A questão “canábica” – ou a democracia melhora o meu olhar

A questão “canábica” – ou a democracia melhora o meu olhar

As questões democráticas são impessoais. Desigualdade social, gênero, sexualidade, direitos reprodutivos, raça, o mundo do trabalho, a questão do respeito à diferença, a questão agrária, indígena, quilombola, a questão ecológica, a questão do lixo, a questão urbana, são temas que de algum modo concernem a todos aqueles que agem em nome da democracia.  Agir em nome da democracia é agir tendo em vista um amplo sentido de sociedade como lugar onde todos podem viver respeitados em suas singularidades e respeitando o lugar de cada um, de si mesmo e dos outros. Na construção democrática, mesmo que possam existir interesses mais marcadamente pessoais por uma ou outra causa, é preciso perceber que todas as questões estão entrelaçadas.

Uma dessas questões é nos dias de hoje a “maconha”. Desde que no cenário internacional, mormente, no Estados Unidos, a “guerra contra as drogas” elegeu a maconha como “o mal” a ser combatido, esta planta tem sido objeto de estigmatização. A estigmatização é um modo de proceder do discurso moralista. Em geral, o moralismo é inconsequente e  irracional, mas é sobretudo preconceituoso. Ele bate na mesma tecla para afirmar-se como poder e sustentar interesses pessoais contra o sentido comunitário e público. Em uma democracia os interesses pessoais dialogam com os públicos formando aquele que chamamos de cidadão.Ou seja, sendo cidadãos, respeitamos o que os outros pensam e esperamos aprender com eles. Esperamos, se somos democráticos, melhorar o nosso olhar.

Sabemos pouco sobre as chamadas “drogas”, esperamos sempre que instituições como Igreja e Ciência, Estado, Família e Direito definam o que elas são. Mas não percebemos como a visão dessas instituições já é formada por preconceitos, por negações abstratas, por falta de fundamentos, de argumentos, por falta de diálogo. Nietzsche falou sobre a “moralina”, a droga dos moralistas. Mas o moralista nunca vai perceber que ele se “droga” com suas próprias ideias inebriantes, por um motivo muito simples: ele acredita que ele está, a priori, certo. Assim, ele não ajuda a democracia. E não se deixa ajudar por ela. Ele não melhora o seu olhar.

Escrevi esse post em nome do diálogo. O diálogo é a grande contribuição que a filosofia pode dar para qualquer tempo e também para o nosso tão massacrado pelo autoritarismo e pelo desespero. Ontem, estive num diálogo muito bonito, em uma Acampada do Juntos, um grupo de jovens que está interessado a pensar o presente e o futuro do nosso país. Escrevo esse post pensando neles, porque conseguimos dialogar. Ouvir, falar, pensar juntos. Consegui melhorar o meu olhar. Espero que eles também.

Não dá pra levantar todas as questões que discutimos em torno da questão da “legalização da maconha”. O resultado foi a ideia de pensar a maconha como um “emblema” da discussão sobre a democracia que queremos, uma democracia em que a singularidade esteja respeitada no universal, em que a sociedade proteja direitos humanos em um sentido amplo de humanidade não antropocêntrico. Uma constelação para pensar na questão, me parece hoje o que há de mais útil, para que não se perca o aspecto sistêmico do conhecimento que temos que ter sobre o tema, sob pena de perder o rumo do debate. A maconha precisa ser pensada nesse sentido constelacional como questão social, cultural, de saúde, de estado, de educação, de urbanidade, de direito, de pobreza, de classe social, de gênero, de raça. Isso significa pensá-la como questão política. Mas é preciso pensá-la também como questão de todos e, por isso, questão democrática, em direção à qual podemos nos aproximar com ética, ou seja, respeitando a própria questão que nos leva a pensar o que a maconha é enquanto objeto, o que ela pode ser se conseguirmos vê-la para além dos estigmas que sobre ela foram colocados por décadas e décadas de intenso moralismo. E isso não concerne apenas a seus usuários, mas a todos que respeitam a diversidade de hábitos, de pesquisa e, até mesmo, de prazeres no âmbito da democracia.

O moralismo fechou os nossos olhos. A democracia como um valor a ser respeitado por abri-los.

Restam muitas questões, e uma das mais sérias diz respeito à chance de pensar um mundo melhor do que este que tem sido sustentado pelo moralismo, aliado dos conservadorismos que não desejam um mundo melhor para todos.

Pensar nisso é o começo. Pensar é melhorar o próprio olhar.

P.s. sugiro muitas leituras e documentários sobre o tema no meu livro “Sociedade Fissurada, para pensar as drogas e a banalidade do vício” que saiu no ano passado pela Ed. Civ. Brasileira. Recomendo porque ali dá para ter um apanhado geral das pesquisas e dos debates em torno das drogas.

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