Quem tem receio da arte queer?
Romaine Brooks, Autorretrato, 1923 (Museum de arte americano Smithsonian, Washington)
A arte contemporânea que trabalha a partir de uma perspectiva queer inclui artistas que não estão interessados(as) em institucionalizar as suas obras nos protocolos dos museus ou das galerias. Isso quer dizer que muitas das suas propostas não reúnem as características do mercado de arte ou das bienais. A maioria desses(as) artistas trabalha nas margens e desenvolve suas práticas nos movimentos sociais anarquistas e ou feministas, outros(as) atuam nas universidades. Há também artistas que preferem não dialogar com o sistema das artes e realizam interferências urbanas, ou por meio de blogs ou redes sociais, no anonimato. As práticas colaborativas vêm crescendo de maneira significativa a ponto de eliminar a possibilidade de aparecer o rosto ou o nome do(a) artista.
Algo importante de se saber é que esses(as) artistas expõem a si mesmos(as). Isso quer dizer que trabalham com seus próprios delírios, fragilidades e sexualidades. Sugerem-se como modelos ou propõem a outros(as) como modelos de si. Narram as suas próprias experiências, vulnerabilidades e sorte. Não se identificam com as classificações científicas. “Arte como destino”, poderia ser a sua definição. Transitam de forma rara entre a sociedade e a cultura. Causam estranhamento. Vestem-se criando sua própria moda, como se fossem dândis do século 21.
No entanto, sabe-se que esse processo artístico anormal ou excêntrico, esse destino suscetível a ser tocado ou ignorado, conta com inúmeros(as) precursores(as) na arte. A história da arte localiza distintos(as) artistas que questionam o caráter imutável da identidade, tais como Romaine Brooks (1874-1970), Claude Cahun (1894-1954), Flávio de Carvalho (1899-1973) ou Frida Kahlo (México 1907-1954). Sugere-se que é com o surgimento do conceito queer e do contexto da aids que se intensificou a necessidade, a inquietação e o desejo por imaginar, viver ou desvelar outro tipo de identidade ou sexualidade ou deslocar-se da categoria de gênero.
Para quem não lembra, o conceito do queer é ressignificado no campo das artes em um contexto de margem. É a poeta Glória Anzaldúa (1942-2004) quem se depara com a ideia de que ninguém está obrigado(a) a seguir a norma da identidade que lhe foi designada, positivando o conceito do queer neste âmbito. Nos Estados Unidos, o queer era uma forma de ofender e desqualificar uma pessoa classificada como rara, estranha, esquisita, pouco feminina ou pouco masculina. Anzaldúa apropria-se do conceito, empoderando-se como rara e indecifrável. Filha de pais imigrantes, Anzaldúa percebe que não precisa definir-se como mulher ou como homem, tampouco como mexicana ou como estadunidense ou como chicana. Através da sua arte, a poeta abre a possibilidade do trânsito identitário descobrindo a liberdade de agir nas fronteiras (in)definidamente. Esse afastamento permite-lhe visualizar a prisão que representa posicionar-se em uma nacionalidade ou em uma identidade de gênero. Ao mesmo tempo, essa nova percepção de si modifica a sua forma de atuar, de sentir, de ver, de andar e de pensar. A sua experiência cultural a leva a decodificar e desconstruir as normas sociais. É por isso que para muita gente o queer é sinônimo de antissocial, porque não encontra como natural a convenção cultural.
Nesse contexto, vários artistas fogem do sistema binário, desalinhando-se das expectativas políticas, familiares e sociais. Dão vida ao que pode acontecer no caso de não pertencerem a nenhum tipo de identidade, propondo outras formas de pensar a cultura e a sexualidade. Ninguém precisa casar-se ou definir-se sexualmente.
De repente, o olhar estabilizador das exposições, nas quais se naturaliza o hétero, transforma-se em tedioso. Nas mostras de arte surge um conflito quando aparecem artistas de identidade duvidosa, sem a delicadeza feminina ou a virilidade masculina. Críticos, curadores e artistas hétero sentem-se confrontados. A complacência identitária desaparece. Com exposições de tipo queer ou trans, a vida familiar do mundo das artes desestabiliza-se. A mídia ignora essas práticas artísticas porque atentam contra a organização das sociedades, o patrimônio, a economia da nação e o parentesco patrilinear. Ao mesmo tempo, esses trabalhos perturbadores geram estéticas descompromissadas. De caráter livre, optam pela experimentação. Há uma crescente descontinuidade nos processos artísticos.
No contexto brasileiro, por exemplo, a videoarte Multiplicidade: corpo em devir, da artista plástica Walesca Timmen, mostra uma performance de um corpo que não existe, mas que poderia vir a existir. A performance é realizada por Anderson Martins, com trilha musical de Desirée Marantes. Em preto e branco, Timmen expõe a importância do imaginário, do desejo e do sonho, para o desprendimento identitário. A artista propõe uma estética contemporânea para pensar o corpo nos seus mais variados estranhamentos.
A trilha de Multiplicidade: corpo em devir sugere temporalidades dissidentes, mediante ritmos dissonantes. Discute o conceito de multiplicidade e devir, em Gilles Deleuze e Félix Guattari. Sabe-se que o tempo heteronormativo impõe uma temporalidade linear, na qual toda pessoa nasce, cresce, se reproduz e morre. Em Timmen, a temporalidade é indeterminada. O corpo performa uma linguagem (in)condicionada. Não existe o tempo linear. Existem movimentos que se sobrepõem. Através da edição, o corpo anda, foge e desaparece, mas volta a aparecer, com outros gestos, movimentos e seduções, sem cabelo e com cabelo. Não há uma referência porque se trata de uma proposta artística. A arte não trabalha com tautologia. Ou seja, a arte não se propõe a ilustrar, cartografar ou repetir teorias, ciências ou crenças.
O trabalho de Timmen aponta para uma temporalidade não ocidental. O corpo, como vídeo, descobre seu próprio tempo. Nem Eón, nem Cronos. Não há mitologia nem grega, nem romana, nem de nenhuma ordem simbólica. Questiona-se a hegemonia ocidental e de toda ordem simbólica, que sempre foi um desdobramento da ordem divina ou teológica. Em Timmen, assistimos à desnaturalização do binário enquanto símbolo e mito. Pierre Bourdieu deve estar revoltado na sua tumba.
Monstrans
Já a figura de Lino Arruda sugere um animal em metamorfose constante. Escapa de qualquer tipo de nomenclatura, colocando em crise as classificações científicas. Outra interpretação importante na imagem que Arruda apresenta contradiz o discurso especista ocidental, ou seja, vem a questionar a hierarquização das espécies, que tem em um primeiro patamar o ser humano. A imagem propõe o consumo da testosterona para modificar a supremacia da estética masculina. Nesse sentido, esse tipo de arte intervém na forma em que se constrói a história da arte ocidental, modificando o cânone da figura humana, tão cobrada nos cursos de artes visuais clássicos. As proporções na imagem de Arruda contradizem a ilusão da coerência formal.
O desenho de Arruda mostra mais de dois seios. O surgimento de mais de dois mamilos poderia ser relacionado à intensificação do prazer que um corpo poderia alcançar, desrespeitando a limitada condição de gênero feminino científico. A obra Monstrans: experimentando horrormônios, de Lino Arruda, é um convite ao consumo da testosterona, como uma forma de experimentação de si.
A testosterona é um tipo de hormônio que se encontra em diferentes animais como mamíferos, aves, répteis, entre outros. Não é necessário entrar no processo de transexualização para consumir a testosterona. Vários(as) artistas experimentam o seu consumo como uma forma alternativa de conhecer outras realidades.
Outro grupo de artistas, como David Ceccon, Felipe Alonso (Frozi) e Marcelo Chardosim atravessam de forma a mostrar a estética (des)identitária. Através de retratos da sua infância, Chardosim mostra um batom sobre seus lábios e rosto. Mediante esse recorte, o artista propõe uma estética borrada, mas também atualizada na situação de um espaço expográfico e público.
Outro projeto que corteja a estética do queer pertence a Odailso Berte, que vem oferecendo, a partir de categorias como corpo performativo, uma linguagem que transita entre a performance, a dança, as artes visuais e as técnicas corporais, desafiando as linguagens e as áreas engessadas do conhecimento. Através de projetos como Ferida Calo ou Interkahlo, Berte propõe imagens de corpos a partir de ícones populares como a Frida Kahlo. Sutilmente, em vários momentos, insinua uma estética camp. Apresenta ritmos pop mediante extravagâncias performativas, vestidos longos e estampas que contrastam entre o fetiche, o excesso e a elegância.
No espetáculo Ferida Calo, de Berte, surgem corpos assexuados, sem referência ao gênero, desprendendo-se uma estética orgânica, romântica e inusitada. Os figurinos não admitem a identificação. São apenas corpos desatados sem gênero, mas também, repentinamente, aparecem todos os gêneros em um único corpo. Pode ser visto como uma arte que questiona o binário e a linguagem, encontra na performance a suspensão das nomenclaturas científicas.
Também trabalham no âmbito do queer artistas como Milena Costa e Rosa Blanca. No seu projeto Queer Face, Costa convida distintas pessoas a posarem ou performarem sob uma estética desejada, tendo como resultados quadros de rostos (in)imagináveis. Blanca, por sua vez, propõe pensar o gênero como ficção, dando vida a seus próprios sonhos e desejos mediante retratos ambíguos. A ideia é aprofundar-se na subjetividade como uma categoria de amplas possibilidades (des)identitárias, sugerindo questões sobre o significado das relações humanas, ao respeito do que vemos quando vemos ou o que exatamente desejamos quando desejamos, sejam pessoas ou coisas.
O fato é que muitos(as) artistas que trabalham sob esta perspectiva vêm engajando a sua proposta nos grupos, núcleos e laboratórios de pesquisa das universidades do Brasil, espalhando-se e interferindo nos modos de produção de conhecimento e da arte. A academia vem abrigando exposições e pesquisas que não têm encontrado espaço no mercado e sistema das artes.
ROSA MARIA BLANCA é doutora em Ciências Humanas pela UFSC e professora da UFSM
(1) Comentário
Aprendi muito lendo esse artigo. Muitíssimo. Sempre digo que a arte , antes de qualquer crítica, ou críticos de arte, e esse entorno, nos emocionam ou não. Emocionei-me com artes do povo, por exemplo um pintor aparentemente anônimo da Argentina, ” Rosto de Mujeres”, que trabalha em um” centro de artesania”. Em branco e preto, o rosto e parte do corpo todo visto e pintado como pernas femininas, lembrando pernas do movimento de um tango. Incrível! Que bela obra! Com certeza nao está em nenhuma galeria, vendida por um preço tão baixo. Comprei-a. Dei d epresente ao Felipe Fernandes , meu filho, e ao Fred, seu companheiro. Difícil alguém entender, mas me emociona muito mais que a Mona Lisa. Gosto de outras obras de da Vinci, mas nao consigo me emocionar com essa obra. Por quê? É tao subjetivo o olhar, a emoção. No caso, parece que temos a obrigação de achá-la bela, belíssima. Mas nao me emociona. Fui muito criticada ao emitir essa opinião, pensando por exemplo, em artes “anônimas” como desse artista argentino e outros e outras. Quando mergulho em uma arte plástica, penso se a quero em minha casa. Se me traz à mente parte de mim, das minhas emoções. Sou leiga na área….atualmente estou mergulhada na poesia, poemas….arvorei-me a dar minha opinião ” Como vejo a arte”. Muitos julgaram uma heresia eu dizer não me emocionar com a Mona Lisa…Outras artes de Leonardo da Vinci,me emocionam. Como negar minhas emoções?!Vincent van Gogh me emociona profundamente. Toca minha alma.