A raposa e as máscaras
Foto Heloísa Bortz
Uma raposa foi à oficina de um escultor e começou a fuçar nos objetos que lá estavam.
Ao deparar com uma máscara de ator de tragédia, ergueu-a e disse:
“Oh! Que cabeça! Mas não tem cérebro!”.
Esopo, Fábulas. Tradução por Maria Celeste C. Dezotti
A encenação de Volpone, do dramaturgo londrino Ben Jonson (1572 ?-1637), dirigida por Neyde Veneziano, ora em cartaz no Teatro do MuBE, constitui uma ótima oportunidade para que as plateias contemporâneas possam entrar em contato com a obra deste comediógrafo satírico da Renascença inglesa (autor também de poemas e tragédias) a quem os livros de história do teatro costumam imputar a pecha de “amigo e rival de Shakespeare” e cuja militância na comédia é marcada pelo gosto popular.
Escrita em 1606 e forjada sob o espírito do ambiente italiano então em voga no teatro europeu, a peça (originalmente, composta em versos e dividida em cinco atos) constitui uma mascarada – forma bastante apreciada na corte inglesa na virada do século 16 para o século 17 – em torno de uma série de vícios originários da ganância humana que o regime econômico adotado no Renascimento só fazia estimular. As máscaras aqui assumidas são as de animais identificados com a esperteza, a cobiça e a rapacidade. Volpone, isto é, a grande raposa, é o nobre arruinado que planeja um golpe para readquirir sua fortuna à custa da cupidez de seus rivais: Corvino (o pequeno corvo), Corbaccio (o velho corvo) e Voltore (o abutre). Fingindo-se de moribundo – para ganhar destes trapaceiros presentes muito caros em troca da possibilidade de eles virem a ser seus herdeiros universais –, a astuta raposa conta em seu auxílio com a inestimável engenhosidade de seu criado pessoal, ágil para tramar toda a sorte de pequenos embustes e ávido, por sua vez, para, apropriar-se, parasitariamente, de toda a fortuna do patrão – a quem, assim, não poderia ser dado outro nome senão o de Mosca.
Há no texto três camadas justapostas de um tipo de comicidade muito antiga que convida os espectadores ao exercício de uma recepção humorística bastante diferente daquela hoje consagrada pela indústria cultural, embora possamos reconhecer em alguns filmes, programas de TV e mesmo peças de teatro traços muito diluídos, difusos, do humor genuíno que serviu para a construção da peça de Jonson. A primeira base sobre a qual Volpone está assentada é a da dramaturgia cômica latina, aproveitando-se do motivo a la comédia dos erros de Plauto e o do misto de graça e refinamento de Terêncio. Mas há também na peça o tom judicioso da moralidade das fábulas ancestrais protagonizadas por animais falantes, cujo primeiro registro no Ocidente é o do encontro entre a águia e o rouxinol, narrado por Hesíodo, no século 7 a.C., em O trabalho e os dias. Some-se a esses dois registros o halo de uma comicidade propriamente renascentista, que vai buscar nos tipos italianos uma alegria irrefreável para exprimir juízos tão pessimistas acerca da natureza humana.
Há que se destacar o trabalho de adaptação do texto original de Ben Jonson empreendido pela diretora do espetáculo em parceria com Ronaldo Diaféria, que resultou na articulação de falas e de ações comprometidas em explorar de modo coeso e sintético “a dança frenética de desmoralizados em torno dos ídolos Ouro e Volúpia”, conforme a caracterização da obra proposta por Otto Maria Carpeaux. Além do ritmo ágil que a direção imprime à montagem, como seria mesmo de se esperar, Neyde Veneziano também explora com bastante habilidade o hibridismo aludido acima dos registros humorísticos do texto, convidando a plateia ora ao riso espontâneo e direto, nascido da fisicalidade das ações; ora ao sorriso comedido, que capta determinada engenhosidade do espírito e se apraz com ela; ora ainda à gargalhada mais franca, advinda do manejo de situações ridículas e grotescas.
No tocante ao trabalho dos intérpretes, há que se ressaltar a grande qualidade extraída da média das atuações. Cada ator, a seu modo, entra em cena disposto a jogar sem reservas o jogo da farsa e da burla, porque a encenação, maliciosamente, não se leva mesmo muito a sério. Chico Carvalho e Gabriel Miziara compõem uma dupla muito bem entrosada, explorando inúmeras nuances de gestualidade e de dicção tão só comprometidas com a ludicidade reinante. O primeiro, vale notar, vive um momento especial no teatro paulistano, colecionando já há um bom tempo uma série de atuações consecutivas memoráveis, cuja natureza performativa merece investigação mais detalhada. A Urraca de Eliana Rocha se vale do expediente do “menos é mais”, tal é a economia de recursos com que a atriz compõe um tipo impagável. A outra figura feminina em cena, Fabíola Moraes, defende com muita competência suas duas personagens, seja Célia, a romântica esposa de Corvino, seja a ladina empregada Serpina. Fabio Esposito (Corvino) e Dirceu de Carvalho (Bonário e Voltores) criam tipos cômicos muito engraçados, aproximando-se da caricatura para explorar seus desafios e não suas facilidades. Já Claudinei Brandão se vale mais da imposição de sua figura em cena, de cuja aura grotesca extrai os efeitos de humor. Gurya Portela se desincumbe bem do soldado e do juiz, embora ambos os personagens não lhe ofereçam momentos tão divertidos quanto os dos demais personagens.
O cenário concebido por Cássio Brasil é um verdadeiro achado, integrando muito bem a concepção camerística da encenação. Cássio ainda é o responsável pelos figurinos, que aliam funcionalidade e invenção. Características que se podem aplicar também à iluminação de Fran Barros e à direção musical de Ricardo Severo, que convida o músico Fábio Martinelli a estar presente em cena executando a trilha do espetáculo.
Fruto do desencanto do autor – que a escreveu na prisão, segundo consta – com a sociedade de seu tempo, Volpone pode ser lida como uma comédia sinistra, que pontua o egoísmo, a corrupção e a vaidade dos homens. Mas também pode ser entendida como uma farsa algo irresponsável, que alterna momentos hilariantes e outros suaves. Essa parece ter sido a opção do espetáculo em questão. O poeta norte-americano T.S. Eliot considerava o teatro de Ben Jonson como uma sala fria de museu. Neyde Veneziano e os nove talentosos artistas que ela reuniu em cena tratam aqui de aquecer tal ambiente, explorando os contornos de uma comicidade que, embora não abra mão da sagaz inteligência, serve mais aos propósitos do genuíno entretenimento.
VOLPONE
Onde Teatro MuBE Nova Cultural – Rua Alemanha, 221 – São Paulo
Quando até 13 de março – sextas e sábados, às 21h; domingos, às 20h30
Quanto R$ 50 e R$ 25 (sextas), R$ 60 e R$ 30 (sábados e domingos)
Info (11) 4301-7521