Resistir às sereias
Herbert James Draper: 'Ulisses e as sereias', pintura de 1909 sobre o trecho estudado por Adorno (Reprodução)
Talvez não haja no livro emblemático de Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, nenhuma passagem mais famosa do que sua releitura da Odisseia, em particular a retomada do episódio das Sereias. Reler, mais uma vez, essa releitura comporta, sem dúvida, o risco da repetição, mas também testemunha a força da narrativa homérica e, igualmente, a força da interpretação de Adorno e Horkheimer – e, quem sabe, o poder das próprias Sereias, esses monstros imemoriais, aquáticos e femininos, que continuam a nos encantar até hoje, até Kafka ou Blanchot.
Se voltarmos muito rapidamente ao Canto XII da Odisséia, no qual o próprio Ulisses toma a palavra como narrador e conta suas aventuras ao rei Alcino e à sua corte, duas características chamam a atenção. Primeiramente, o episódio das Sereias segue o da “Nekya”, isto é, da descida de Ulisses ao Reino dos Mortos, ao Hades, uma viagem iniciática à fronteira dos tempos e da vida. Dessa viagem, o herói volta mais rico em saber: saber do passado, pois ele se encontrou com sua mãe, já falecida, e com vários companheiros de armas mortos; e saber do futuro, que lhe re vela o grande adivinho Tirésias. De volta do Hades, Ulisses retorna à mansão de Circe, a poderosa feiticeira à qual soube resistir e que, agora, lhe ajuda. Ele ali descansa e pede os conselhos da deusa. Essa seqüência da narrativa ressalta a periculo sidade das Sereias. Parece, pois, que não basta Ulisses ter triunfado da provação maior: ter ousado ir até o limiar do Reino dos Mortos. Aguerrido, ele de
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