciso retornar até o momento da sua tragédia pessoal, e os embates que enfrentou até o fim. Quatro anos após o final da Primeira Guerra, Berlim encontrava-se em uma tensão brutal, impelida por confrontos entre grupos militares e paramilitares; greves e rebeliões; operários tomando as ruas e o Reichstag, tudo apoiado pelo Partido Comunista Alemão que convocara a insurreição.

Aproveitando-se do caos, a extrema-direita alemã sequestra Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. O ato foi realizado pelas milícias patriotas de veteranos da Primeira Guerra, que recusavam radicalmente o avanço marxista, cujos mentores do processo em curso era o casal de esquerda.

Por ironia, os líderes foram levados para um hotel chamado Éden, onde passaram as últimas horas sendo torturados, depois foram fuzilados e lançados em seguida no Landwehrkanal, um dos vários canais que atravessam Berlim.

Segundo testemunhos divulgados, o corpo de Liebknecht estava “cheio de buracos como uma peneira”; e a “velha porca (Rosa Luxemburgo era chamada assim pelos assassinos) estava flutuando”.

Tais fatos foram narrados por inúmeros biógrafos. O testemunho pungente surge num poema daquele que se tornou um dos mais importantes poetas europeus, após a Segunda Guerra, o judeu de origem romena, mas que escolheu a língua “dos carrascos da sua mãe” para erigir sua obra, Paul Celan.

Nascido em 1920, em Czernowitz, enclave austro-húngaro situado onde hoje é a Herzegovina, ele viu os pais serem presos e deportados, e se salvou do holocausto ao trocar de lugar numa fila.

Após a morte dos pais ainda tentou se manter na Romênia, mas depois se transferiu para Viena, em 1947. Em 1948 publicou seu primeiro livro A areia das urnas, mesmo ano em que se muda para Paris, onde passa a estudar Germanística e Línguas.

A partir da década de 1950 começa a sua consagração; casa com Gisèle Lestrange, recebe vários prêmios, conquista o público e a crítica, transformando-se em referência e o poeta decisivo de língua alemã do pós-guerra europeu.

Todo esse movimento lhe garantiu a admiração de figuras como Adorno ou Heidegger, e a sua obra tornou-se emblemática da poesia do século 20, tendo em conta a catástrofe do holocausto que se reflete em muitos dos seus poemas.

Ao se lançar no Sena, em abril de 1970, Celan encerrava um percurso fulgurante e trágico, mas deixou uma obra que ao longo das últimas décadas foi alvo de documentários, filmes e até uma versão musical feita pelo músico Michael Nyman e interpretada pela cantora alemã, Ute Lemper.

Entre as obras que ficaram inéditas, o livro Partitura da neve (Schneepart, publicado um ano após a morte do poeta) guarda um poema em que Celan rememora tais fatos narrados no início deste texto. Trata-se do poema “Tu jazes/Du Liegst”, e traduzido por Flávio Kothe no volume Poesia hermética de Paul Celan.

Ao visitar seu amigo Peter Szondi, em dezembro de 1967, em Berlim, Celan recebeu um livro de presente sobre a morte dos líderes de esquerda. Os amigos passearam pela cidade, viram uma feira natalina (como aquela onde ocorreu um atentado no fim de 2016, na Alemanha), com as típicas maçãs suecas e chegaram até o local onde tudo ocorrera. Celan mescla sua vivência pessoal com reminiscências factuais, intensificando a expressividade, e estampa um poema que também é a denúncia da violência sofrida por Rosa Luxemburgo, e toda a barbárie que a História ostenta e reproduz.

Tal como seu conterrâneo Brancusi fez na escultura, o poeta Celan condensou sua obra até um grau extremo de abstração, encapsulando sua lírica numa voltagem intensa, a linguagem parece inaugurar a opacidade radical, como se quisesse penetrar no limiar do silêncio, como de fato depois aconteceu.

Mas a memória da barbárie ele deixou impressa nos versos. E estes não vão nunca se calar.

TU JAZES na grande espreita,
cercado de arbustos, de flocos.

Vai tu para a Spree, vai para a Havel,
vai para os ganchos do açougueiro,
para as pilhas de maçãs
lá da Suécia –

Aparece a mesa com as dádivas,
faz a curva em torno de um Éden –

O homem virou peneira, a mulher
teve de nadar, a porca,
para si, para todos, para ninguém –

O Landwehrkanal não há de rugir.
Nada
estaca.”



Jorge Henrique Bastos
nasceu em Belém do Pará, é jornalista, crítico e tradutor. Viveu em Portugal 16 anos, onde publicou Poesia Brasileira do século XX – dos modernistas à atualidade, e a primeira edição portuguesa de Macunaíma – o herói sem nenhum caráter. No Brasil, organizou O corpo o luxo a obra, de Herberto Helder, e traduziu O renascimento, de Walter Pater.

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