A quintessência de Ibsen aqui e agora

A quintessência de Ibsen aqui e agora

Fotos: Bob Sousa

As melhores coisas, e as mais significativas, que Ibsen nos deu são o impulso no sentido da verdade num tempo artisticamente inverdadeiro; o impulso no sentido da seriedade num tempo artisticamente superficial; o deleite da agitação num tempo de estagnação; e a coragem de agarrar o que quer que contenha em si qualquer coisa que cresça”.
Alfred Kerr. Das neue drama

A viúva Alving (Juliana Galdino) e seu filho (Mario Bortolotto), presos aos fantasmas do passado

Recebido no calor da hora com exaltado horror pelos antimodernistas europeus, o drama teatral Gengangere, mais conhecido em língua portuguesa como Espectros, de Henrik Ibsen, foi publicado pela primeira vez em dezembro de 1881 em Copenhague e teve sua estreia mundial no Aurora Turner Hall, de Chicago, em maio de 1882. Em Modernismo: o fascínio da heresia, de Baudelaire a Beckett e mais um pouco, o historiador alemão Peter Gay afirma que, quando a peça estreou quase uma década depois (em maio de 1891) em Londres, “os resenhistas multiplicaram os adjetivos incendiários, entregando-se com visível prazer a essa vociferação inflamada”, observando em seguida que, muito embora tenha a ousadia de fazer menções a comportamentos sexuais desviantes do que então se considerava normalidade, apresentando ainda um protagonista que sucumbe à sífilis, a obra “dificilmente mereceria ser tratada como uma ‘representação repulsiva’, um ‘esgoto aberto, uma chaga asquerosa exposta, um ato sujo feito em público’. E tampouco era um exemplo de ‘indecência grosseira, quase podre’, nem o autor era ‘um ser excêntrico, insano’, ‘não só sistematicamente sórdido, mas deploravelmente obtuso’”, conforme lhe imputaram os puristas de plantão.

Curioso pensar que, mais de um século após seu surgimento, Fantasmas, assim traduzido por Roberto Alvim, a quem coube também a adaptação do texto original, continua a soar, por dois motivos distintos, mas complementares, como uma provocação contra a “maioria compacta”, expressão pela qual o dramaturgo norueguês referia-se depreciativamente à mentalidade da classe burguesa de sua época, bastante afim, diga-se de passagem, ao pensamento do homem médio que também predomina nas mais variadas ocorrências da vida social nos dias de hoje. A primeira motivação do caráter de transgressão que o texto ainda preserva diz respeito aos seus temas imediatos – sexo e religião – que, guardadas todas as proporções no tocante às diferenças que há entre o puritanismo cristão do século XIX e a liberalidade de costumes secular do século XXI, continuam a suscitar escândalo. Já a segunda causa da atualidade da obra de Ibsen refere-se a sua estrutura formal, que mantém com os conteúdos veiculados uma relação de intrincada organicidade – qualidade esta que a encenação de Alvim sabe explorar muitíssimo bem.

Jacob Engstrand (Pascoal da Conceição), um tipo sinuoso na galeria de personagens ibsenianos

Otto Maria Carpeaux advertia para uma questão bastante importante: o fato de os nomes pelos quais a peça ser normalmente traduzida – Espectros, Ghosts, Gespenster… – não conseguir dar conta de um traço semântico presente no termo norueguês gengangere, algo como “aqueles que retornam do passado”, garantido com mais sucesso nas traduções francesas que optaram por Les revenants. Antes de constituir mero capricho linguístico, o problema que ronda a escolha do título assume importância capital: a estrutura da peça – como a rigor ocorre em quase toda a dramaturgia de Ibsen – está assentada sobre uma trágica oscilação de natureza temporal, que transforma “as transgressões do passado” nas “sementes da catástrofe presente”, como tão bem identificou o dramaturgo norte-americano Arthur Miller. Assim, a obra, ecoando o espírito teatral dos gregos e de Shakespeare, fala de mortos que despertam e vêm assombrar o presente, convertendo o tema espectral em pura forma estética, cuja dimensão política é inegável: se o homem não souber enfrentar seu daimon essencialmente humano, caótico e destruidor, e simplesmente negligenciá-lo ou reprimi-lo, este, mais dia menos dia, retornará do passado mais longínquo onde está enterrado e, com força redobrada, transformará o presente em obscurantismo e aniquilação. Qualquer semelhança com todos os fundamentalismos religiosos – de tipo cristão, judeu ou muçulmano – que nos cercam e com os correlatos reacionarismo político e puritanismo sexual e de costumes que eles engendram não é mera coincidência. Impossível não pensar em Les revenants a cada vez que a expressão da modernidade social, política e cultural que nos define hoje é ameaçada por forças retrógradas e conservadoras, que pareciam enterradas nas mais longínquas masmorras medievais.

O jogo de sedução entre Oswald Alving (Mario Bortolotto) e Regina Engstrand (Luisa Micheletti)

Eis que na adaptação de Roberto Alvim para o Club Noir, a peça se chama Fantasmas, termo que implica a ideia de “aparição”, desdobrado da forma grega Φαν (fan), que também originou “fantasia”, “fantástico” e “fenômeno”, por exemplo. Enquanto a narrativa em torno da Sra. Alving está inteiramente preservada (o espectador acompanha com facilidade os eventos que envolvem a vida da viúva do capitão, seu filho Osvald, o pastor Manders, o carpinteiro Engstrand e a filha deste, Regine, empregada na casa dos Alving), a encenação opta por esvaziar a peça de sua configuração dramática original, atingindo o registro da tragédia por outro caminho que não o da cadência naturalista que fez de Ibsen o dono de uma insuperável habilidade teatral, vazada na famosa técnica analítica pela qual sua obra é normalmente conhecida pelos estudiosos, que muitos comparam ao recurso empregado por Sófocles em Édipo rei. Alvim não quer que pensemos em Ibsen como um playwright profissional, uma vez que os tempos modernos, marcadamente pós-dramáticos, já não são capazes de aprender coisa alguma com a engenhosidade do drama, já que a vida, ela mesma, se tornou teatral e espetacular. Diferentemente disso, o diretor solicita dos espectadores que se conectem com o grande poeta que Ibsen é. E a forma poética, esta sim, continua causando enormes fricções. “Só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da humanidade…”, afirma Adorno em sua “Palestra sobre lírica e sociedade”. Este é o traço de que parece se valer a montagem do Club Noir: diluir o dialogismo do drama até convertê-lo na irrupção de inúmeros solilóquios, por meio dos quais cada espectador usufrui da solidão do outro e, por extensão, de si mesmo.

Jacob Engstrand (Pascoal do Conceição) e pastor Manders (Guilherme Weber): a simbologia da chama de uma vela

As figuras de Fantasmas estão quase todo o tempo circunscritas ao halo de luz que as prende à própria interioridade. Elas se dirigem umas às outras, sim, mas a encenação – como tem sido a marca registrada do trabalho de direção exercido por Roberto Alvim – privilegia a composição de quadros hieráticos, solenes, formais, em que, mesmo diante de outrem, cada uma delas nada mais faz do que se abandonar ao auto-esquecimento, submergindo na própria linguagem. Os diálogos deixam de constituir a ferramenta básica do confronto das vontades, típica do drama, e perdem a prontidão para a comunicação. A luta e o embate ainda existem – afinal, estamos tratando de um autor a quem já se imputou o epíteto de “viking da dramaturgia –, mas eles estão recolhidos dentro dos próprios sujeitos e não conseguem mais explodir, senão sob a via de um lirismo pungente, patético, avassalador. Em um pequeno poema epigramático, Ibsen confidenciou: “Vida significa lutar com os fantasmas/no próprio cérebro e coração;/Poesia significa julgar-se a si mesmo”. As instâncias cênicas que Alvim criou na montagem servem para que cada personagem constantemente saia da obscuridade que o cerca, lute contra seus próprios fantasmas e emita opiniões acerca de si e do mundo na qualidade de um juiz. Refletindo para si mesmos sobre os conflitos que os fazem se chocar contra as convenções mortas, as figuras ibsenianas experimentam o horror de se confessarem publicamente – o que lhes confere o doloroso exercício da autoconsciência. Vale lembrar então que Eric Bentley afirma que Ibsen escreveu obras “cada vez mais subjetivas e difíceis, e que traziam dentro de si uma oculta condenação do homem moderno, incluindo o Poucos talvez sejam os atores que se possam lançar à difícil tarefa de encarnar este Ibsen lírico, e, por isso, trágico, e, por isso também, patético, sem malograr artisticamente. Para a empreitada, é preciso ter pleno domínio do corpo e da voz, retesando-os ao limite da implosão de qualquer marca de naturalidade. À plateia cabe compreender a opção dos intérpretes, em alguns momentos, pela grandiloquência e pela impostação. E não se incomodar com as deformações. Todas performativas. Juliana Galdino, Pascoal da Conceição e Guilherme Weber executam um trabalho admirável. As personas artísticas que eles encarnam fundem-se aqui às complexas figuras que defendem em cena (respectivamente, a comovente Sra. Alvin, o caviloso carpinteiro Engstrand e o dúbio pastor Manders), levando-os a exercitar um estilo de interpretação cuja grande ousadia é violar a previsibilidade de sentido. Embora atuem em registro diferente, Mario Bortolotto e Luisa Micheletti também obtêm em cena resultados muito consistentes. O Osvald Alving do primeiro tem um tom de uma desabrida infantilidade, expressa de modo lúdico e teatral. A Regine Engstrand da segunda oscila diligentemente do sacrifício romântico inicial à autoconsciente libertação final.próprio poeta”.

Poucos talvez sejam os atores que se possam lançar à difícil tarefa de

Jacob Engstrand (Pascoal do Conceição), Pastor Manders (Guilherme Weber) e a sra Alving (Juliana Galdino)

encarnar este Ibsen lírico, e, por isso, trágico, e, por isso também, patético, sem malograr artisticamente. Para a empreitada, é preciso ter pleno domínio do corpo e da voz, retesando-os ao limite da implosão de qualquer marca de naturalidade. À plateia cabe compreender a opção dos intérpretes, em alguns momentos, pela grandiloquência e pela impostação. E não se incomodar com as deformações. Todas performativas. Juliana Galdino, Pascoal da Conceição e Guilherme Weber executam um trabalho admirável. As personas artísticas que eles encarnam fundem-se aqui às complexas figuras que defendem em cena (respectivamente, a comovente Sra. Alvin, o caviloso carpinteiro Engstrand e o dúbio pastor Manders), levando-os a exercitar um estilo de interpretação cuja grande ousadia é violar a previsibilidade de sentido. Embora atuem em registro diferente, Mario Bortolotto e Luisa Micheletti também obtêm em cena resultados muito consistentes. O Osvald Alving do primeiro tem um tom de uma desabrida infantilidade, expressa de modo lúdico e teatral. A Regine Engstrand da segunda oscila diligentemente do sacrifício romântico inicial à autoconsciente libertação final.

Para Peter Szondi, a obra do dramaturgo norueguês é marcada pelo signo da tragicidade imanente à vida e não à morte: “Os homens de Ibsen só podiam viver sepultados em si mesmos, alimentando-se da ‘mentira da vida’. O fato de ele não se ter tornado seu romancista, de não os ter deixado em sua própria vida, mas tê-los obrigado a falar abertamente, acabou por matá-los”. A grande qualidade da encenação de Fantasmas é potencializar ao máximo essa condição, evidenciando por meio dela o movimento que constitui a própria proposição estética e política do Club Noir. Evocando constantemente os mais famosos espectros da dramaturgia universal, Roberto Alvim e os intérpretes que trabalham com ele se dispõem a presentificar o passado do teatro, não para ceder à tentação de reverenciar inocuamente uma série de cadáveres ilustres, e sim para remexer sem falsos pudores em sua nauseante putrefação – de onde poderá sair um naco ao menos de vida verdadeira, presente em algum microrganismo que faça algo em algum lugar ceder à inevitabilidade da morte e germinar.

Fantasmas – Club Noir
Onde: Sesc Santana (Avenida Luiz Dumont Villares, 579 – Jardim São Paulo)
Quando: Até 13 de dezembro; sextas e sábados, às 21h; domingos, às 18h
Quanto: R$ 30,00 a R$ 9,00
Info: (11) 2971-8700

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