Prontidão política e vigília poética permanentes
Foto: Bob Sousa
Fotos de Bob Sousa
Atuação solar
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Sutil violento, espetáculo da Companhia de Teatro Heliópolis, voltou a ser apresentado, de 28 de julho a 4 de setembro, na Casa de Teatro Mariajosé de Carvalho (sede do grupo, localizada no bairro do Ipiranga, em São Paulo) depois de ter cumprido duas temporadas muito bem-sucedidas, respectivamente, em 2017 e 2018. Com texto assinado por Evill Rebouças e encenação a cargo de Miguel Rocha (diretor e fundador do coletivo), a montagem trata das inúmeras coações – visíveis e invisíveis, insidiosamente naturalizadas ou institucionalizadas de forma crua e chocante – a que estão expostos os cidadãos nos tempos contemporâneos, convidados pela desfaçatez neoliberal a se submeter ao máximo de deveres e a usufruir do mínimo de direitos.
Um dos coletivos de atuação mais regular e consistente da cidade de São Paulo – em permanente estado de prontidão política e vigília poética frente a um bairro densamente povoado e com um sem-número de questões sociais a serem, diariamente, enfrentadas, como é o caso da Cidade Nova Heliópolis –, a Companhia de Teatro Heliópolis surgiu em 2000 com o espetáculo A queda para o alto, baseado no romance homônimo de Sandra Mara Herzer, que abordava de modo pioneiro o tema da transexualidade. O repertório do grupo, cujas comemorações de 20 anos de existência foram transferidas para 2022 em razão da pandemia, e incluem o lançamento de um valioso livro, editado por Alexandre Mate, reúne doze espetáculos criados em ativo diálogo com a realidade de um local cujo nome seria somente mais um exemplo de nossa inesgotável capacidade de cometer ironias – Paraisópolis, Cidade de Deus, Eldorado de Carajás… –, não fosse o louvável trabalho da União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas), que converte o sarcasmo em literalidade, deixando a vida dos cerca de 200 mil moradores da “maior favela de São Paulo”, assim denominada pela própria Unas, um pouco mais solar por meio do desenvolvimento de projetos efetivos de educação e cidadania. Ao contrário das ações governamentais, a Unas e o grupo de teatro não tentam tapar o sol com a peneira.
O coletivo – que já realizou duas edições da Mostra de Teatro Heliópolis e a Ação Comunitária Nova Heliópolis – deu início no ano passado ao projeto “Cárcere – Aprisionamento em Massa e Seus Desdobramentos”, que originou seu mais recente trabalho, Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos, com texto de Dione Carlos.
A eloquência das ratoeiras
O texto de Sutil violento, de autoria de Evill Rebouças em processo colaborativo com os integrantes da companhia, desconstrói do início ao fim a imagem presente no título, levando o oximoro a assumir uma segunda camada de significação: uma vez que violência e sutileza são termos paradoxais, não se está falando aqui propriamente daquele tipo de coação delgada, acionada diariamente sem fazer rumor. Porque ela, a rigor, inexiste. O que o espetáculo acintosamente faz é colocar uma lente de aproximação no absurdo da expressão, forçando o espectador a se emaranhar em tal impasse ou querer vislumbrar saídas para ele. Antes de delicada e engenhosa, a violência tratada aqui é gritante.
E se expressa, seja pela cor encarnada que invade a cenografia concebida por Marcelo Denny, seja pelo misto de persuasão e tensão presente na música ao vivo executada por Amanda Abá (violoncelo), Alisson Amador (percussão) e Edézio Aragão (guitarra e sonoplastia), sob a direção do compositor e antropólogo Meno Del Picchia. Em muitas ocasiões, a massa sonora produzida em cena ganha o estatuto de fio condutor da experiência – ora a música sendo uma linguagem artística autônoma, ora servindo de parceira dos corpos entregues a coreografias que “precisam” prescindir da palavra. Porque a violência, embora combatida no âmbito da racionalidade, é algo que sempre escapa ao universo da palavra polida. E não pode ser enunciada pelas malhas do texto. Há algo de clariciano nesta operação, porque Sutil violento também entende que “a palavra tem o seu terrível limite”, após cuja possibilidade “vem a voz de uma música, a música que diz o que [nós] simplesmente não [podemos] aguentar”.
Os cinco performers em cena – Álex Mendes, Arthur Antonio, Dalma Régia, Davi Guimarães, Klaviany Kozy e Walmir Bess – estariam apenas dramatizando suas trajetórias individuais e demandando nossa sempre disponível, e inócua, simpatia, não estivessem antes estabelecendo pulsantes relações gregárias, de inequívoca natureza épica. Toda sorte de constrangimentos físicos e morais é denunciada no palco pela coralidade dos corpos. E tais coerções devem ser enfrentadas pela coralidade social fora dele também.
De todas as imagens retesadas, angustiantes, ruidosas produzidas em cena, talvez a mais eloquente seja a das ratoeiras amontoadas – reiteradamente usada. Artefato rústico cujo protótipo foi apresentado pela primeira vez em 1878, na Exposição Universal de Paris, a ratoeira ganhou inúmeras versões até ser aperfeiçoada pelo inventor inglês nascido nos Estados Unidos Hiram Maxim, pai também, ora vejam só, da metralhadora. Se uma ratoeira tradicional, em sua grosseira simplicidade, constitui uma armadilha cuja marca é a da crueldade (combatida, mundo afora atualmente, pelas associações de proteção aos animais) instantânea, o efeito causado pelo acúmulo caótico de muitas ratoeiras é perturbador. O que faz evocar a inquirição do filósofo pré-socrático Eubulides de Mileto: “Um grão de milho não é um monte. Acrescente um grão e ainda não há um monte? Quando um monte começa a existir?”. Sutil violento cruamente constata que as violências espraiadas no dia a dia parecem nada significar, questionando, então, quando nossa reação à violência totalizante que tem tornado a atmosfera do Estado de Direito cada vez mais rarefeita começará a surgir.
Sutil Violento
De 28 de julho a 4 de setembro de 2022
Quinta, sexta e sábado, às 20h | Domingo, às 19 horas.
Duração: 60 minutos. Gênero: Experimental. Classificação: 14 anos.
Ingressos: Grátis – Reservas: Sympla
Casa de Teatro Maria José de Carvalho
Rua Silva Bueno, 1533 – Ipiranga. SP/SP. Tel: (11) 2060-0318
Capacidade: 40 lugares.
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio e em Letras pela Universidade de São Paulo, onde também desenvolveu suas pesquisas de mestrado e de doutorado. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997, onde atualmente é diretor.