“Todas as mãos se juntam e cosem”: a reinvenção humana na poesia de Prisca Agustoni

“Todas as mãos se juntam e cosem”: a reinvenção humana na poesia de Prisca Agustoni
A poeta, tradutora, professora e pesquisadora Prisca Agustoni (Foto: Fernando Priamo)

 

O mundo mutilado (Editora Quelônio 2020, imagens Anna Allenbach) engrandece a trajetória da poeta, tradutora, professora e pesquisadora Prisca Agustoni. A cuidadosa edição desde a tipografia à capa e ao projeto gráfico, estes últimos a cargo de Sílvia Nastari, está dividida em seis partes. Na abertura de cada uma delas, a convocação de uma outra voz, como epígrafe, antecipa o tom dos poemas e em diálogo com a voz poética agustoniana, recolhe do tempo e no espaço das páginas a dor, o desespero e os escolhos de onde se erguem os versos com força. Sentados ao redor do mundo mutilado, cinco poetas/pensadores de diferentes nacionalidades acompanham Prisca Agustoni e suas personagens destituídas de si, muito embora tenham rostos, gostos, nomes, línguas, medos, ternura, pátria e história; muito embora cada um tenha “[…] olho que pulsa/no desejo do outro”, “[…] carne que late/na ardência do corte” e sinta a fome incendiária “do feijão que sobra/no verbo de chumbo”.

Vejamos: (i) A fera (Sempre dentro de mim meu inimigo, Carlos Drummond de Andrade); (ii) Gente que parte (Viste os refugiados que caminham para lugar nenhum, ouviste os carrascos que cantavam com alegria. Tenta louvar o mundo mutilado. Adam Zagajewski); (iii) Antilíngua (Às vezes canta-me o lobo no sangue/então eu me aqueço/numa língua estrangeira. Mariella Mehr); (iv) Memória do Inferno (Ne pas désésperer des lucioles, Aimé Césaire); (v) Rosa dos Ventos (We wanted to see the sun come up/And are met instead/by his iceribbed ship, Sylvia Plath). Na última parte, Novo ensaio sobre a chegada, aprende-se que o “amor é uma nova forma de naufrágio” que também ingressa no país do estrangeiro, talvez uma flor com guelras que floresça do fundo da travessia, da alma, do mar, uma flor que demora:

 

Para essa terra de abandono
……………migramos,
carregando o que sobra
do despojo:

nosso rosto virado
rumo ao sol
rebojo de poeira e vento
na seca

e uma flor, pelo menos,
pelo menos uma flor
aberta
apesar da fome

– aquela que nos sobrevive
e demora

(Em Gente que parte, p.32)

 

O posfácio, quase como um poema em avesso, apresenta a gênese do livro. Nele, Prisca diz de si e de sua trajetória, situando O mundo mutilado dentro de um contexto que também se mescla à sua história; para além dela, o par ética/estética perde o liame que em geral separa os termos: em O mundo mutilado estética é também ética, como não pode nunca deixar de ser para aqueles que ao se manterem fiéis ao compromisso artístico reafirmam a luta pela dignidade humana, e por isso a reinventam. Diz Prisca Agustoni: “[…] é evidente que a Europa, com sua ambígua e predadora política externa, fundada sobre a espoliação e o colonialismo […] tem fortes responsabilidades nos processos históricos que levaram ao atual estado de emergência humanitária internacional. Esse livro nasceu como resposta à consternação diante dos repetidos, numerosos e gigantescos gritos de alarme em face dessa calamidade […]”.

Para uma poeta e tradutora essa dignidade é desvelada na/pela língua, e chega ao leitor em português, idioma que para ela é uma das margens, o idioma do “afeto amadurecido”:

 

as línguas rangem
no limiar dos dias
como a rótula
que esbarra
entre o fêmur e a tíbia
e nesse girar
feito porca
perfeita em seu encaixe
permite a dobra

(Em Antilíngua, p.51).

 

Inserindo-se na mais refinada linha dos poetas-críticos, a autora atinge, em O mundo mutilado, uma expressão humana de grande potência, sem temer o horror, o abjeto, a gangrena e simultaneamente atinge delicadeza inenarrável, posto que só captada nos interstícios do tempo e das imagens poema a poema, oferecendo ao mundo mutilado e ao leitor a pulsação das entranhas, a indignação, a solidariedade, a poesia. O que está em jogo não é apenas a denúncia da injustiça, de um planeta em frangalhos, em que refugiados, expatriados, crianças e sonhos são soterrados ou se afogam, mas sobretudo a incompreensão entre as pessoas, a impossibilidade das línguas, da “língua-êmbolo” em barco à deriva, o que está em jogo é a babelização dos olhares e dos abraços que poderiam erguer pontes e não torres, que estenderiam rimas e não remos, não fosse a urgência da “liberdade, esse cativeiro” dilacerante,

 

mas a ardência do grito
preso no peito se espalha como mancha
de petróleo no oceano

até um dia ser esse inchaço
essa pústula infecciosa
uma força represada

e da agonia dos gagos
forjar enfim o novo dicionário
que defina a combustão
de uma língua alucinada

(Em Fera, p.13)

 

Agônico, gago e alucinado, 2021 nasce mutilado de sonhos, de corpos que antes eram parte do planeta e das vidas de quem lhes amou. 2021 nasce amputado de árvores que arderam em incêndios ou sob os pulsos ferrenhos de motosserras, de animais que sucumbiram às chamas criminosas, nasce do luto por meninos e meninas assassinados, da perseguição e dos ataques à ciência, numa Terra sabidamente redonda. Tantas são as valas e parcos os ombros para sustentar o mundo, mas as mãos juntas cosem, ensina a poesia de Prisca Agustoni numa travessia de histórias e alinhavos de amargura e esperanças. É isto: o ano é novo, traz em si o desejo de esperançar, não que a esperança seja exatamente possível, desejar é que é mesmo “nos remendos de um país/ que sangra e infecciona”. 2021 nasce para a mudança, para a vacina, para as vidas muitas que, sim, serão salvas, nasce para a da luta das mulheres ao redor do mundo e de seus pañuelos verdes, nasce contra o racismo e a homofobia.

O mundo mutilado me faz crer (ou desejar crer) que 2021 será lembrado como o ano que nasceu para a poesia, tomara que a reinvenção do humano, que o livro traz com tanta pungência, torne-se possível fora dele; é preciso muita humanidade para que a poesia não precise de respiradores diante do terror e dos assombros, os versos não devem precisar de máscaras, afinal, “da estela que brilha/no pavor da noite//também se faz um dicionário”. O que os poetas nos ensinam é que para fazer da língua união é imprescindível sabê-la arma.

Diana Junkes é poeta, crítica literária e professora da UFSCar. Escreve mensalmente a coluna “Musa militante”.


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