Instalação literária

Instalação literária
(Foto: Fernanda Fiamoncini/Divulgação)

 

A partir de elementos formais e da própria linguagem, A vista particular, novo livro de Ricardo Lísias, questiona a forma como vivemos a contemporaneidade

 

Ricardo Lísias é um dos raros autores dispostos a levar em consideração em sua produção literária o suporte físico da obra. Essa preocupação já esteve presente na série de e-books Delegado Tobias (e-galáxia) e no Inquérito policial família Tobias (Lote 42). As performances literárias realizadas por ele sobre a família Tobias também podem ser entendidas como uma outra forma de literatura, algo entre o livro e o teatro. Em seu mais novo romance, A vista particular (Alfaguara), a questão do suporte está novamente presente, ainda que possa ter passado despercebida até aqui pela crítica.

O livro está estruturado da seguinte forma: são dez capítulos, cada um contendo dez seções de uma página cada. Todas elas numeradas de um a dez. Cada um dos capítulos vem precedido de uma apresentação que também ocupa apenas uma página. Portanto temos uma estrutura física extremamente rígida na qual o romance vai se desenvolver. Se a estrutura do objeto, a fundação da obra, lembra o esqueleto de um prédio antes de ser preenchido por tijolos e massa, o conteúdo, a vida que vai se instalar nessa construção, é fluida e sem um padrão de repetição identificável.

A mistura de estilos que estrutura a forma do romance propriamente dito não tem nada de engessado. O pastiche pós-moderno com sua bandeira de efemeridade se faz presente na indicação de vídeos aos quais não se pode assistir e fotos de pinturas substituídas por espaços vazios na página, contendo apenas a descrição das telas. É como se o leitor tivesse chegado tarde demais. A temporalidade também é misturada na forma: cada capítulo é apresentado no estilo dos romances de cavalaria medievais, mas em chave irônica (a única figura de linguagem possível na pós-modernidade).

Temos em mãos uma obra que, a partir de elementos formais do objeto e da própria linguagem que estrutura o romance, questiona a forma como vivemos a contemporaneidade. Se pensarmos aqui em objeto versus romance, podemos encontrar pares opostos: rígido e fluido, concreto e fumaça, dentro e fora, público e privado etc.

Tudo isso nos leva a procurar outras obras que tenham buscado essa problemática no âmbito das artes plásticas.

Em 2007, o artista plástico Anish Kapoor instalou Ascension abaixo do Viaduto do Chá, em São Paulo, escultura, feita de uma coluna de vapor ascendente que encontrava resistência no pesado viaduto. Formalmente, o que estava em questão era o que uma coisa é e como é vista. Já as referências culturais estão repletas de misticismo: Maomé, Buda e Jesus ascenderam aos céus. A obra de Kapoor, no seio da modernidade, transcende (ou ao menos tenta).

Três anos antes, o artista Nuno Ramos fez chover dentro do prédio do Centro Cultural Banco do Brasil, também em São Paulo. Natureza e cultura, abrigo e perigo, sólido e líquido. Os pares opostos de Nuno não nos levam para além da história e da sociedade, mas nos alertam sobre a precariedade do nosso edifício civilizatório. Essa intuição aguda se mostraria acertada quando a barragem de rejeitos da mineradora Samarco se rompeu e a lama arrastou cidades e toda a vida aquática de boa parte do rio Doce.

Para entendermos o que está em jogo na forma de pares opostos do romance A vista particular, temos que antes saber do que trata o livro.

Acompanhamos a produção do artista plástico carioca José de Arariboia, que ganha grande repercussão após encenar uma performance patética da favela Pavão-Pavãozinho à praia de Copacabana. Arariboia irá travar contato com o chefe do tráfico Biribó para construiruma instalação artística, tendo como suporte a própria vida na favela, e que vai viajar o mundo.

Estão presentes no romance, entre outros, os Jogos Olímpicos, as UPPs, Inhotim, o Jornal Nacional, o crítico Rodrigo Naves e o jornalista Merval Pereira. Aqui vale a pena uma pausa para um comentário sobre o uso de nomes de personalidades públicas como ferramenta narrativa presente na obra do autor. A partir do romance Divórcio, essa questão dominou o interesse de boa parte da crítica. Os nomes seriam “um instrumento para causar polêmica” e “interferir em questões que giram fora da esfera da literatura”. Nada mais equivocado. Ricardo Lísias é um viciado em literatura. Tudo começa e termina com ela. A frase de Kafka poderia muito bem definir sumariamente todo o seu projeto literário: “tudo o que não é literatura me aborrece”. Os nomes próprios que aparecem no texto e coincidem com o de figuras públicas nunca atingem o primeiro plano da narrativa ou chegam a se converter em personagens da ação. Estão ali como um atalho na elaboração do livro ao se instalarem na trama sem a necessidade de serem construídos pelo romance. Dão corpo à narrativa e cravam a ficção no presente de um modo que seria impossível de ser feito de forma tão rápida sem o uso desse recurso.

Mas voltemos ao livro. O ritmo dos acontecimentos é desconcertante. A vida de Arariboia e a de Biribó são arrastadas pelo rompimento da barragem do privado e tornadas públicas conforme a instalação “Comunidade Brava: Turismo Brasil” ganha relevância e vai sendo deslocada pelo Brasil e pela Europa, por meio dos circuitos de maior prestígio das artes plásticas.

A sociedade que nos é apresentada a partir da forma narrativa e da trama é a do espetáculo, como conceituada por Guy Debord. Segundo o pensador francês, estaríamos vivendo numa sociedade que trocou a experiência pela imagem. Tudo ao nosso redor seria constituído por representações. Tanto quanto Benjamin, Debord foi à teoria da reificação em Lucáks para seguir um dos pontos mais agudos em Marx: um mundo enfeitiçado por mercadorias mata a possibilidade de se vivenciar experiências autênticas. Debord não viveu para ver sua tese plenamente confirmada, e também atualizada. Em A sociedade do espetáculo, publicado há 50 anos, Debord afirma corretamente que a produção dessas imagens, que separam o vivido do representado, parte sempre de cima para baixo, de forma centralizada. Segundo outro grande pensador francês, Michel de Certeau, restava ao homem, para se defender, inventar o cotidiano. O século 21 confirmou o mundo de imagens de Debord, mas agora elas são produzidas por nós mesmos, cada um e todos. Da publicidade com investimentos milionários passamos para as fotos amadoras tiradas por nossos amigos de Facebook. Não se trata mais do jantar glamoroso na Ilha de Caras, mas sim do jantar sem glamour do nosso colega de trabalho. Houve todo um rebaixamento no processo, e se antes podíamos resistir ao mundo das imagens inventando rotas alternativas, nesta fase da sociedade do espetáculo, tudo que procuramos criar se converte também em imagem. E nos aprisiona.

Sugiro que esse debate seja o tema central de A vista particular. O tráfico de drogas, a corrupção, o crime e a banalidade da vida cotidiana são alçados como imagens sem densidade histórica ou responsabilidade social. O mercado, que engole tudo, transforma a barbárie em arte e depois em lucro. Pouco importando os corpos deixados pelo caminho. Ou, melhor, produzindo o milagre de fazer com que corpos ascendam ao paraíso, neste caso, financeiro (seria esse o limite imposto pelo Viaduto do Chá à coluna de fumaça de Kapoor?).

Mas não é só isso. Na abertura do capítulo 5 há uma frase que bagunça toda a continuidade do romance, e até mesmo o que havíamos lido até ali: “Serei injustamente criticado pelo narrador, que irá mudar minha função, mas apenas no capítulo seguinte”. Nada acontece no capítulo seguinte. Mas a presença de algo onisciente, que observa a trama e seu narrador, funciona como um elemento perturbador, porém invisível. Essa coisa, esse ser não dá mais as caras. Ele transcende a narrativa, o livro e, ao menos durante a leitura, nossa vida. É óbvio que em última análise ali está o autor dizendo que quem manda naquele mundo é ele. Assim como Antonioni desviava a câmera dos protagonistas para filmar um besouro andando na parede, Lísias insiste em nos alertar que o livro é uma ficção, o romance não deve servir de mais uma imagem a nos enfeitiçar.

Na trama da narrativa nada escapa à sociedade do espetáculo fabulada pelo autor. Nem mesmo o narrador que acaba engolido pelas rodas festivas do circuito das artes. Mas, afinal, se o mundo está desencantado e a transcendência do corpo nos leva no máximo ao mundo virtual do dinheiro transformado em imagens de extratos bancários em telas de computadores, o que nos impede de abocanhar uma parte dessa festa? Esse é um problema da consciência de cada um. Lísias não é um moralista, é um ficcionista. Se existe uma saída, ela está sugerida no aspecto sólido do livro. Há algo (o quê?) que não é arrastado pelo mar de imagens da contemporaneidade.

Terminada a leitura, seguramos o livro fechado e notamos que a capa nos coloca mais uma vez em questão aguda com o tema do livro. Uma foto de favela é transformada em desenho multicolorido. Proponho aqui duas referências: o projeto do arquiteto Ruy Ohtake, em parceria com a marca de tintas Suvinil, de colorir a favela de Heliópolis em São Paulo. Segundo Ohtake, “os projetos do Hotel Unique, do Instituto Tomie Ohtake e do Parque Linear do Tietê, em São Paulo, podem ser considerados marcos arquitetônicos, mas não têm a mesma potência social que o trabalho realizado em Heliópolis”. Arariboia e Ohtake aqui se encontram. O colorido infantil da capa também nos remete ao universo de Romero Britto e sua alegria que contagia os endinheirados tanto quanto as altas da Bolsa.

A mensagem final é amarga: num mundo de imagens, enfeitiçado por mercadorias, você não precisa transformar as estruturas (rígidas) da realidade que o cerca, basta pintá-las para que se tornem agradáveis à vista particular de cada um.  

 

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