Razão mercantil e mediocridade na educação

Razão mercantil e mediocridade na educação
(Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

 

Por muitos anos não soube compreender minha primeira reação ao clipe da canção “Another brick in the wall” (Mais um tijolo no muro), um dos tantos clássicos do Pink Floyd.

O ano era 1993. Eu cursava Processamento de Dados na Escola Técnica Estadual de São Paulo (ETESP), tinha 15 anos e era um adolescente normal: sofria com espinhas, odiava meu aparelho dentário, gostava de música, jogava futebol e programava no meu PC com monitor de fósforo verde, comprado após muitos bicos, daqueles que hoje se chamam “frilas”.

Nascido em Pirituba e crescido no Jaraguá, a escola foi minha redenção. Cruzava São Paulo e passava o dia todo na ETESP da Praça Coronel Fernando Prestes, no campus da Fatec, em uma das saídas do Metrô Tiradentes. Na época, o curso técnico era vinculado ao regular, composto por matérias profissionalizantes e disciplinas regulares. Contudo, havia cursos adicionais como lógica, história da arte, literatura, contabilidade, gestão de empresas, além de debates sistemáticos sobre filosofia, sociologia e política.

A partir dessa experiência, o estranhamento se justificava… O clipe do Pink Floyd, com aquele professor autoritário e a esteira rolante em que os alunos passavam por uma máquina e saíam sem rosto, sentados em uma carteira escolar, não tinha respaldo em minha experiência educacional, embora eu soubesse que vivia uma exceção. A ETESP, mesmo distante de ser perfeita, era uma experiência libertadora. Tal como a Bahia para Gilberto Gil na música “Aquele abraço”, foi a ETESP que me deu régua e compasso em termos educacionais. Apesar da distorção causada pela seleção do alunado por meio de um concorrido vestibulinho (na época, com 27 alunos por vaga), a qualidade daquela escola também estava alicerçada em um consistente projeto político-pedagógico.

A busca de atalhos

A narrativa está desgastada, mas continua válida: o Brasil permanece um país capaz de expandir matrículas, mas incapaz de democratizar o acesso a escolas públicas de qualidade como a ETESP, às “escolas de aplicação” das universidades públicas ou às escolas federais.

Consagrar o direito à educação é tarefa complexa. Grande parte das escolas públicas brasileiras possui graves carências de infraestrutura, alimentação e transporte escolar. Os cursos superiores de licenciaturas são fracos e não recuperam as deficiências de formação oriundas da educação básica; os salários dos profissionais da educação são baixos; as redes públicas perdem diariamente bons professores; alunos abandonam as escolas; há deficiências sérias na gestão das políticas educacionais, inclusive causadas pelo subfinanciamento.

Diante do gigantismo do desafio educacional brasileiro e da falta de coragem para encará-lo, muitos agentes políticos e gestores públicos partem para buscar atalhos ou soluções rápidas, em geral no intuito de resolver o “problema da educação” com o menor esforço, como se isso fosse possível. Enredados em um conjunto enorme de interesses, terceirizam a organização e a concepção pedagógica de redes públicas inteiras, contratando “consultores” ou “especialistas” em educação que muitas vezes nunca pisaram em uma escola pública. Quando buscam soluções institucionais, são seduzidos pelo canto das sereias de fundações e movimentos empresariais, muitas vezes dedicados a transpor à educação a lógica do mundo dos negócios. Mas, verdade seja dita, o problema não é apenas brasileiro.

O caso estadunidense

Em Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação (Editora Sulina, 2011), a historiadora da educação Diane Ravitch (1938-) advoga a necessidade de um currículo enraizado na cultura, nas artes e nas ciências, que leve os estudantes à busca pelo conhecimento. O objetivo é preparar para a cidadania plena. Um cidadão precisa refletir e ter capacidade de tomar decisões sobre sua própria vida. A escola deve colaborar com sua preparação para isso.

Ravitch é uma autora reconhecida na área da educação. Sua principal contribuição está em criticar as reformas ocorridas nos Estados Unidos e que impuseram a lógica do mercado às escolas e sistemas escolares. Sua autoridade vem de sua própria experiência. Tendo colaborado com a implementação das reformas empresariais nos EUA, a autora percebeu, porém, o quanto elas foram danosas ao direito à educação. No seu dizer, o sucesso das escolas depende de múltiplos fatores, principalmente da definição de um currículo sólido, professores bem preparados, infraestrutura adequada, estudantes dispostos, pais participativos e a interação entre a política educacional e outras políticas sociais, como saúde e assistência social.

Consonante com Diane Ravitch, Vitor Henrique Paro, em Educação como exercício de poder (Cortez, 2010), verdadeiro libelo contra o tradicionalismo pedagógico, define a educação como “apropriação da cultura” baseada em uma ampla revisão bibliográfica de autores clássicos. A cultura, compreendida de forma ampla, envolve conhecimentos, informações, valores, ciência, arte, tecnologia, direito, costumes, tradições, tudo enfim que o humano produz e que dá sentido a sua vida. No senso comum ou no tradicionalismo pedagógico, a educação é tratada como simples transmissão de conhecimento e informações de “quem sabe” para “quem não sabe”. O papel do professor é automatizado, descontextualizado; e isso se radicaliza com a implantação dos testes de larga escala, os mais perniciosos veículos para a transposição da razão mercantil na política educacional.

Os testes de larga escala

Quando surgiram entre as décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos, os testes de larga escala tinham uma demanda clara: aumentar o controle social sobre as políticas de educação. A sociedade estadunidense queria saber o que acontecia em suas escolas públicas e nas salas de aula. Nada mais justo. Porém, esses testes automatizaram, aos poucos, o processo de ensino e aprendizagem.

Hoje, embora avaliem o desempenho do alunado em ciências da natureza e ciências humanas, além de leitura e matemática, os sistemas avaliativos (como a Prova Brasil, em nosso país, ou Programa para Avaliação Internacional de Estudantes, ao redor do mundo) foram sobrevalorizados. Mal utilizados, eles desconstituíram o processo de ensino e aprendizagem.

A partir dessa mentalidade avaliativa, grandes linhas de negócio surgiram, com o objetivo de treinar professores para melhorar os resultados de seus alunos nos testes de larga escala. Isso passou a ser sinônimo de sucesso na gestão pública educacional. Os currículos foram reduzidos e as políticas educativas passaram a ser sinônimo de avaliação, em um estranho modelo no qual a última parte do processo de gestão, a avaliação, passou a agir como medida de todo o seu desenrolar. Não foi à toa que Michael Lewis, ensaísta pop da economia estadunidense, argumentou em seu livro O jogo da mentira (Editora Best Business, 1989) que as regulações da bolsa de valores americana deram as bases para a própria especulação desde a década de 1980, determinando regras do jogo adequadas ao ganho fácil e irresponsável. Na educação, os testes de larga escala permitiram o mesmo: novos negócios puderam ser desenvolvidos, desvinculados do objetivo primordial da educação, o de formar cidadãos plenos.

Diane Ravitch tem razão, no entanto, quando diz ser um equívoco pretender acabar com a existência das avaliações padronizadas. Mas, como ela mesma defende, os testes devem ser contextualizados e sua importância precisa ser redimensionada. Além disso, é necessário assumir que eles não “medem” qualidade, mas apenas algumas dimensões do aprendizado. A qualidade da educação está relacionada diretamente à apropriação da cultura e à formação cidadã. Como efeito colateral danoso, o péssimo uso dos testes de larga escala fez correr água no moinho da pior tradição pedagógica em termos de concepção de ensino.

Alunos não são copos, professores não são jarras

Alicerçados pelo tradicionalismo pedagógico e fortalecidos pela panaceia dos testes, muitos “especialistas em educação”, “consultores independentes” ou fundações e movimentos empresariais – nem todos são iguais, vale lembrar – veem as alunas e os alunos como copos.

Alguns deles vão dizer que, no mínimo, é justo colocar em cada recipiente (aluna ou aluno) o fundamental. Propõem que todos os copos devam ser completados até a metade com água, pois se trata do líquido essencial. Como se sabe, é desejável que a água seja límpida e inodora, podendo ser avaliada em testes padronizados de larga escala em seu grau de qualidade. Esse fundamental seria, na educação, sinônimo da habilidade testável em leitura e matemática. Outros vão além. Dirão que é justo encher completamente o copo de água. Por que apenas o mínimo? Afinal de contas, copos cheios também podem ser testados em seu grau de pureza.

Nesse momento, alguns discordarão em parte. Argumentarão que, além da metade de água, é preciso incluir outras habilidades. Talvez uma determinada quantidade de suco, talvez do néctar de uma fruta local, pois o mundo é diverso e o Brasil é muito grande. Mas reforçam: a água é essencial; contudo é bom dar um pouquinho mais. Ademais, ampliados os parâmetros, a mistura também pode ser avaliada. Surgem, então, novas polêmicas. Alguns acusarão que determinadas escolas e determinados governos querem encher os copos com suco de clorofila, outros com refrigerante, denotando ideologização do ensino. Alguns religiosos defenderão a essencialidade de um pouco de água benta ou ungida. E por aí vai.

O problema é que essa perspectiva está completamente equivocada. Os alunos e as alunas não são copos; professores não são jarras; sistemas públicos de ensino não devem ser centrais de distribuição de líquidos. O objetivo da educação não é verificar o quanto e como foi ou não enchido um recipiente. A missão da educação não é a avaliação da aprendizagem, mas, sim, a própria aprendizagem na perspectiva da formação integral do cidadão.

É cientificamente sabido que todo ser humano tem infinita capacidade de aprender; copos e jarras, por sua vez, transbordam. Docentes e estudantes não são recipientes inertes. Cultura e conhecimento não são matéria que se transfere: não se tira de um para dar a outro. Alunos e professores vivenciam processos pedagógicos diversos. Um bom professor é aquele que é capaz de apresentar e construir caminhos para a aprendizagem dos alunos e das alunas, de preferência quando pode considerar cada estudante em sua especificidade. Ambos são sujeitos no processo pedagógico.

O impacto da lógica mercantil na educação

O uso equivocado dos testes padronizados e o tradicionalismo pedagógico estão matando o vigoroso sistema de ensino dos Estados Unidos, mas também colaboram para a mediocrização da incipiente educação brasileira.

Como é oneroso ao fundo público enfrentar os problemas reais do sistema de ensino do país, os mercadores de soluções ditas eficientes possuem acesso facilitado aos tomadores de decisão nas políticas públicas. Com um discurso falacioso calcado na meritocracia, vendem suas soluções de sistemas apostilados, organização pedagógica, cursos de formação de professores etc. A depender do caso, quando contrata um serviço de uma instituição de base empresarial dedicada à educação, o gestor público ainda ganha assessoria de imprensa, com a garantia de matérias elogiosas na grande mídia.

A questão em jogo não é educativa. O objetivo dessa perspectiva é a eficiência, pela qual supostamente se faz mais com menos. Não se entra no debate do processo pedagógico, do papel do professor, da formação integral dos alunos. Tudo é avaliado pela prova padronizada, aplicada em todo o território nacional. É a ditadura do resultado, embora ele permaneça ruim e distante do que preconiza a Constituição Federal em seu artigo 205: a missão da educação é o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Os estudantes brasileiros pouco aprendem. Os professores, que possuem formação frágil e planos de carreira pífios, enfrentam condições de trabalho as mais adversas e acabam sendo responsabilizados pelo fracasso pedagógico. Tratados como vítimas ou como heróis – quando tiram leite de pedra –, nunca são reconhecidos como profissionais.

A realidade é que a cada dia o sistema de ensino brasileiro mais se aproxima da linha de montagem que desfigura e padroniza os alunos no clipe de “Another brick in the wall”, do Pink Floyd. Mesmo as boas escolas públicas começam a ceder à mediocridade imposta pela lógica mercantil. É um caminho mais fácil, muita gente ganha dinheiro e estamos cada vez mais distantes de consagrar o direito à educação.


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