Rimbaud, o rebelde
O poeta francês Arthur Rimbaud em pintura de Martins Marie Pascale (Reprodução)
“Espero tornar-me um louco muito mau”: essa frase de “Vidas”, uma das Iluminações, poderia ser sua epígrafe geral. Foi muito louco e muito mau. Sua maldade deve ser entendida dialeticamente, como negação criadora. Faltou – estranhamente – o capítulo Rimbaud em A literatura e o mal, de Georges Bataille.
No quesito loucura, sua poética do delírio, do desregramento dos sentidos. O resultado, observou Antonio Candido, é uma “obra difícil, feita para despistar leitores e desanimar intérpretes”, pois “a relação da textura vocabular com as mensagens é tão brilhantemente arbitrária, e ao mesmo tempo tão necessária, que o leitor percebe sem perceber, a não ser nos poemas mais claros, nunca tem certeza” (“As transfusões de Rimbaud”, em Rimbaud no Brasil, UERJ, organizado por Carlos Lima).
Marcelin Pleynet, no ensaio “A liberdade livre” (em Poetas que pensaram o mundo, organizado por Adauto Novaes, publicado pela Companhia das Letras) amplia, acertadamente, a noção do “desregramento dos sentidos” da “Carta do Vidente”: não são apenas os cinco sentidos da percepção, mas a razão, o bom senso cartesiano (em francês, sentido e senso são a mesma palavra, sens); o “senso comum, o sentido moral e o sentido da liberdade”, até mesmo na acepção kantiana, transcendental. E, acrescento, o próprio sentido das palavras: a relação de significação no modo unívoco, substituído pela liberdade de significar.
Já foi questionada a qualificação de Rimbaud como “poeta maldito” (inclusive por Pleynet). Mas nele a maldição é programática, constitutiva da poética e visão de mundo. Se o Nerval de “Anteros” e o Baudelaire de “Abel e Caim” se declararam amaldiçoados, Rimbaud deu um passo adiante. Em Uma temporada no Inferno, criou o monólogo do exilado no mundo – “Por ora sou maldito, tenho horror à pátria” – que perdeu a memória – “De nada mais me lembro anterior a essa terra e o cristianismo” – e tem o “sangue mau”. Um selvagem da “raça inferior”, além de longínqua: “meus pais era escandinavos: vazavam o flanco, bebiam o próprio sangue”. Identifica-se aos marginais e párias; aos criminosos: é “o forçado intratável contra quem se encerram as grades da prisão”. E especialmente aos negros, metáforas do outro, da diferença: “sou um bicho, um negro”; por isso, verberou os “falsos negros”.
Compromisso com o mal
Uma contribuição recente à bibliografia sobre Rimbaud, em A folie Baudelaire de Roberto Calasso (Companhia das Letras), o retrata como “adolescente selvático das Ardenas”, nascido e criado “numa terra renitente a civilizar-se”. A selvageria e o compromisso com o mal já estão em seus primeiros poemas; aqueles enviados a Théodore de Bainville, o consagrado poeta, editor do Parnasse contemporain. O mais extenso da série, “Sol e carne”, expressa, diz Calasso, “a afasia diante do horror cósmico”: é o “horror do espaço”, levando-o a observar que “isso é puro Rimbaud – um Rimbaud pascaliano”.
Rimbaud, o poeta perverso. Entre aqueles poemas iniciais, “Os poetas de sete anos”, em que se descreve como menino que “Teimava em se trancar no frescor das latrinas / Para pensar em paz, arejando as narinas”. Encontra-se com uma “pirralha infernal”, filha de oito anos do “operário ao lado”, que lhe pula às costas: “Ele por baixo então lhe mordiscava as popas, / porquanto ela jamais andava de calcinha”.
Observa Calasso: “Até então a
literatura vivera ignorando tudo
isso. Nenhum escritor, nem mesmo
Baudelaire, ousara mencionar
cenas desse tipo”.
Da mesma ordem é sua adesão à Comuna de Paris, a sangrenta revolta de março a maio de 1871 da qual não conseguiu participar (menor de idade e viajando sem dinheiro, foi detido e mandado de volta para Charleville). Seus poemas mais militantes mostram que a Comuna atraía como destruição. “As mãos de Jeanne-Marie” elogia as “petroleuses”, mulheres que, nas últimas horas antes da ofensiva das tropas de Versalhes, munidas de querosene, puseram-se a incendiar prédios públicos, sedes de instituições, esperando que nada sobrasse para os ocupantes. Para ele, “nobres damas” que, com suas “Mãos sagradas, / em vosso punho, onde acolheis / Nossas bocas jamais saciadas, / Gritam grilhões de alvos anéis!”. Em “A orgia parisiense ou Paris se repovoa”, reclama da cidade voltar ao normal e a burguesia retomar seus afazeres. Antecipa o “Mau sangue”: “O poeta irá tomar o pranto dos Infames, / Os ódios do Forçado, as queixas dos Malditos; / E as mulheres serão flageladas de amor. / Seus versos saltarão: Ei-los! Ei-los! bandidos!”. Poeta e bandido: para Rimbaud, sinônimos.
Há um tipo de maldade mais sutil, da qual o soneto “O adormecido do vale” pode servir como exemplo: bucólico, aparente louvação à natureza, só no último verso é revelado que descreve um cadáver, o jovem soldado com “dois furos rubros no peito”, caído na guerra franco-prussiana. Engana o leitor, dizendo uma coisa à primeira vista, e seu oposto. Mesmo procedimento, entre outros lugares, em “Infância”, a segunda das Iluminações: “No bosque há um pássaro, seu canto vos detém e vos faz enrubescer. / Há um relógio que não toca. / Há uma vala com um ninho de bichos brancos”. Um mundo encantador. Porém, “há, enfim, quando se tem fome e sede, alguém que nos expulsa”. Tudo se inverte: contrastando com o cenário bucólico, a infância é miséria e rejeição. Nesse poema em versos livres, “há uma catedral que desce e um lago que sobe”. As inversões, que vêm junto com seus duplos sentidos: o alto no lugar do baixo; o mundo às avessas que se multiplica nas Iluminações.
“O barco ébrio”, que levou a Paris para mostrar a Verlaine e demais integrantes do futuro simbolismo, proclama seu ideal de liberdade absoluta. A tripulação do barco é morta, permitindo-lhe vogar à vontade. Para Calasso, “a cerimônia inaugural da literatura que soltou as amarras”, pois “O barco navega sem tripulação, porque para guiá-lo bastam solidão monologante e frio delírio”. É arguto seu paralelo com os também programáticos versos finais de “A viagem”, com que Baudelaire encerrou As flores do mal: “Queremos, tanto o cérebro nos arde em fogo, / Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa? / Para encontrar no Ignoto o que ele tem de novo!”.
Provavelmente, Rimbaud
aprendeu algo sobre ocultação
do sentido e linguagem cifrada
com as leituras esotéricas na
biblioteca de Charleville.
A bibliografia relacionando sua poesia à simbologia alquímica em especial, e esotérica em geral, talvez seja superada em volume pelos textos negando essa relação, ou alegando que em nada contribui para a sua interpretação. Mas a interpretação alquímica do soneto “Vogais” é inevitável, pela citação em “Alquimia do Verbo”. Contudo, nem precisava haver lido obras tratando de alquimia, hermetismo e ocultismo, como o comprovaram biógrafos. Sua adesão ao princípio hermético das correspondências não veio apenas daquelas leituras, mas do que já conhecia de poesia romântica, incluindo o Nerval de Versos dourados e, principalmente, Baudelaire.
Inconformismo absoluto
Rimbaud é importante na gênese de uma parcela significativa do que o sucederia em literatura. Exerceu especial influência através da fase final de sua obra, inovadora e transgressora. Sua poesia e prosa, junto com a “Carta do vidente”, justificaram ver-se como o novo Prometeu: “O poeta é realmente o ladrão do fogo”. Uma temporada no Inferno e Iluminações, ao lado de Os cantos de Maldoror de Lautréamont e Um lance de dados de Mallarmé, são literatura do século 20 no final do século 19. Iluminações poderia passar por obra escrita entre 1920 e 1930.
Por isso, tornou-se leitura de
cabeceira dos “horríveis trabalhadores”
que transitariam pelos horizontes onde
se perdeu o poeta-vidente.
Lendo sua obra, enxerga-se simultaneamente o rebelde e o revolucionário. A proposta de André Breton de tornar um só o “transformar a sociedade” de Marx e o “mudar a vida” de Rimbaud já estava lá: aspirava à síntese de rebelião e revolução; queria a liberdade total, intransitiva. Sua retirada e silêncio têm múltiplas razões; entre outras, a derrota política. Sabia que “a verdadeira vida não está aqui”; preferiu não dizer mais nada a ter que expressar o desencantamento diante de um mundo que se fechava à realização da sua utopia, de “saudar o nascimento do trabalho novo, da nova sabedoria, a fuga dos tiranos e demônios, o fim da superstição, para adorar – os primeiros! o Natal na terra”.
Arquivistas e notários merecem respeito; burocratas da literatura podem trazer contribuições relevantes. Mas sua vertiginosa recepção, como um dos autores de maior impacto no século 20, está na medida de seu inconformismo absoluto. Breton relatou que, ao retornar aos lugares onde lera pela primeira vez as prosas poéticas de Rimbaud, tinha alucinações. Paul Claudel teve uma crise ao lê-lo (e adotou a abominável interpretação católica). Henry Miller escreveu O tempo dos assassinos para homenageá-lo. Foi autor de cabeceira dos beats; de Jack Kerouac, que o celebrou em um poema e citou em passagens de sua prosa; de Allen Ginsberg, que levava seu retrato consigo e o pendurava na parede do quarto de hotel em Paris. Patti Smith reconheceu sua contribuição em leituras públicas, poemas e letras de canções, e nestes belos parágrafos do recente Só garotos: “Rimbaud tinha as chaves para uma linguagem mística que devorei mesmo sem ainda ser capaz de decifrar”. Roberto Piva declararia: “Eu aprendi com Rimbaud / & Nietzsche os meus / toques de inferno”. Outros se inspiraram nele. E seus poemas e prosas poéticas continuarão a despertar talentos, mostrando possibilidades de expressar-se; principalmente, modos de manifestação do inconformismo diante do que está aí.
Claudio Willer é doutor em letras pela Universidade de São Paulo, poeta e ensaísta. Traduziu Lautréamont, Ginsberg e Artaud.