Quando a máscara se prende ao rosto

Quando a máscara se prende ao rosto

A arte e a personalidade de Norma Bengell, atriz que revolucionou costumes e desafiou o conservadorismo

Wilker Sousa

Divulgação

Fim de tarde em São Paulo, março de 2010. Pouco mais de três horas antes do espetáculo, uma senhora chega ao hall de entrada do teatro. Não havia muitos por ali, à exceção de alguns frequentadores entretidos com suas leituras e fones de ouvido, e duas funcionárias no setor de atendimento. Acompanhada por um rapaz que empurra a cadeira de rodas, a senhora segue lentamente rumo ao elevador. As portas ainda não tinham se fechado, quando, em voz alta, ela pergunta a uma das funcionárias:
– Como estamos de público?
– Metade dos lugares estão ocupados – responde a moça.
– Como ainda são 6 horas, o público até que é bom, não é? – comenta a senhora com o rapaz que lhe faz companhia.

Fecham-se as portas.
Em seguida, uma das moças não contém a curiosidade e consulta a colega:
– Quem é ela?
– É a Norma Bengell.
– Essa é a Norma Bengell?
– Sim, ela está assim provisoriamente, porque eu acho que teve um acidente doméstico.
Às 21 horas, a atriz interpretaria Winnie, personagem de Dias Felizes, de Samuel Beckett. Abertas as cortinas, e após o som estridente de uma campainha, diria: “Outro dia divino”.

De paródia de Brigitte Bardot a musa do cinema novo
Naquela noite carioca de 1959, o cineasta Carlos Manga assistia a mais uma apresentação do teatro de revista de Carlos Machado. Entre as divas que participavam do espetáculo, uma lhe despertou atenção particular. Vestida de escrava branca acorrentada, ela descia a escada do teatro, quando roubou o olhar do diretor: “Eu fiquei extremamente impressionado com a beleza e com o porte dela”, recorda. Manga notou uma semelhança da jovem com a musa Brigitte Bardot (“para melhor”, afirma) e convidou-a para participar do longa-metragem que estava produzindo, intitulado O Homem do Sputnik. Aquela seria a porta de entrada de Norma Bengell no cinema nacional. Aceito o convite, durante um mês a jovem atriz, então com 24 anos, dividiu-se entre os ensaios do longa e suas apresentações no teatro. Estrelado por Oscarito, o filme estreou ainda naquele ano e trazia Norma interpretando BB, sedutora femme fatale que satirizava Brigitte Bardot.

A consagração, porém, viria em 1962 – ano que simbolizou um divisor de águas em sua carreira. Sob a direção de Ruy Guerra, atuou em Os Cafajestes, cujo elenco trazia Jece Valadão e Hugo Carvana. Primeiro longa de Ruy Guerra, o trabalho foi saudado pela crítica como “o primeiro grande impacto do cinema novo” (Ely Azeredo, Tribuna da Imprensa, 1962), dada sua linguagem inspirada na nouvelle vague e sua ousadia temática. O filme, porém, causou alarde junto a setores mais conservadores da sociedade, como a TFP (Tradição, Família e Propriedade), ligada à Igreja Católica. Protagonizada por Norma, a primeira cena de nu frontal da história do cinema brasileiro chocou o cardeal do Rio de Janeiro, que solicitou ao então governador Carlos Lacerda a proibição do filme, e este atendeu ao pedido. As projeções foram subitamente interrompidas e o filme só voltaria às salas de cinema depois de efetuados alguns cortes.

A atriz, por sua vez, ainda sofreria mais reveses por conta de sua “ousadia”. Ainda em 1962, foi impedida por padres de cantar em um show de bossa nova na PUC-Rio, pois defendia o uso da pílula anticoncepcional.

Naquele mesmo ano, estaria nas grandes telas com a personagem Marli, de O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, o filme se tornou um dos maiores sucessos do cinema brasileiro e abriu caminhos para a carreira internacional de Norma.

Foi por meio de sua atuação em O Pagador de Promessas que a atriz conheceu Dino de Laurentis, produtor responsável por inseri-la no cinema italiano. Ao lado de estrelas como Renato Salvatore, Alberto Sordi, Catherine Deneuve, atuou em Una Bella Grinta, I Cuori Infranti e O Mafioso (o mais relevante dos trabalhos, segundo a opinião do crítico de cinema José Carlos Monteiro). No mais, “Norma foi quase sempre desaproveitada em produções insignificantes, mesmo quando se impunha pela beleza e/ou a capacidade dramática”, conclui o crítico.
Após dois anos de sua temporada italiana, a atriz voltou ao Brasil em 1964 e encontrou um país ainda mais cerceado pelo autoritarismo.

Reprodução
Norma Bengell em Os Cafajestes (1962)

Instaura-se a repressão
De minissaia e botinhas, Norma estava pronta para o encontro que teria logo após o espetáculo que encenaria naquela noite. O ano era 1968 e atriz estava em cartaz no Teatro de Arena, com a peça Cordélia Brasil, sob a direção de Emílio di Biasi. Ao sair do hotel, a atriz foi surpreendida por quatro homens que a colocaram violentamente dentro de um Fusca.

– Vocês estão loucos? O público está me esperando! – esbravejava.
Emílio, que a aguardava na portaria, tentou defender a amiga, porém recebeu um golpe de um dos homens e caiu no chão, assistindo à partida do carro. Atordoado, voltou ao teatro e comunicou ao administrador da casa:
– Não vai ter mais espetáculo porque levaram a Norma. Eu vou tentar falar com a Cacilda Becker e ver o que ela pode fazer – relembra Emílio.
Cacilda tinha muitos contatos, transitava com desenvoltura entre artistas e políticos, logo sua ajuda parecia ideal naquele momento de pânico. Emílio seguiu para a casa de Cacilda e, juntos, passaram a madrugada ao telefone, na tentativa de localizar a amiga.

Norma só se deu conta de onde estava, quando, através do vidro do carro, viu o estádio do Maracanã. Pouco depois, ao chegar ao Segundo Batalhão do Exército, na Rua Barão de Mesquita, ouviu quando alguém perguntou onde estava o preso. De minissaia, botas e urinada de tanto lutar contra a truculência daqueles homens, foi apresentada ao coronel Luiz Helvécio Leite, que perguntou:
– Quem são os comunistas do teatro?
– Eu não sei – negava reiterada-mente.

Embora não tenha sofrido violência física, ela ficou em poder dos militares durante 48 horas, sendo interrogada acerca dos supostos comunistas que estariam infiltrados no teatro. Foi libertada sem denunciar ninguém. “Se soubesse, eu não diria, porque a gente não pede carteira de ideologia”, recorda.

Sua personalidade combativa em tempos de repressão ainda lhe traria consequências severas, e aquela não seria a única vez que a prenderiam. Certa ocasião, entre as muitas que se sucederam, foi reconhecida pelos presos, que cantaram em coro a música “Corisco”[trilha de Deus e o Diabo na Terra do Sol]. “Foi muito bonito”, relembra. Colocada em uma cela grande, Norma batia contra a porta usando suas botas de hípica, enquanto ouvia alguém do outro lado ameaçá-la:
– Isso é café pequeno. Ela só usa arma 32! – em referência possível ao tamanho das botas.
– Eu não preciso ver sua cara. Um dia eu vou te reconhecer pela voz – retrucava.

Passaram-se os anos e, em 1986, desta vez como diretora, ela voltou à mesma cela para filmar um cena de Pagu, estrelado por Carla Camurati. Na ocasião, ouviu a mesma voz que lhe ameaçara e, ao abrir porta da cela, encontrou o militar:
– Foi você!
– É, fui eu.
Tomada de ligeira frieza, Norma ainda o convidou a comer uma pera, mas, diante das atrocidades que o militar enumerava em meio à conversa, foi convidado a se retirar.

Em 1971, após seguidos sequestros, já não havia condições de permanecer no país. “Fui para o exílio porque eu não aguentava mais isso aqui. Achei que não tinha mais espaço para gritar contra a ditadura, então fui para a França.” A recente temporada no cinema italiano serviu de vitrine para a carreira francesa. Eram tempos de glamour, festas, amores e amigos – ares radicalmente opostos àqueles que eram respirados por aqui.

Em solo francês, Norma pôde trabalhar com grandes nomes do cinema e do teatro, como Patrice Chéreau e Jean Genet.
Ainda que estivesse longe do Brasil, não deixou de dar suas “alfinetadas” no regime militar. Quando questionada por jornalistas franceses sobre a situação política de seu país, dizia que o Brasil estava nas mãos de uma ditadura, o que obviamente não agradou aos militares, sobretudo a Médici, que foi chamado pela atriz de “urubu- rei” em uma de suas entrevistas à imprensa europeia. “Foi quando a barra pesou e fiquei sem passaporte”, conta. Somente anos mais tarde, ao saber da abertura promovida pelo então presidente Geisel, a atriz telefonou para o Palácio do Planalto e, após falar com o general, conseguiu a liberação de seu passaporte.

Foi então que regressou ao país aquela que, por assumir causas antiburguesas, “serviu de paradigma para uma revolução dos costumes numa época em que o Brasil, sob a égide do conservadorismo, não era propriamente um ‘mar de rosas’, em termos de tolerância a comportamentos transgressivos”, segundo José Carlos Monteiro.

Entre palcos e câmeras
Nas décadas seguintes, Norma Bengell alternou trabalhos nacionais e internacionais no cinema, no teatro e na televisão, além de ingressar na carreira de diretora. Com Paulo César Sarraceni, protagonizou uma aristocrata em crise em A Casa Assassinada (1971), inspirado no romance Crônicas da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso. Muitos foram os diretores com quem trabalhou nesse período (Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Walter Hugo Khouri, Antonio Calmon, entre outros), mas foi com Glauber Rocha que a atriz acredita ter realizado um de seus maiores trabalhos: A Idade da Terra, de 1980. “O filme vai ser entendido daqui a alguns anos”, acredita.

Adquirida a experiência ao longo de dezenas de filmes, Norma decidiu enveredar-se na direção. O tema escolhido para seu primeiro longa foi a adaptação para as telas da trajetória da intelectual de vanguarda Pagu. “Apesar das oscilações estilísticas e das incorreções históricas, o filme concretiza as pretensões da diretora”, analisa José Carlos Monteiro. A escolha de Pagu não foi gratuita, pois nota-se no filme uma grande admiração de Norma pela escritora, bem como uma visível identificação entre ambas, como apontou o crítico Ely Azeredo: “Se Bengell jamais escrever sua biografia, se for esquecida, restarão os fotogramas desse filme, de recôndita pureza, exigente amor, desafiadora visão da vida afetiva e social, para testemunhar sobre a mulher e a artista”.

Em 1996, viria a grande mágoa de sua carreira, o imbróglio envolvendo O Guarani, sob sua direção e produção. Segundo o Ministério da Cultura, houve irregularidades na prestação de contas e Norma foi indiciada por evasão de divisas, lavagem de dinheiro e apropriação indébita. Hoje há dois processos ganhos pela atriz, além de um arquivado e outro em andamento. “Agora eu já estou gozando do assunto.”

Na televisão, seu trabalho mais recente foi a participação na série Toma Lá, Dá Cá, da Rede Globo, emissora onde também atuou em novelas e minisséries. Para o futuro, planeja desenvolver um filme baseado em sua vida.

Apagam-se as luzes
No segundo ato de Dias Felizes, Winnie está melancólica. Sem a companhia do marido, Willie, a personagem luta contra a solidão: “Pensava antigamente que eu aprenderia a falar sozinha (…) mas não”. Norma, ao contrário, diz ter aprendido a viver só, embora enfatize a importância dos amigos. Sem filhos e após a morte da amiga Sônia Nercessian, com quem morou por 25 anos, atualmente vive sozinha em uma casa na região nobre do Rio de Janeiro. “Quando se apagam as luzes, é uma solidão enorme. (…) Eu sou uma pessoa muito forte, senão já teria sucumbido.”

Amparada em sua força, o otimismo permanece. Fechadas as cortinas e cessadas as luzes, é possível que a mulher Norma Bengell leve consigo a última frase de Winnie: “Mais um dia feliz, apesar de tudo”.

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