Quanto vale o show?
Público em show dos Racionais MC's, que completa 30 anos de carreira em 2019 (Foto: Jeferson Delgado)
Tenho a impressão de que, para alguém que tem uma vida laica como eu, o ambiente de um show é a coisa mais próxima de uma experiência religiosa – uma experiência de culto. Mais precisamente, a “porra duma experiência quase religiosa” (a que se refere David Foster Wallace num texto não menos apaixonado, “Federer como experiência religiosa”, sobre os dons sobrenaturais do tenista suíço).
Ali, no meio de milhares de pessoas aos pés do(s) ídolo(s), cantando com ele(s) palavra por palavra, imerso numa atmosfera absolutamente tomada por músicas que já ouvimos milhares de vezes e, assim, formaram não apenas nossa visão de mundo, mas isso que chamamos de “eu”, de “nós”, de “vida”, é absurda a sensação de que o palco se transforma em altar, o show em culto, os fãs em fiéis.
Exagero? Pode ser. Mas o fato é que já faz mais de uma semana que assisti ao show dos Racionais MC´s em São Paulo, na turnê que comemorou três décadas do grupo, e a espécie de êxtase vivido ali não me abandona, pelo contrário, tem aumentado à medida que leio notícias e análises sobre a turnê, vejo as fotos e os pequenos trechos filmados pelos fãs (e por mim mesmo), ouço novamente as músicas que foram tocadas lá pelo grupo acompanhado de uma banda incrível… é como se a memória perdesse a batalha ao tentar organizar aquela experiência e devolvê-la à consciência.
Já tinha acontecido em outros shows deles, mas desta vez foi algo mais forte: durante o show eu já me sentia desorientado, incapaz de organizar a avalanche de informação que vinha do palco (sons de todos os tipos, vozes que me acompanham há tantos anos, o jogo de luz e sombra, a presença física dos “quatro pretos mais perigosos do Brasil”) e de tudo que estava no meu entorno (a pista lotada, a fumaça, as pessoas cantando e dançando, os telões revelando outras perspectivas do palco).
A passagem veloz de uma música à outra – praticamente emendando faixas que sozinhas duram 8, 10 minutos – certamente contribuiu para essa desorientação, como se estivéssemos todos ali à sombra de – ou mergulhados em – uma imensa música única durante mais de 2 horas. E essa música única – um cântico, um mantra, uma ópera – não se compunha apenas daquelas faixas que foram efetivamente tocadas no show (a começar por “Pânico na Zona Sul”), mas também de tantas outras que a memória tocava enquanto o grupo despejava seu som e sua fúria sobre o público. Mesmo hoje, na calma, não lembro exatamente quais músicas ouvi ali e quais imagino ter ouvido… e eu acho que é exatamente assim que quero guardar comigo esse show.
O grupo anunciou que, em breve, vai sair um DVD com o show da primeira noite em São Paulo (eu fui na segunda noite). A imprensa e os fãs noticiaram, durante a semana, as músicas que fizeram parte da apresentação, algumas frases ditas entre as músicas, os números, os detalhes etc., mas nada parece dar conta do que aconteceu ali, porque foi um show que começou muito antes. Em parte, começou no momento em que a turnê foi anunciada e, depois, a cada notícia que saía sobre os shows lotados em várias cidades do país (de Florianópolis, em julho, a Recife, no início de outubro, passando por Brasília, Curitiba, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador). Com o ingresso na mão, parece que o show já rolava na cabeça, olhando as redes sociais do grupo e sentindo que, toda vez que tocava um som dos Racionais aqui (e não foram poucas vezes…), era como se eles já estivessem subindo nesse palco.
No entanto, quando eles apareceram na nossa frente no Credicard Hall, no meio daquela multidão com camisetas dos Racionais e de outros grupos de rap, com roupas e cabelos e tênis e estilos que remetem ao orgulho que esse grupo, como nenhum outro, ajudou a conquistar, tive certeza do momento em que aquele show verdadeiramente começou: há 30 anos, quando Pedro Paulo, Edivaldo, Paulo Eduardo e Kleber Geraldo se encontraram e começaram essa história que o jornalista Júlio Maria sintetizou muito bem num texto sobre o primeiro show de São Paulo: “Três décadas e quase oito presidentes depois, o que dizem, infelizmente, poderia ter sido escrito ontem. Feliz o povo que não precisa de um Racionais MC’s. Triste o povo que não tem um Racionais MC’s”. Era exatamente isso: nossa ferida estava li – aberta – no palco. No som dos Racionais, o dedo na ferida e o curativo. Veneno e antídoto.
Ainda dentro da casa de show, quando Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e os músicos saíram no palco, e KL Jay ficou dançando e esticando a festa em suas picapes, eu conversava com o Sandro sobre o que tinha acontecido ali, tentando traduzir a pancada, organizar as ideias, mas estávamos perturbados demais para dizer algo mais do que “foi foda” e coisas parecidas. Saímos andando dali, no meio da multidão, e era evidente que nos arredores continuava acontecendo algo que pertencia ainda ao show dos Racionais, não apenas no sentido trivial – aquelas pessoas estavam ali por causa do show –, mas porque muitos não pareciam ter pressa para ir embora, para voltar às suas casas, como se estivessem suspensos na atmosfera daquele show.
A mudança da nossa relação com o tempo, aliás, deve ser outro traço dessa experiência quase religiosa do show dos Racionais. E não é apenas durante o show que ela acontece (leiam, aliás, a apresentação do Acauam Oliveira no livro Sobrevivendo no inferno para ver como os Racionais, no disco, pensam toda a estrutura da obra como uma experiência, sim, religiosa): o tempo nunca passou da mesma maneira para os Racionais. Em 1989, já eram capazes de fazer com que este país visse seu passado e seu futuro de outro modo, e, em 2019, continuam vivíssimos na tarefa de nos fazer ver o presente com as lentes que eles, como poucos, sabem instalar.
Entre a primeira vez que subiram aos palcos em São Paulo e esta agora, a mais recente, os Racionais também ensinaram aos seus fãs outra lição sobre o tempo: nunca sabemos quando voltarão aos estúdios ou aos palcos. Resta esperar e torcer para que voltem logo, voltem sempre, mas com a certeza de que, se o fizerem, não será em vão. Nunca foi, nunca será, nem deve ser. Na minha faixa preferida do último disco, a voz do magnata apresentador de tevê pergunta renitente: “Quanto vale o show? Quanto vale o show? Quanto vale o show?” Também tenho me perguntado isso, quase tão renitente, desde a semana passada. E não é de alguns aviõezinhos de dinheiro que estou falando, mas do quanto vale, para um país em colapso, ter artistas como os Racionais MC´s em plena atividade: conscientes da missão e ainda com muita munição.
Vida longa aos vida loka!
TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP, autor de Alguns rastros (Martelo, 2018) e Íntimo desabrigo (Alpharrabio/Dobradura, 2017)