Quanto foi que este país mudou?

Quanto foi que este país mudou?

Que horas ela volta?, dirigido por Ana Muylaert e protagonizado por Regina Casé, já se consagrou como uma das mais finas e potentes leituras do Brasil recente nas telas do cinema.

A pergunta que dá nome ao filme, proferida com todas as letras pelo filho da patroa, pode enganar os mais apressados, ao sugerir tratar-se de um relato edulcorado sobre o lugar afetivo de uma mãe ausente que acaba ocupado por uma empregada doméstica, mais próxima do filho da patroa do que da sua própria filha.

Sem dúvida, essa referência de abandono e de desencontros está também ali presente. Mas a força do filme é, ao tomar uma prosaica relação de trabalho doméstico entre a empregada Val (Regina Casé) e a família que a emprega, tendo Dona Bárbara (Karine Teles) como a matriarca, conseguir escancarar, tão provocativamente, a realidade social brasileira.

Assim, a perspectiva micro da família em questão torna-se uma fecunda porta de entrada para a compreensão das relações de poder que governam a vida dentro e fora dos lares brasileiros.

A empregada Val (Regina Casé)

O “velho” quartinho de empregada

O mote que guia o percurso do filme é o lugar social de cada personagem, com as fronteiras bem delimitadas dentro das quais cada um pode circular sem perturbar a ordem já estabelecida.

Val, vinda do Nordeste para ganhar a vida em São Paulo, está há mais de uma década confinada na casa dessa família, pronta para servir a todos e em qualquer horário. Dorme no trabalho, em seu apertado e insalubre quartinho de empregada. Poucas são as escapadas para lazer que a desconectam desse universo que a aprisiona.

As desigualdades regionais são organizadas domesticamente na divisão do espaço da casa: sem casa grande e senzala no sentido tradicional da formação brasileira, a materialidade da distinção que marca o lugar de cada um nessa estratificação contemporânea é a relação entre a piscina e o quartinho da empregada nordestina. Ou, do ponto de vista do consumo, a distinção entre o pote de sorvete dos empregados e o pote de sorvete dos patrões.

A vinda de Jéssica (Camila Márdila), filha de Val, com quem esta perdeu contato direto há mais de dez anos, de Recife para fazer o vestibular em arquitetura na prestigiada FAU/USP vai estremecer a pasmaceira estável daquela família e também o lugar até então ocupado, passivamente, por sua mãe.

Sendo de uma geração que encontrou, nos últimos anos, outro Brasil na entrada da vida adulta, seu desejo e seu horizonte de vida não cabem mais nas imposições tão estreitas da servidão obediente de uma família, mas passam a ocupar os mesmos lugares que, por exemplo, o filho dos patrões de sua mãe.

Diante dos interditos e prescrições que os costumes da desigualdade ensinaram para sua mãe, Jéssica questiona onde essas normas eram aprendidas e por que deviam ser respeitadas. Recusa-se a dividir o quarto de empregada, seu lugar, e ocupa o quarto de hóspedes da casa, instituindo um conflito quanto à sua aceitação.

Jéssica (Camila Márdila) almoça com Dr. Carlos (Lourenço Mutarelli) patrão de Val.

“A empregada é quase da família”

Com clichês que tornariam caricaturais o filme se não fossem tão reais, os diálogos dão corpo a discursos bastante recorrentes de justificação dessa ordem “natural” das coisas.

Reiteradas vezes, os patrões fazem questão de frisar que a empregada é parte da família e é muito importante para eles. E sem dúvida que é. O grau de dependência dos patrões, que sequer conseguem pegar um refrigerante da geladeira sem pedir – ou mandar – a Val para fazê-lo, é um atestado de como ela é fundamental para o funcionamento da família.

Esta é uma constatação incômoda que se agiganta no decorrer de cada cena do filme. A cordialidade que permeia toda a narrativa é sempre aquela violência estetizada e sutil que marca a pessoalidade das relações de poder brasileiras: duras o suficiente para dominar e leves o suficiente para se fazer esconder.

Dessa perspectiva, um tipo singular de pacificação então é imposto por um simulacro de conciliação. A gentileza combina-se perfeitamente com a exploração de uma jornada de trabalho interminável. A aproximação carinhosa e benevolente do patrão, Dr. Carlos (Lourenço Mutarelli), conjuga-se com a tentativa de abuso sexual da filha da empregada que acaba num constrangedor pedido de casamento. O amor mais autêntico que aparece é formatado pela completa servidão entre a empregada e o filho do patrão, que encontra nesta a figura materna de que precisa.

Não se trata, nem aqui e nem no filme, de desqualificar a humanidade possível que emerge nas brechas dessas relações tão desiguais. É certo que uma relação que envolve afeto também é criada pela convivência e pela proximidade de uma pessoa 24 horas por dia e quase que toda a semana na mesma casa ao lado das mesmas pessoas.

Mas o filme consegue apontar, de modo certeiro, o principal para compreensão: as estruturas que, bem objetivamente, operam essas relações e determinam, de maneira estreita e nítida, o traço que separa quem serve e quem é servido.

“Não é que este país mudou mesmo?!”

Outra questão bem retratada é a mobilidade social decorrente das mudanças ocorridas no país durante a última década. A ampliação do acesso ao ensino superior com a inclusão mais intensa no mercado de consumo, algo impensável para a geração de Val, emerge como algo possível para sua filha Jéssica.

Quando esta relata seu objetivo de ser arquiteta para a família dos patrões, a reação de desqualificação do sonho da filha da empregada de estudar em uma universidade pública é imediata pra não dizer automática. Dona Bárbara, contrariada e com a empáfia da elite que assiste à repentina invasão de seus lugares de privilégio, afirma: “E não é mesmo que esse país mudou?!”.

Mas não alimentemos ilusões, pois o próprio filme nos vacina nesse sentido. A casa grande continua no mesmo lugar, com seus mesmos privilégios e benefícios. Mas a senzala já não aguenta mais permanecer no quartinho de empregada. Ela extravasa o lugar delimitado que foi traçado pra ela, preferindo-se deslocar para o espaço próprio, pequeno, apertado, na periferia de Campo Limpo, mas com seu próprio conjunto de café como xícaras pretas e brancas “descasadas” compradas nas Casas Bahia.

Constatar esses deslocamentos não significa sequer insinuar que alguma emancipação tenha sido alcançada. Seria exagero e ingenuidade afirmar que foi consumada uma transição da hierarquia para a igualdade em uma sociedade ainda tão estratificada e injusta como a brasileira. Mas os lugares sociais se modificaram de forma significativa, retraçando as possibilidades de sonhos e de projetos de vida.

Mas este país precisa mudar é muito mais

Sem mexer com os de cima, os de baixo tiveram alargadas suas esferas de autonomia, de direitos e de consumo conforme a tensão entre mãe e filha atesta. Se Val contentava-se com o quartinho de empregada recheado de eletrodomésticos acumulados e sem uso durante os anos para um futuro incerto, Jéssica rompe com a passividade para enunciar seu desejo de ficar no quarto de hóspedes e de ocupar vaga na mesma universidade desejada pelo filho dos patrões. Mais: questiona constantemente sua mãe a respeito das razões pelas quais ela permanece sujeitada a essa ordem.

O filme não resolve tal contradição que se acentuou, nos últimos 13 anos, com os limites atingidos pelas políticas sociais e desmobilizadora dos governos petistas. E nem seria o caso, pois elas estão aí pulsando na realidade em diversas dimensões.

Não sabemos se Jéssica passou na segunda fase do vestibular da concorrida universidade de elites que ainda é a USP. Muito menos é possível saber se ela conseguiria, após a difícil aprovação, cursar a faculdade em período integral, com um filho pra criar, sem trabalhar para ajudar nas contas de sua casa, com sua mãe desempregada. Tampouco se sabe como Val conseguiu arrumar um outro emprego ou se recolocar, como profissional liberal (“vou fazer um curso de massagem”) em outro mercado de trabalho fora do âmbito dos serviços domésticos.

No entanto, uma coisa fica clara. A ousadia e liberdade de Jéssica contagiam sua mãe e provocam uma tomada de consciência que subverte a distribuição dos traços tradicionais de exclusão. Os segredos entre ambas vão diminuindo à medida que a cumplicidade aumenta e os lugares se deslocam.

Sintomático é quando, ao pedir sua demissão, Val não consegue verbalizar claramente o motivo de sua saída: ela sabe que não é por dinheiro, sabe que não há um motivo específico ou algo que tenha sido feito pela patroa, mas simplesmente ela não cabe mais naquele lugar e precisou de sua filha para enxergar isso com clareza. Nesse momento, a impossibilidade de formular o discurso também é uma amostra de quão artificial era a proximidade entre empregada e patroa.

Concomitante à tomada de consciência de Val no filme, algo ocorre na realidade e que não aparece claramente no filme: a regulamentação do trabalho doméstico com a equiparação de direitos em relação aos empregados celetistas.

Sem dúvida, essa foi uma das medidas civilizatórias mais importantes, do ponto de vista legal, que se concretizou no Brasil nos últimos anos para que destruamos a relação entre casa grande e senzala não apenas como lugar físico, mas também social.

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