Quatro tipos de não dito

Quatro tipos de não dito

Esboço de tipologia literária

Francisco Bosco

1. O não dito que não diz O som e a fúria, de Faulkner, um dos clássicos da literatura modernista, é estruturado com base em um princípio negativo: como não dizer de modo singular. Com efeito, cada narrador constitui uma sintaxe, uma temporalidade e uma economia próprias. O mais notável deles, pela radicalidade da indeterminação do que narra, é Benjy. Retardado mental, ele só é capaz de formar frases curtas, jamais subordinadas; sua capacidade de abstração é precária, senão nula; seu relato procede por solavancos temporais, passando subitamente de uma época a outra. No conjunto, resulta uma narrativa fragmentada, obscura, acidentada, cujas pistas, às vezes contraditórias, o leitor tenta concatenar, sem sucesso. Faulkner vai mobilizando simultaneamente duas lógicas, uma do dizer, pela qual se insinuam acontecimentos, e outra do não dizer, pela qual os acontecimentos permanecem insinuados, nunca explicitamente relatados. À medida que se sucedem os demais narradores, essa economia interna vai pendendo para o dizer – sem que, contudo, se chegue a dizer tudo.

Um princípio análogo – embora sem a centralidade, a radicalidade e a sistematicidade encontradas no livro de Faulkner – pode ser verificado em Leite derramado, de Chico Buarque. Não apenas a situação enunciativa do narrador é, por si só, dotada de indeterminação (trata-se de um velho centenário tateando um relato em meio à confusão de sua própria memória), como, a certa altura, um acontecimento misterioso passa a mobilizar toda a trama. Matilde, a mulher do narrador, desaparece, e então a escrita orienta-se também ela por um sofisticado princípio negativo: uma arquitetura mental piranesiana joga o leitor num espaço de boatos, conjecturas, possíveis mentiras e a verdade, talvez, impossível de ser dita, ou assumida. Ressalvo que Leite derramado não se resume a essa lógica negativa; por suas páginas estão disseminadas muitas passagens a que José Miguel Wisnik atribuiu – falando sobre Budapeste, em que também elas abundam – uma “agudeza estonteante de observação”, isto é, modos positivos e insuspeitados de dizer. Mas esses modos convivem com a negatividade de que falei antes.

Para além dessa mera descrição de procedimentos, importa observar que o princípio negativo que os orienta não constitui, ele mesmo, uma positividade. Em outras palavras, o não dito dessas narrativas é um mero não dito. Ele é, certamente, um efeito do dito, mas não chega a ser um modo negativo de dizer. Pois, como procurarei mostrar adiante, existe o não dito que é um modo de dizer.

2. O não dito dito – Henry James poderia ser um filósofo, ou um ensaísta, e ele não deixa de sê-lo, embora, por seu enorme talento de escritor, ele só o seja indiretamente, como um não dito. Pois a sua escrita é dotada da mesma capacidade de ver, de iluminar, de esquadrinhar os fenômenos de que são dotados os pensamentos dos homens teóricos. Ocorre que, além dessa capacidade, Henry James possui igualmente a de criar personagens vívidos, concretos e complexos, e a de colocá-los em situações igualmente vívidas, concretas e complexas, e finalmente a de integrar seu dom de ver ao ritmo e à naturalidade da narrativa, conferindo a tudo uma densa fluidez, típica de grandes escritores, e que os caracteriza como tais.

Vejamos, por exemplo, a seguinte passagem de “A vida privada” (novela que espelha “O espelho”, de Machado de Assis). Não será preciso estabelecer seu contexto; a mera estrutura da passagem já indicia sua perspicácia: “Ele sentia muito, mas as palavras não lhe ocorriam de forma alguma; estava terrivelmente envergonhado, mas dera um branco em sua memória. Ele não parecia nem um pouco envergonhado – Vawdrey nunca parecera envergonhado na vida; estava apenas imperturbavelmente e alegremente natural. Afirmou que nunca esperara fazer um papel tão ridículo, mas percebíamos que isso não impediria que o incidente tomasse seu lugar entre suas mais risonhas reminiscências. Nós é que estávamos humilhados como se ele nos tivesse pregado uma peça premeditada”.

Ou seja, o que parece que é não é, e o que não parece que é é, e quem se supunha estar num lugar, na verdade, está no lugar oposto. Toda essa complexidade é depreendida de uma cena brevíssima, de um complexo de relações do sujeito com os outros e do sujeito consigo mesmo, complexo que se encontra latente, até que a escrita o explicita. Trata-se aí, portanto, de um não dito que é dito, de um trazer à tona o não dito – que, entretanto, na superfície se transforma: vira o dito.

3. O dito não dito (o não dito que diz) – Valéry certa vez afirmou que nunca seria capaz de produzir um romance porque não poderia escrever frases como “A marquesa saiu às cinco da tarde”. Mas Barthes, que já soubera perceber antes a função epistemológica de frases em princípio insignificantes em romances realistas (as descrições minuciosas, que não cumprem função narrativa, mas que ali estão precisamente para conferir ao texto uma aura de realismo, para investi-los de um “efeito de real”), soube perceber também a função narrativa de frases como as que Valéry julgava insignificantes. Para Barthes, frases como a da marquesa são necessárias para que o romance possa se adensar e finalmente condensar em seus “momentos de verdade”, que são as suas passagens decisivas, talvez não necessariamente do ponto de vista narrativo, mas de sua capacidade de dizer algo profundo, que para Barthes é da ordem do afeto.

Com isso pode-se propor um outro significado para a expressão double bind, um significado paralelo, o double bind do double bind. No contexto do pensamento sobre a literatura, essa expessão designa a mobilização simultânea, por um texto, de dois níveis: um superficial, visível, da ordem da trama, dos recursos de atração e dilação da narrativa; e outro invisível, subterrâneo, da ordem das questões críticas, dos problemas suscitados pelo nível mais imediato. Borges e Eco são dois exemplos de obras nas quais se verifica frequentemente esse double bind.

Mas um outro sentido possível para a expressão é ler nela a mobilização simultânea, por um texto, dos seguintes níveis: o do dito e o do não dito, de forma não paralela e linear, mas em irregulares relações de sobreposição, fluxo e refluxo. Em Dois irmãos, de Milton Hatoum, há uma passagem memorável em que se verifica essa irrupção do não dito por dentro do dito. Trata-se da morte de Halim, o pai dos gêmeos Yaqub e Omar. Enquanto Yaqub lograra escapar da província e da decadência familial, Omar permanecera preso às garras do amor incestuoso da mãe, Zana. Resumido ao mínimo, o drama de Omar é nunca ter sido capaz de superar a condição de filho. E todos estão implicados na consumação desse destino: Zana, por seu amor mórbido; Halim, por sua pusilanimidade (seu imenso amor pela esposa não lhe permitia contrariá-la); e o próprio Omar, claro, enredado numa dialética de liberdade e prisão de uma beleza e complexidade de que só o livro pode dar conta. Pois bem, há uma cena em que Halim acaba de morrer, seu corpo ainda está quente, e Omar, ao chegar em casa e encontrar o pai morto, começa a gritar com ele, furiosamente, ergue-lhe o queixo, lança-lhe na cara coisas terríveis – diz, enfim, tudo que não teve coragem de dizer enquanto o pai estava vivo. O narrador de Hatoum relata a cena sem fazer um comentário sequer; mas o leitor sente que lhe sobe desde os pés, como uma luz espessa e obscura, um corpo de não dito: Omar se vinga do pai morto por nunca ter sido capaz, ele mesmo, de matá-lo.

4. O que não se pode dizer e, entretanto, sempre se diz – “Com um pouco de manhã engastada nas sílabas”, era assim que Gullar desejava seu poema. No limite, é sempre assim. Mas se sabe que muitos escritores modernos, desesperados, talvez, com a impossibilidade de a linguagem representar o real, com a consciência recente e aguda de que a sombra jamais alcançará o corpo que a projeta, resolveram dedicar-se à sombra, abolindo o corpo. A anedota entre Mallarmé e Degas é sintomática. Conta-se que Degas ter-se-ia queixado a Mallarmé: “Não consigo escrever um poema, e no entanto estou cheio de ideias”. Ao que o autor de “Igitur” ter-lhe-ia respondido: “Mas, meu caro Degas, não é absolutamente com ideias que se fazem poemas, e sim com palavras”. A resposta é magnífica. Ela traz uma consciência, digamos, pós-metafísica da linguagem: os significados não são extrínsecos aos significantes. E, claro, uma consciência aguda da irredutibilidade da poesia, de seu composto indissociável de forma e sentido, de sua experiência como que física do sentido. Mas ela revela também certo fetiche pelo significante, pela materialidade do signo – muitas vezes às expensas da materialidade do real “engastada nas sílabas”.

A linguagem nunca representará o real. Mas também nunca se livrará de tê-lo preso a ela. De certo modo, o real é a sombra da linguagem, e não o contrário. Essa tensão entre real e palavra existe sempre, necessariamente, e necessariamente irresolvida. É por isso, de resto, que a impossibilidade da representação não pode justificar textos opacos, “herméticos”. Da perspectiva do real, Jorge Amado e James Joyce são equidistantes.

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