A hora da boiada: a reforma neoliberal para tomar o Estado
Paulo Guedes criticou profissionais da saúde, dizendo que queríam receber medalhas antes do fim da guerra (Foto: Wilson Dias/Agência Brasil)
Um dos registros mais evidentes da pandemia foi a insuficiência da mão invisível do mercado para lidar com a crise e seus efeitos. Leis da oferta e da procura se mostraram incapazes de regular os mecanismos com os quais a sociedade poderia combater o novo coronavírus e as consequências econômicas deste combate. Nada de liberdade contra a regulação ou limites rígidos para o dinheiro público: por todo o canto, ninguém se viu imune à intervenção estatal.
Não faltaram exemplos em que o insucesso do neoliberalismo trouxe de volta a pesada, ineficiente, mas sempre providencial mão do Estado. As manchetes alardearam ao redor do mundo: “Espanha intervém em hospitais para evitar colapso”; “Trump invoca uma lei da Guerra da Coreia para obrigar a General Motors a fabricar respiradores”; “Governo italiano assumirá a Alitalia na tentativa de salvar a empresa” – tudo isso sem contar uma avalanche de auxílios e subsídios típicos do keyneasianismo que tanto se apregoou superado.
Mas nada foi suficiente para que se refreasse a fúria neoliberal entre nós.
Desde o primeiro momento, é bom que se diga, a pandemia por aqui foi sinal de oportunidade. De início, para esconder o crescimento pífio da economia e a persistência do desemprego. Como se já não estivéssemos abatidos antes mesmo do Covid-19. Depois, para abrir as portas para negócios de ocasião, enquanto a mídia se preocupava em contar mortos e feridos. Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril, além de Ricardo Salles que sugeria “passar a boiada” nas normas ambientais, Paulo Guedes insistia freneticamente para que não se perdesse a oportunidade de vender “a porra do Banco do Brasil”.
Por fim, a oportunidade chega como pretexto: “só as reformas permitem a continuidade do auxílio emergencial”.
A portas fechadas, Guedes já se vangloriou de ter colocado a “granada no bolso do inimigo”, em relação ao congelamento de reajustes dos servidores públicos. Ao vivo e a cores, criticou profissionais da saúde que, segundo dizia, queriam receber medalhas antes do fim da guerra.
Mas a questão é muito maior do que apenas reduzir gastos. Quebrar a espinha dorsal da burocracia de Estado é o seu projeto mais ambicioso.
A mídia ajuda a torná-lo popular, difundindo sem parar a ideia de ineficiência e lentidão dissociada de suas condições materiais – como se o serviço fosse precário por obra e graça das vítimas desta precariedade.
O maior problema da máquina pública, todavia, não é a escassez de produção: é o excesso de demanda. Como, aliás, constataram todas as empresas que assumiram serviços de massa com as privatizações (telefonia, energia, telecomunicações): tidas como eficientes, tops no mercado, são recordistas em queixas nos serviços de proteção ao consumidor e praticamente inacessíveis para reclamações ou requerimentos em seus contatos. De outro lado, o SUS, um belíssimo exemplo de capacitação, destruído pela necessidade de atender, em déficit de equipamentos e pessoal, um volume alucinante de pacientes, simplesmente o maior sistema de saúde pública no mundo.
O que está em jogo na reforma administrativa não é o aumento de eficiência ou a modernização – de que dependem, sobretudo, investimentos maciços de maquinaria e capacitação. O que se pretende com a reforma administrativa é a colonização da burocracia pelos primados (e interesses) da iniciativa privada.
O primeiro ponto é a quebra paulatina da estabilidade. Ao longo do tempo, ela tende a desaparecer.
O governo pretende, em breve resumo, dotar a máquina pública de um volume cada vez maior de servidores comissionados, indicados e demissíveis. A reforma não cria qualquer limite em relação a estes cargos, que denomina “de liderança e assessoramento”; apenas que se direcionarão a atribuições “estratégicas, gerenciais e técnicas” – ou seja, praticamente tudo o que não estiver terceirizado.
Com isso, fazem convergir os interesses empresariais, de trazer ao Estado os profissionais do mercado, sem que tenham que abandonar suas lucrativas carreiras; e interesses fisiológicos, dotando um ministério de um número maior de cargos disponíveis para escambos políticos.
É absolutamente paradoxal relacionar a quebra da estabilidade com a ideia de meritocracia: quanto mais o ingresso e permanência do servidor no cargo depender dos humores e interesses dos chefes, menor será a qualidade técnica que pode se esperar do serviço.
Seja com a expansão dos cargos comissionados, seja com a quebra da estabilidade e a promoção “meritocrática”, o que se esvazia é a ideia de permanência – que mantém, em grande medida, a máquina pública funcionando sem sobressaltos. Mas a implosão dos mecanismos de promoção, ou seja, o impedimento para que o servidor seja melhor remunerado com o passar dos anos, vai produzir, no mínimo, o desinteresse, quando não a evasão.
A lógica de lucro, que permeia a submissão do trabalhador na iniciativa privada, é uma expansão dos atributos da propriedade: quem é dono manda. Mas na ética do Estado, o assunto é diverso. O que deve prevalecer é o interesse público, não propriamente o interesse do chefe imediato ou do governante no topo do poder. Não faltam, aliás, exemplos conhecidos destas profundas divergências.
Colonizar a burocracia tem como sentido essencial fazer com que ela não seja um obstáculo ao privado: reduzir controles, regras e fiscalizações. No fundo, é não permitir que as regulações públicas perturbem a lógica dos interesses particulares. Ou seja, criticar o serviço do Estado por suas virtudes, não por seus vícios.
Tal como o desmonte na legislação trabalhista, que expunge a lei das relações para permitir a livre negociação entre quem manda e quem obedece, a depreciação do funcionário público coroa o ciclo da tomada do Estado. Esta é a expressão mais profunda da racionalidade neoliberal, mais ainda do que reduzi-lo. Fazer do Estado uma empresa e, dos cidadãos, empreendedores.
A pandemia é um desastre inominável. Mas há quem esteja trabalhando incessantemente para torná-lo ainda mais profundo.
MARCELO SEMER é juiz de direito e escritor. Doutor em criminologia pela USP, é membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia